segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Melhor Amigo de José Mindlin não Foi o Cão, mas sim, o Livro - Por Luiz Domingues




O Brasil não tomou ainda a decisão mais acertada, que qualquer país de primeiro mundo um dia decretou, e que invariavelmente o alavancou para o primeiro mundo. Sei que o fomento à agricultura; infraestrutura & tecnologia; indústria & comércio, commodities e amparados pelos inevitáveis ajustes fiscais são importantes, tanto quanto a consolidação da democracia em torno das instituições fortes a preservar o estado de direito. Tudo isso faz parte, e sem tais peças, a engrenagem não funciona como um todo.

Todavia, o baluarte para que tudo isso funcione a contento, é a educação. E dentro de todas as prerrogativas que dela derivam, um elemento em particular, é fundamental para a melhoria do padrão educacional e cultural de um povo, ao tornar-se portanto, o combustível para que todos os outros setores da sociedade civil e cadeia produtiva, sejam prósperos : o livro.
Por quê lê-se tão pouco neste país, deveria ser a preocupação número um dos nossos governantes, todavia, pelo histórico descaso com o assunto, as autoridades dão a medida exata com a qual o nosso desenvolvimento inexista, há séculos. Salvo raras e honrosas ações sazonais e / ou individuais de um ou outro mandatário, a grosso modo, o poder público pouco ou nada faz para tornar o livro, um objeto com fácil acesso, e massificado, portanto.
Dentro desse panorama triste, quando deparamos com gente abnegada que luta quase que quixotescamente na contramão, o que deveria ser um padrão normal de qualquer cidadão, passa a ser até mal interpretado. Um exemplo até exótico, é o de pessoas que são criticadas por manter bibliotecas caseiras que ocupam um espaço avantajado dentro de suas respectivas moradias. Vejo uma onda de acusações que muitas vezes são bastante preconceituosas, pois um fato é ser um acumulador compulsivo e patológico, e outro, muito diferente, é deter o espírito colecionador, com critério e cuidado em manter uma coleção respeitável. Outro ponto, é que muitas vezes os colecionadores são acusados em ser egoístas, ao guardar tesouros particulares que não são compartilhados com a coletividade, mas aí entra outra questão; que estímulo teria um colecionador zeloso de seu acervo, em compartilhar seu tesouro a esmo, sem critério algum, para submetê-lo até ao vandalismo da parte de gente inescrupulosa que tem o ímpeto pela destruição, como modus operandi ?
A depender da circunstância pessoal de cada um, pode ser muito angustiante para um colecionador que chega a uma idade avançada, ter a perspectiva de que sua coleção será destruída, em caso de não contar com sucessores ou mesmo quando os possui, ao saber de antemão que não valorizam em nada o seu material catalogado, e que irão inevitavelmente jogá-los em caçambas, atear fogo, ou simplesmente abandonarem-no sob um estado de putrefação triste, em meio às teias de aranha; cupins; traças, e roedores. Enfim, em um país que não valoriza o livro, até para doar-se um acervo é complicado. Um exemplo contrário e muitíssimo salutar de alguém que pensava justamente o contrário, foi o do bibliófilo, José Mindlin.
Nascido em São Paulo, capital, no ano de 1914, Mindlin foi um apaixonado pela leitura e os livros, e por conseguinte tratava-os como verdadeiras joias, como devem ser considerados, aliás. Com quinze anos de idade, já escrevia para um jornal de porte, O Estado de São Paulo. Paralelamente, estudou direito, e por conseguinte ter advogado por alguns anos, até que tornou-se empresário de um ramo em expansão no Brasil.
A sua empresa, chamada como : “Metal Leve”, tornou-se uma gigante na fabricação de auto peças, e por conta desse sucesso empresarial, Mindlin tornou um homem rico. Com tal independência financeira, Mindlin pode enfim dedicar grande parte do seu tempo e seus recursos, para a sua grande paixão, que foi a sua incrível coleção de livros.
Tão voraz como leitor, Mindlin também mostrou-se como colecionador, e de peça em peça, a garimpar, pôs-se a formar uma coleção notável, no padrão de uma grande biblioteca. E à medida que a sua coleção aumentava, o número de raridades que ostentava em seu bojo, também crescia.
Não obstante o fato em possuir milhares de volumes, Mindlin orgulhava-se em ter em sua posse, edições raras de publicações muito antigas, algumas inclusive, oriundas de séculos passados, manuscritos originais etc. 

Não apenas bibliófilo foi, mas também foi autor de algumas obras. “Uma Vida entre Livros” “Reencontros com o Tempo”, e “Memórias Esparsas de uma Biblioteca”, além de ter lançado um CD com poesias em 1998 : “O Prazer da Poesia”. Intelectual, ocupou vários cargos em instituições públicas e privadas, como mandatário; conselheiro e / ou consultor, entre os quais : Fapesp (Conselho Superior da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo); Fiesp (diretor do Conselho de Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; fundou a UNIEMP, entidade criada para fazer a aproximação entre a Universidade e as Empresas privadas; Foi conselheiro da CNPq (Instituto de Tecnologia do Governo Federal); Foi vice presidente da Fiesp; Foi conselheiro internacional da FIAT, Unibanco, e do Banco de Montreal.
Foi membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), e da APL (Academia Paulista de Letras), e também da ABC (Academia Brasileira de Ciências). Conselheiro de vários museus, tais como : Museu de Arte Sacra de São Paulo; MAM do Rio de Janeiro & MAM de São Paulo (Museu de Arte Moderna); Museu Lasar Segall; Membro honorário do Conselho Internacional do Museu de Arte Moderna de Nova York. Presidente da Fundação Crespi Prado; membro do Conselho da Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional; Presidente da Casa de Cultura de Israel; Presidente da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo.
Foi membro do Conselho da Vitae – Apoio à Cultura, Educação e Programas Sociais; membro emérito da John Carter Brown Library, de Providence – Rhode Island / USA, e da Associação Internacional de Bibliófilos de Paris. Foi também presidente da Aliança Francesa de São Paulo, e do Conselho editorial da EDUSP (Editora da Universidade de São Paulo). Mantinha o título de Professor Honorário da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. E contou com muitos títulos de Doutor Honoris Causa em Letras, pelas Universidades : Brown University (Providence – Rhode Island / USA); UNB (Universidade de Brasília); Universidade da Bahia; Universidade do Tocantins, e Universidade de São Paulo. Ganhou o premio, Juca Pato de intelectual do ano em 1998; Premio Unesco de 2003, na categoria Cultura; Medalha do Conhecimento, outorgada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Premio João Ribeiro da ABL. No final da vida, a sua coleção batia na casa dos trinta e oito mil livros.
Em 2006, ele e a sua esposa, Guita Mindlin que também nutria paixão pela coleção, doaram quinze mil títulos para a Universidade de São Paulo, e entre eles, muitas raridades bastante valiosas, como por exemplo, um pergaminho datado de 1480; manuscritos de padres jesuítas do século XVI, a conter as suas primeiras impressões sobre o Brasil, além da primeira edição de : “Os Lusíadas”, de Camões.
Alguns livros continham histórias particulares, como por exemplo, uma rara edição de “O Guarany”, de José de Alencar, que custou dezessete anos de paciência para Mindlin poder enfim angariá-lo para a sua estante. De fato, para um colecionador, a tenacidade e a paciência são fundamentais, como ferramentas aliadas. E as pequenas frustrações geradas pelos vacilos, também costumam assolar os colecionadores. Mindlin arrependia-se amargamente por não ter adquirido um raro exemplar da primeira edição de “Cultura e Opulência do Brasil”, de Antonil, publicado em 1711, pois nunca mais ele chegou perto de tal exemplar.
É bem verdade, mais que um impulso, o colecionador precisa cultivar a percepção da oportunidade única. Mindlin dizia sempre que não considerava-se dono dos livros, mas apenas um guardião temporário daquela coleção, e que cabia ao governo a prática em abrir bibliotecas, com a ajuda dos empresários privados, via contrapartida social. Claro que é um pensamento correto, mas enquanto a classe política não mergulha nessa máxima, definitivamente, temos mais é que aplaudir um colecionador voraz e criterioso como foi José Mindlin, que dedicou a sua vida para formar tal tesouro inestimável, e o doou à coletividade. A coleção hoje faz parte do Museu Brasiliana da USP.
Além do fomento total ao livro, o brasileiro precisa discernir a entender a diferença entre o que é uma coleção séria e valiosa, em contraposição ao lixo armazenado por acumuladores compulsivos. Muita gente confunde tais conceitos nesse sentido, e assim, tesouros valiosos culminam em alimentar caçambas de lixo, graças à falta de discernimento de pessoas que nem sabem avaliar o material com o qual os seus idosos que partem desta vida, possuíam. Eu mesmo recebi uma coleção incrível de livros de uma amigo meu, que sabedor que eu apreciava o teor de algumas obras, teve o bom senso de ofertá-los à minha pessoa, quando o seu avô faleceu, em detrimento do fato de que a sua família iria jogá-los no lixo. José Mindlin faleceu em 2010, e a sua coleção está a ser bem tratada e usada pela USP, mas eu torço para que seu bom exemplo espalhe-se, e tenhamos dias melhores, com o livro a ser tratado como um tesouro, e não algo a ser jogado dentro de uma caçamba.
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2015

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Sujar; Pichar; Vandalizar, Destruir... - Por Luiz Domingues




O termo, “vandalismo”, vem da antiguidade, quando tribos de origem germânica, chamadas como, “Vândalos”, invadiram Roma, e provocaram uma onda marcada pela destruição; pilhagem e agressões generalizadas. Obviamente selvagens, eram considerados bárbaros pelos romanos e daí, a palavra, “vândalo”, ganhou conotação a designar pessoas dotadas com uma baixa qualificação cultural, disposta a destruir o patrimônio público e / ou privado; promover algazarras; agressões gratuitas contra pessoas inocentes a esmo etc.
Ao longo da história, tal conotação fortaleceu-se, e o vandalismo tornou-se o termo para designar esse tipo de ato provocado por essa gente. Bem, na antropologia; psicologia; semiótica; pedagogia, e até na pediatria, existe teses as mais variadas para explicar a motivação por trás desse tipo de atitude / mentalidade. Uma das mais usuais, é a de que no final da infância e começo da adolescência,  os hormônios estão a explodir, e isso necessita de um ponto de vazão.
De fato, isso procede, mas se fosse um fato normal buscar tal escape através da destruição, não haveria civilização, e nem as pinturas rupestres teriam escapado nas cavernas, não acha ?


Outra boa explicação vem da psicologia. A explosão da puberdade provoca a necessidade de autoafirmação para os meninos, através da extrapolação da energia bruta, para demarcar território entre os machos; e assim estabelecer lideranças entre grupos, na base do mais forte, ou a buscar sobressair-se pela inteligência bélica; para chamar a atenção das meninas. Como adendo à tese acima descrita, acrescento que nos últimos tempos, mudanças de parâmetros socioculturais fazem com que as meninas busquem o mesmo princípio, baseado na força bruta, com agressividade. Isso põe em cheque a tese de que as diferenças observadas em torno dos cromossomos e hormônios sejam estáticas e indissolúveis. Pois o fato das meninas possuir pouca quantidade de testosterona no seu organismo, não significa que não possam deter um grau de agressividade parecido com o dos meninos.
Independente disso, se testosterona fosse desculpa para destruir, recorro ao raciocínio expresso no primeiro item : não teríamos construído uma civilização; cultura; ciência; arte etc. A semiótica também fornece a sua visão para o caso. Se tudo é relativo na questão que estuda a relação entre significado e significante, obviamente que destruição; sujeira; rabiscos; dejetos e que tais, são considerados como fatores “feios”, mas relativamente, pois poderiam significar como elementos “bonitos”, sob outro ângulo. Claro, enquanto teoria meramente subjetiva, faz sentido, mas na prática civilizatória, isso não pode ser interpretado dessa forma simplista. Ninguém que tenha as faculdades mentais em ordem, rasgaria uma nota de cem dólares sob a alegação de que sob uma visão paralela do universo, aquela nota não contenha valor algum...


No campo da cidadania, é que os parâmetros para analisar tal questão, parecem ser os mais sensatos, e que perdoem-me os que desprezam a civilização, e sobre quais formatar-se as suas alegações em termos de ordem política; ideológicas, ou sociológicas.
A forjar uma ideia básica de que a urbe é uma mera extensão de sua habitação, o raciocínio perene é : você destrói sua casa; vive em um autêntico chiqueiro; gosta de condições insalubres de higiene e segurança; aprecia a feiura estética dos escombros ? Antes que alguém apresse-se em contra-argumentar, sim, eu sei que existe pessoas que vivem assim, e entre elas, há as que gostem em viver sob tais condições.
Tirante as pessoas acometidas de patologias de ordem mental, quem realmente aprecia viver dessa forma ? Portanto, ao apelar para o bom senso da maioria, e a excetuar-se alguns tipos de pessoas com comportamento não padronizado, tais como : os prejudicados por doenças de ordem mental; os que sejam sociopatas; misantropos; adeptos de seitas religiosas / filosofias radicais que preguem como norma o abandono das normas sociais, com renúncia absoluta dos valores, normas e parâmetros da sociedade moderna; os adeptos de sistemas políticos radicais baseados em niilismo; os seguidores de estéticas niilistas que buscam no confronto com a dita normalidade vigente, a sua razão de ser para expressar-se no mundo, e os simplesmente antissociais e dispostos a chamar a atenção pela excentricidade em portar-se como “do contra”, a pergunta que não quer calar é : para que praticam o vandalismo contra o patrimônio público e / ou privado ?


Primeiro ponto : tirante as pessoas situadas em setores “especiais” das quais eu descrevi acima, a maioria, teoricamente, gosta de viver em casas confortáveis; bem acabadas; bem decoradas ao seu gosto cultural, limpas e organizadas.
Falei algo absurdo ? E salvo algum acidente doméstico, ou até mesmo um momento de fúria esporádica, e motivada por uma briga familiar mais exacerbada, quem em sã consciência sai a vandalizar o próprio lar, a quebrar objetos, móveis e utensílios, espalhar sujeira e a pichar as paredes com rabiscos horrendos ? Reitero, nem percam tempo em contra-argumentar que exista pessoas com tal mentalidade, porque de pronto digo-lhe : sim, sei que existe, mas representam uma minoria ínfima.
Ao partir dessa premissa, se a cidade é uma extensão de nossas casas, por quê devemos aturar a destruição sistemática dos equipamentos urbanos; os monumentos; jardins & parques ? Por quê devemos acostumarmo-nos com o lixo espalhado nas ruas; calçadas quebradas; lixeiras estraçalhadas pelos vândalos ? Por quê vivemos em meio a escombros; odores fétidos; placas de sinalização rabiscadas ?
Enfim, por quê no Brasil ainda impera a mentalidade da miséria urbana, como padrão ? Então chego ao último item que teria uma possível explicação acadêmica : trata-se de uma questão cultural. Visto sob parâmetro sociológico, em países como a Finlândia; Suécia; Japão; Alemanha, e Suíça, para ficarmos em poucos exemplos apenas, a quase ausência de vandalismo em suas respectivas sociedades, denota um outro tipo de mentalidade cultural generalizada, e que faz toda a diferença, portanto. Em suma, como quase tudo o que envolve comportamento, a chave é : educação.
Se desde pequeno, o cidadão for educado para não considerar correto jogar a embalagem de uma bala no chão; não achar bonito rabiscar a parede com canetinha; a respeitar as regras de trânsito, mesmo como pedestre, e que os monumentos da cidade são objetos de arte, ao representar simbolismos importantes da sua própria história, tanto quanto os seus álbuns de fotografias de família, que ele não destruiria, acredito que em duas gerações, no máximo, a percepção mudaria. Portanto, o desafio educacional vai muito além da erradicação do analfabetismo, tampouco no tocante à melhora da qualificação para o “mercado de trabalho”. A grande tarefa é mudar a mentalidade de um povo que divide-se entre os que acham “bom” viver em um chiqueiro; e os que sentem resignação por esse status quo, pois simplesmente não acreditam que o Brasil possa ter outra qualificação sociocultural. De volta ao início da matéria, de onde vieram mesmo os vândalos, aqueles trogloditas bárbaros que horrorizaram Roma ? E o que tornou-se a Alemanha, séculos depois, senão um exemplo de organização social de altíssimo padrão civilizatório ? Pois é... a educação !
Matéria publicada inicialmente no Blog Planet Polêmica, em 2015

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Quem tem Medo da Verdade ? - Por Luiz Domingues




Quando a produção responsável pela direção da TV Record de São Paulo, começou a notar que a sua fase de ouro estava a esgotar-se, ao final dos anos sessenta, adotou-se em sua cúpula, uma série de providências para criar novos programas, ao visar adaptar-se aos novos tempos, e assim reagir diante do crescimento de seus concorrentes. Na falta de um “vidente” poderoso que desse-lhe uma dica valiosa e certeira, errou feio ao deixar de investir na sua galinha dos ovos de ouro, ou seja, os programas musicais que deu-lhe fama; prestígio e fortuna.
Não que outras atrações também não ofertassem tal sustentáculo, e de fato, havia a linha infantil; jornalismo; esportes; variedades e dramaturgia bem azeitadas, além de sessões de cinema caprichadas, as melhores séries e desenhos animados internacionais daquela década etc. Todavia, o carro chefe que tornou a Record a melhor emissora naquela época, certamente foi a aposta nos programas musicais sensacionais, com música de qualidade para todos os gostos, além é claro, do furor que foram os seus festivais de MPB, ao entrar para a história, sem dúvida alguma, e também o fenômeno Pop da Jovem Guarda. Portanto, quando a música teve o seu espaço diminuído, a Record começou nesse preciso instante, o seu triste declínio. Nesse ambiente marcado por mudanças, um programa de extremo mau gosto foi lançado, em 1968, com o objetivo em recuperar a audiência que começara a cair, e tratou-se de uma aposta medonha.
Chamado : “Quem Tem Medo da Verdade ?”, tratou-se de um simulacro de “tribunal”, onde um artista, ou personalidade de outra área, mas igualmente famoso, era submetido a um julgamento sumário, sob acusações estapafúrdias em torno de supostos deslizes cometidos através de atos, e / ou declarações feitas em público. A ideia já fora abominável no seu nascedouro, pois partiu-se da premissa de que a vida alheia valia a pena ser discutida em público, e muito pior, contestada por julgamento moralista da parte de conservadores e polemistas mal intencionados em geral.
Ao ir além, o julgamento moral que viria a reboque, denotou um retrocesso em meio a uma sociedade que mudava bruscamente, para quebrar paradigmas. Por outro lado, deixou claro que setores retrógrados da sociedade, estavam incomodados com tais transformações, e tal programa mostrou-lhe os dentes cerrados da reação. Contudo, quando foi ao ar, tudo piorou ainda mais, pois se em tese fora uma ideia horrorosa, na prática, tornou-se um show de horrores, ainda pior.
O esquema era de fato o de um tribunal acusatório, com vários “jurados” que também acumulavam o papel de promotores, portanto, faziam acusações, inquiriam o “réu”, e ao final, proferiam sua decisão, para condená-lo ou absolve-lo. Uma figura pública, geralmente um artista ou jornalista, fazia o papel de advogado de defesa do “acusado”, no entanto, mesmo que a sua argumentação fosse coerente, a intenção ali era atacar com violência, e condenar, sempre. As intervenções dos acusadores eram muito agressivas, portanto, o programa era tenso, e muitas vezes descambava para discussões explícitas, e com troca de ofensas pessoais entre os jurados e o réu. Para quem acreditava que era tudo uma mera encenação, apenas para prender a audiência, na verdade assustou-se com a truculência, falta de lisura, e até a verificar manifestações de preconceito, que ali vieram à tona.
Entre 1968 e 1971, enquanto esteve no ar, protagonizou noitadas deploráveis para a história da TV brasileira, e para muitos historiadores, tratou-se de um precursor dos programas “Mundo Cão”, que anos depois tornar-se-iam uma peste na grade da TV aberta (e infelizmente a invadir também o espaço da TV a cabo, anteriormente um refúgio para quem fugia da baixaria da TV aberta...). Claro, havia “O Homem do Sapato Branco”, que inclusive era mais antigo, e também entra nesse rol de precursores da baixaria na TV. 

Outra marca registrada do programa foi a dose maciça de desdém, com a qual os “réus” eram inquiridos.
Talvez por influência do texto mordaz da peça teatral : “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf ?” (isso é uma especulação minha, e não um fato histórico comprovado), Carlos Manga tenha tido inspiração para o título do programa, mas sobretudo pelo mote, existe uma ligação. Tal como no teor do texto dessa peça teatral. A versão para o cinema, de 1966 (capa do DVD, acima), também é ótima, e dá uma ideia boa do que trata tal peça. 

Os jurados faziam de tudo para constranger o acusado, ao provocá-lo com alfinetadas (esteve mais para apunhaladas...), explícitas.
Era clara a intenção em de tirar a pessoa do sério, e de fato, muitas vezes isso aconteceu, e poucos foram os que tiveram presença de espírito para não abalar-se e / ou dar o troco aos acusadores, extremamente ignorantes; agressivos e carcomidos por preconceitos odiosos. O cenário do programa era intimidante ao extremo. Com focos de luz exagerados sobre o acusado, parecia a ambientação de um interrogatório da Gestapo, com vários inquisidores agressivos, a falar freneticamente e a fazer de tudo para ridicularizar, desdenhar, e provocar o acusado, até que ele reagisse e quando invariavelmente perdia a cabeça e a compostura, para responder à altura, tal reação de destempero era usada contra o acusado, como a reforçar a sua suposta culpabilidade.
O teor das acusações beirava o ridículo, e expunha o caldeirão de preconceitos de reacionários a revelar-se incomodados com as mudanças comportamentais que permeavam os anos sessenta como um todo. Por exemplo, tornou-se histórico o bate boca do jornalista, Clécio Ribeiro, com o ator, Grande Otelo.
Pairava sobre o famoso ator / comediante / show man, a acusação dele ser um “alcoólatra”, e que por conta de seu vício, tinha um histórico de mau profissionalismo, e até maus tratos contra mulheres. Cansado em ser atacado com aquela enorme truculência por Clécio, Grande Otelo retrucou, ao dizer-lhe que o jornalista não tinha moral para acusar-lhe em ter um vício, pois no decorrer do programa, este fumara um cigarro atrás do outro, a caracterizar que também mantinha um vício.
Enlouquecido, Clécio respondeu com enorme grosseria, que cigarro não fazia mal a ninguém, nem a ele mesmo e que bastava um copo de leite para desintoxicar-se, enquanto Otelo, por sua embriagues, não curar-se-ia nem que bebesse uma vaca inteira. Acrescento que à luz da nossa visão de século XXI em curso, a argumentação do dito jornalista, beira a insanidade ao ter defendido o tabaco como algo inofensivo ao organismo humano... absolutamente ridículo ! Pior que essa grosseria com o ator, Grande Otelo, ocorreu com outra com a atriz, Leila Diniz.
Símbolo de uma mulher moderna que emancipava-se, Leila foi a mais “descolada” artista de cinema do Brasil à época. Convidada para participar, suportou inicialmente as provocações a levar na brincadeira, e debochar dos jurados, ante o seu show montado em torno de acusações fascistas, extraídas de algum manual de moral medieval, e redigido por aquela turma que faria Torquemada  orgulhar-se por ver o seu legado vivo no século XX. Mas eles apelaram, e foi feio...


Mais uma vez, Clécio Ribeiro, o dito polemista mais virulento do programa, pegou pesado e disse à Leila, quando esta deixara escapar que sonhava em ser mãe, que ela não merecia nem sonhar com isso, pois uma “prostituta como ela, jamais poderia ousar querer exercer o sagrado direito da maternidade”. Isso a tirou do sério e mesmo ao ser despachada e segura de si ao extremo, Leila abandonou o programa aos prantos, pois definitivamente, o acusador fora longe demais.
Roberto Carlos foi ao programa, e as acusações foram : “ser cabeludo”; e estar a “desvirtuar a juventude do caminho do bem”. Ora, justo o Robertão, que sempre foi um bom moço católico, e sem rebeldia alguma; adorado pelos idosos; menino bonzinho que conduz a vovó à missa dominical etc.
Enfim, colocaram um padre católico como membro do júri, e que foi duro com ele, ao expor a sua argumentação escolástica, e sem nenhum cabimento para o século XX...
Ao final, o advogado de defesa, ninguém menos que, Silvio Santos, argumentou com a sua lógica de vendedor de carnês, que Roberto era “barra limpa” e que o “iê-iê-iê” não seria nocivo à juventude. Faltou explicar o que significava esse neologismo idiota, que não designa absolutamente nada sobre uma estética musical e que somente ele repetia à exaustão em seu entediante programa dominical. Aracy de Almeida e Silvio Luiz (pelo amor dos meus filhinhos...), também faziam parte desse corpo de jurados, e pegavam pesado com os "acusados".
O próprio diretor, Carlos Manga, um dos criadores da atração, foi o mediador e costumava estabelecer uma teatralização exagerada, para conferir um ar melodramático ao “julgamento”. Manga foi um grande diretor de cinema e TV, e que na própria Record, detinha uma longa ficha com ótimos serviços prestados, mediante uma contribuição real para a grandeza da emissora, mas nesse caso... bem, ninguém é perfeito...
José Mojica Marins e / ou seu personagem, Zé do Caixão também foi devidamente demonizado pelo tribunal inquisitório, assim como diversas outras personalidades que eram famosas no meio da TV, na ocasião. Muitos trechos de edições desse programa estão disponibilizados no You Tube.
Ao assisti-los hoje em dia, tais cenas provocam risadas, tamanho o caráter absurdo da argumentação dos acusadores, e a sua histriônica atuação para colocar ênfase nas asneiras que falaram. Entretanto, é uma risada nervosa, pois chega a dar raiva em verificar aquele festival de manifestações execráveis perpetrado por esses brucutus.
Particularmente, apesar de eu ter sido criança na época, lembro-me em ter visto ao vivo, muitas vezes e mesmo sem a compreensão intelectual que tenho hoje em dia como adulto, o programa já embrulhava-me o estômago, mais pela tensão instaurada, do que pela compreensão mais pormenorizada da situação ali expressa, que eu não podia ter com aquela idade. Foi em linhas gerais, de uma agressividade gratuita; arbitrária; inquisitorial; carcomida por preconceitos; ignorância, e truculência. “Quem tem Medo da Verdade ?” foi uma página lamentável e contraditória para uma emissora que tantas produções boas colocou no ar, ao dar a sua ótima contribuição cultural ao povo brasileiro. Nesse caso, foi um grande equívoco de sua parte, e não curiosamente, mas de forma sintomática, a TV Record nunca mais foi a mesma, ao decair muito e arrastar-se pelas décadas de setenta e oitenta, até ser vendida pela sua então proprietária, a família Machado de Carvalho para um grupo religioso, que a mantém em seu poder, desde o início dos anos noventa. O problema nem foi ter “medo da verdade”, mas a melhor pergunta seria : que verdade foi aquela, em que os paladinos da moralidade, daquele “tribunaleco” espúrio, referiam-se ?
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2015