sábado, 30 de dezembro de 2017

Relaxem, Rockers: o Rock in Rio não é um Festival de Rock - Por Luiz Domingues



Muito comentou-se sobre o Festival Rock in Rio, antes, durante e após a sua realização, recentemente, por ocasião de sua edição de 2017. Principalmente nas Redes Sociais da Internet, o bombardeio foi intenso e tirante uma ou outra voz lúcida, a imensa maioria destilou veneno; desdém, escárnio, portou-se como “torcedor uniformizado” a favor de certos de artistas para atacar “torcedores” de outros artistas e protagonizou uma quantidade gigantesca de comentários pautados pela suprema ignorância, sob todos os aspectos imagináveis.  

Isso não é nenhuma novidade, pois trata-se de uma tradição que iniciou-se desde a primeira edição do Festival, no hoje longínquo ano de 1985. Já naquela ocasião, a polêmica instaurou-se sob vários níveis, mas sobretudo a respeito da questão do critério de escolha do dito “line up” do mesmo, ou seja, a falar-se no bom português, o seu elenco de artistas escalados.



Sob uma primeira análise, por autodenominar-se um festival de Rock, causou estupefação a ausência de muitos artistas genuinamente Rockers, em detrimento de atrações nada familiares a esse universo, e assim a gerar muita controvérsia. 

Lembro-me bem, uma artista histórica do Rock brasileiro, como Rita Lee, foi convidada às vésperas, quase como uma resposta ao clamor popular, visto que o seu nome não constava da primeira lista anunciada. Tudo bem, não era mais o auge criativo dela e há anos ela vivia mais uma carreira Pop, no sentido literal do popular, do que verdadeiramente inserida no contexto do Rock, mas teria sido inacreditável ela não ter participado de um festival de tamanha magnitude e ouso dizer, sem demérito a festivais históricos e assumidamente Rockers do passado (Festival Hollywood Rock 1975; Festival de Iacanga/Águas Claras' 1975, Festival de Saquarema' 1976 etc), o Rock in Rio de 1985, pautou-se por ser o primeiro sob um grau de profissionalismo com padrão internacional e daí a importância que ganhou no imaginário, generalizado.



Só que houve um detalhe nesse raciocínio e que poucos perceberam de imediato: tratou-se de um empreendimento particular e realizado por um escritório empresarial com pouca ou nenhuma noção sobre o Rock, a sua história e os seus múltiplos desdobramentos. 

Portanto, ao valer-se de opiniões vindas de uma assessoria talvez não exatamente com essa matéria na ponta da língua, eis que realizou a sua escalação a buscar o que julgou ser mais viável sob os parâmetros comerciais e a levar em conta o Raio-X daquele momento em termos de “Hit Parade”. Daí, privilegiou-se o Rock brasileiro em voga, representado por alguns nomes na crista da onda no mainstream e oriundos do denominado movimento: “BR-Rock" oitentista; uma noite “pesada” a agradar os “Headbangers”, ou “metaleiros” como a mídia pejorativamente estigmatizou aquela garotada adepta das correntes de Heavy Metal (outro fenômeno oitentista), e o enxerto com artistas da música Pop internacional; astros da MPB e alguns “dinossauros” setentistas, casos do "Queen" e do "Yes", que estavam mais para o mundo Pop, naquela época, do que centrados em seus respectivos trabalhos mais proeminentes da década de setenta. 

Sem esquecer igualmente de mencionar: que bom que tiveram a honradez de convidar também, Erasmo Carlos & Ney Matogrosso e o Raul Seixas só não foi por que a sua saúde já estava bem debilitada nessa ocasião. Se comparada às edições posteriores, essa edição inicial pode ser considerada a “mais Rock” de fato, pois muitos anos depois, a avacalhação nas escolhas foi ainda mais gritante. 

Então, inevitavelmente veio a tornar-se um festival quase infantilizado, um verdadeiro parque de diversões a la Disney World, portanto, eu não tenho dúvidas que na concepção de seus organizadores essa máxima do entretenimento de massa e ultra pasteurizado é um lema e contra números não há argumentos, pois de nada adianta contestar a presença de artistas popularescos que fazem sucesso no carnaval, quando estes fazem shows para centenas de milhares de pessoas que “saem do chão” ao seu comando, a caracterizar uma avaliação sobre o que representa o sucesso absoluto para a mentalidade de tais produtores.  

 

Isso sem contar as atrações internacionais de gosto muito duvidoso. Não exatamente nesta edição de 2017, mas na anterior, eu recordo-me que escalaram uma cantora Pop com forte apelo “Teen”, dessas que não fazemos a menor ideia de quem se trata, mas tem milhões de seguidores no mundo inteiro e a sua filha de dez anos de idade, provavelmente adora. Pois essa cantora, que nem vou citar o nome, pois não quero caracterizar que tenho uma adversidade para com ela, mesmo por que, realmente é claro que não tenho (o artista em si, em tese, não apenas essa moça que cito neste parágrafo, não tem culpa de nada. Ele está na sua função, a fazer a sua obra e se ela é ruim ou não, a sua legitimidade em existir é inalienável enquanto livre expressão da arte, eu acredito nisso). 

No entanto, o caso é que tendo uma boa experiência na militância musical, e ao gostar ou não da estética e da expressão de qualquer artista, eu consigo discernir se a sua arte tem ou não, alguma relevância, com capacidade em estabelecer empatia, deixar uma mensagem ou ao ir além, bem além mesmo, ser passível de legar algo à humanidade, mesmo que seja uma parcela modesta de contribuição. 

Contudo, no caso dessa mocinha estrangeira com um nome exótico, eu ouvi o seu trabalho e alguns clips e infelizmente a sua obra e expressividade artística era praticamente nula. Dona de um único sucesso radiofônico e que a alçou para a condição de “Super Star”, foi escalada para o festival tendo apenas uma música conhecida e mesmo assim, esta peça não passava de uma canção insípida, nada além de um refrão razoável e passível de ser cantarolado por seus fãs, mas realmente nada além disso. Escalar uma artista assim irrelevante, em detrimento de artistas com história e dos quais não há nem cogitação de participação nas reuniões de "brainstorm" desses produtores em questão, é o que verdadeiramente irrita os  Rockers contumazes, isso eu compreendo.

Chegamos à edição de 2017 e mais uma vez, as reclamações surgiram. É inacreditável que bandas históricas do Rock brasileiro não sejam nem cogitadas, nem que fosse para tocar em um palco secundário, não o principal. Se Rita Lee participou em 1985, quase a fórceps, e a considerar-se que desde 1979, ela mantinha uma carreira Pop altamente midiática, com apoio radiofônico massivo e a emplacar sucessivos temas para as trilhas de novelas da Rede Globo, o que dizer então sobre o Made in Brazil; Patrulha do Espaço, O Terço e outras tantas bandas com tamanha bagagem, que são ignoradas desde sempre?


Outro ponto, por ser mais um festival Pop ou mesmo popularesco, do que realmente um festival de Rock, algumas distorções são abomináveis. Algumas bandas de Rock convidadas não justificam as suas presenças, mesmo sendo bandas de Rock, em tese, pois a sua importância é praticamente nula na história, sendo mero fruto do “hype” de ocasião ou até alguns grupos que vem repetidamente em edições seguidas do festival e cuja superestimação no imaginário da formação de opinião, chega a ser irritante, caso de uma em específico cujo cantor, que mesmo no seu auge, trinta anos atrás, já era horrível e agora, mundo de 2017, sem voz alguma chega a ser constrangedor, isso sem contar que a banda não justifica a sua fama, em detrimento de sua fragilidade artística, aliás, mesmo em seu suposto auge já o fora assim, portanto... francamente...


Diante de tudo isso, devemos entender que o Festival Rock in Rio não é, nem nunca foi um festival verdadeiramente de Rock, embora tenha tido os seus lampejos nesse sentido e até produzido alguns bons momentos, eu reconheço. Na verdade é um festival Pop, com forte mentalidade calcada no entretenimento de massa, baseado em seus anseios e signos inerentes. É um parque de diversões ao estilo Disney, concebido a estimular o ultra consumo e nada mais. Os seus organizadores e patrocinadores, esperam de seus frequentadores, a mesma reação das crianças nos parques da Disney, ou seja, ao invés de comprar os souveniers do Mickey Mouse e da Branca de Neve, eles querem que você faça "caras & bocas", acompanhado do indefectível sinal do “mallochio” e coma muita pipoca, talvez ao substituir o refrigerante pela cerveja, mas o resto é tudo igual.


Eventualmente vai haver a presença de um artista de Rock, relevante e com bagagem histórica, pois então comemoremos a vinda do The Who, tardia e representada apenas pela dupla sobrevivente e hoje na terceira idade, mas está tudo bem, Tommy e Quadrophenia soaram ao vivo, enfim, na terra tupiniquim... e entre artistas novos, um ou outro mostra serviço e nada mais.



Alice Cooper fez o seu tradicional show teatralizado, sensacional e ainda trouxe, a persona de Arthur Brown, algo inacreditável. Poucas pessoas sabiam quem era aquele velhinho maluco com uma coroa incandescente na cabeça, mas quem conhece a história, sabe da sua importância nos anais do Rock. Fire: houve fogo no mundo louco de Arthur Brown! 

E teve também o Aerosmith, com dignidade, eu diria, apesar da idade estar a avançar e pesar para Tyler; Perry e Cia. 

Se não criarmos mais expectativas errôneas, a respeito de tal festival, e aproveitarmos as pequenas doses genuinamente Rockers que ofertam-nos, creio que não estressaremos mais, desnecessariamente. 

Matéria publicada inicialmente no Blog Limonada Hippie, em 2017

Os Kurandeiros - 30/12/2017 - Sábado / 21 Hs. - Tchê Café - Vila Santa Catarina - São Paulo / SP



Os Kurandeiros

Último show do ano ! Feliz 2018 !

30 de dezembro de 2017 – Sábado – 21 Horas

Tchê Café
Avenida Washington Luiz, 5628
Vila Santa Catarina
500 metros do Aeroporto de Congonhas
São Paulo – SP



Os Kurandeiros :
Kim Kehl : Guitarra e Voz
Carlinhos Machado : Bateria e Voz
Luiz Domingues : Baixo

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Filme: Repulsion (Repulsa ao Sexo) / Roman Polanski - Por Luiz Domingues



Olhar petrificado...

Um close que vai a abrir-se, para dar início a uma panorâmica e mais que isso, a revelar uma história impressionante sobre a degradação sem fim. É dessa maneira que "Repulsion" ("Repulsa ao Sexo"), começa, com o olhar da personagem, Carol (interpretada por Catherine Deneuve), alheio ao seu trabalho como manicure em um salão de beleza. Ela é uma jovem belga, muito bonita e que vive de maneira simples em Londres, ao dividir um apartamento alugado com a sua irmã mais velha, Helen (Yvonne Furneaux). Tímida ao extremo, ela mal consegue encarar as clientes do salão onde trabalha e a sua vida resume-se ao vai-e-vem da casa ao trabalho. Ao andar pelas ruas, Carol chama a atenção pela formosura, e os olhares masculinos a fulminam. Dos mais grosseiros, recebe as inevitáveis cantadas baratas que constrangem-na. 


A bela trilha sonora, assinada por Chico Hamilton, a acompanha mediante a investida de um jazz "cool", através de uma Londres de 1965, no entanto, sem evocar nenhum sinal revolucionário dos anos sessenta em curso, sequer. Parece ainda um mundo cinzento e cinquentista do pós-guerra, sem grandes mudanças culturais & comportamentais em andamento.


Em sua residência ela vê a própria irmã a preparar um coelho para o jantar e entre outras tomadas intrigantes, uma foto familiar é mostrada rapidamente, com a imagem de uma jovem (na verdade a sua a irmã mais velha, em foto antiga), uma criança e idosos a a posar despreocupadamente sob um momento tranquilo vivido no passado e Carol a viver a sua infância, sendo a menina lourinha, em pé, no enquadramento do retrato. 


Na atualidade, a irmã possui um amante. Parece um tipo aproveitador e que sendo casado com outra mulher, deseja apenas momentos de diversão extraconjugal e nada mais. Carol tem nojo do amante da irmã e demonstra isso logo nas primeiras cenas, com uma atitude recôndita e que só o espectador vê. Durante as madrugadas, o inevitável barulho que o casal faz durante o ato de amor, a incomoda demais. Seria pudica por natureza, ou haveria um outro motivo?


A irmã, Helen, está atolada em dívidas e o telefone não para de tocar, a sugerir cobranças ameaçadoras. 

Carol tem um pretendente. Encantado com a beleza dela, Carol, Colin (John Fraser), nutre sentimento sincero pela moça e não é um cafajeste qualquer. Ele a aborda com educação, mas ela não demonstra intenção em dar-lhe alguma chance, ao portar-se com uma timidez desmedida, a passar do ponto razoável, para algo que o intriga, em princípio. Colin encontra amigos em um pub, mas esses são pouco preocupados com o cavalheirismo e assim, com a conversa a girar em torno de bravatas sexuais, essa diferença de comportamento causa-lhe desconforto. Colin é um rapaz com bons propósitos, diferente da maioria. 


Ao ignorar um convite de Colin para um encontro, Carol está em uma esquina, com olhar distante, perdida. Aos seus pés, uma rachadura na calçada, chama a atenção do espectador, mas é enigmática a simbologia até então. Colin a aborda e atônito, percebe que ela está estranha, dispersa. Em casa, dá mais sinais de que sente nojo do amante da irmã, através de pequenos gestos que esbarram no fator escatológico e mesclam-se em momentos de apatia sonífera. Carol não suporta ver e/ou ouvir a sua irmã a namorar e o sono transforma-se em sua válvula de escape para fugir desse tormento. 

De volta ao trabalho, ela dá mostras de estar a piorar. A sua patroa está a notar a piora de sua conduta nos afazeres do salão e concomitantemente, as conversas de clientes maduras e casadas, perturbam-na, principalmente quando falam com desdém de seus maridos e dos homens em geral, ao personificá-los como sendo meros seres tarados, sem sentimentos.


Por estar a intensificar o processo de deterioração mental, Carol passa a ter "flashs" com cunho extra/sensoriais. Dessa forma, ao misturar realidade e fantasia, ela passa por vários surtos no apartamento. 

Sinais (inexistentes em realidade), de rachadura nas paredes e no piso, começam a atormentá-la, o corpo inerte do coelho em uma panela, não parece mais um alimento em fase de preparo, mas sim um putrefato elemento mórbido. Mãos ameaçadoras sucumbem das paredes a tentar agarrá-la. Ela apavora-se quando vê no espelho, um ameaçador intruso, mas não havia ninguém no apartamento, na realidade. 

Carol sai às ruas e o seu estado piora. Vaga como uma zumbi, ao som de uma caixa de bateria que reproduz uma batida militar agressiva, ameaçadora. O coelho agora não tem mais cabeça sobre a travessa e ela tem uma macabra epifania, a visualizar um homem que a estupra dentro do apartamento. Sob um ritmo de edição rápida, o diretor, Roman Polanski, propõe o susto como efeito ao espectador, porém mais que isso, sucinta o enigma: aconteceu de fato, ou não? Carol está a enlouquecer?

A sua performance no trabalho piora, quando corta o dedo de uma cliente. É mandada embora do emprego, e uma colega acha a cabeça do coelho dentro de sua bolsa. Já está claro que Carol está a surtar, ao perder o controle e sucumbir às fantasias de sua mente confusa. Em um encontro fortuito com Colin, o seu pretendente, ela rejeita-lhe um beijo, o que deixa o rapaz mais que frustrado, contudo intrigado com tal comportamento.

Uma sucessão de metáforas são apresentadas daí em diante. A rachadura nas paredes confunde-se com o quebrar ao meio de um biscoito. Rupturas, sem dúvida. 

Carol divide-se, quando perde o contato íntimo com o seu Eu interno. Catatônica, vê na TV um documentário onde imagens das engrenagens de uma máquina industrial de efeito repetitivo, insinua o ato sexual. 

O namorado a procura, toca a campainha, insiste para que ela abra a porta, mas Carol reluta, mal a respondê-lo, apenas a denotar sentir-se assustada. Impaciente, o rapaz arromba a porta em meio a um ato de desespero, mas na verdade, ela não quer agredi-la, tampouco possuí-la à força. Quer apenas entender o por que de seu comportamento arredio e enigmático. Sob o olhar desconfiado da vizinha que observa-os do corredor, eles travam um diálogo em que nada se esclarece a situação para ele. Eis que mediante um arroubo de loucura, Carol o mata, a usar um objeto pontiagudo da casa. Em seguida, fica desesperada pelo ato insano e improvisa uma barricada na porta, como a isolar-se ainda mais do mundo. Então, ela arrasta o corpo de Colin até a banheira e mergulha-o. Parece buscar uma espécie de purificação, uma expiação através da água.

Por demonstrar estar lesada, emocionalmente, senta-se e costura enquanto cantarola. Estaria aliviada ao sentir-se purificada, mesmo diante depois de ter sofrido por um óbvio surto psicótico? 

O coelho, conhecido popularmente por sua rapidez no coito sexual, seria um símbolo de promiscuidade que ela abominava? 

Horas se passam e o cadáver de Colin está ali, agora deitado na cama. Carol parece não importar-se e o apartamento está revirado, sob uma caótica condição que reflete na verdade o seu estado de espírito interior. Chega um cartão postal que o carteiro joga por debaixo da porta. São notícias da irmã e do amante, que estão aparentemente felizes em Pisa, na Itália. O quanto a famosa Torre dessa famosa cidade italiana e ilustrada no cartão, a incomoda como símbolo fálico?

O telefone toca...
 

Carol atende e uma mulher muito nervosa a insulta. Trata-se da esposa do amante de sua irmã, que descobriu tudo e a confunde com Helen. Já em estado degenerativo acentuado, isso só parece ser mais um golpe a incrementar a sua loucura. 

Um novo incômodo acontece. Um homem extremamente desagradável toca a campainha. Quer falar com Helen, sobre o aluguel do imóvel, que está atrasado. É o senhorio, com atitude agressiva e mesquinha. Ele percebe a porta aberta e entra, mesmo sem ser autorizado. Encontra, por conseguinte, Carol em estado deplorável, com o apartamento em frangalhos, mas mesmo assim exige o dinheiro e demonstra não querer saber o que está a acontecer ali. Todavia, mesmo ao receber o dinheiro (através de um arroubo de sanidade, Carol lembrou-se que Helen o deixara armazenado em um envelope, com essa destinação), o senhorio muda de comportamento quando vislumbra uma oportunidade. 

Ao perceber que Carol está confusa, sozinha e a usar trajes íntimos, o homem propõe perdoar a dívida em troca de sexo. Daí, à tentativa de estupro na prática, não houve escalas e agora sim, Carol está diante da concretização de um temor que a atormenta e que por conseguinte, a desequilibra de vez. Ela consegue desvencilhar-se do pulha e o mata, mediante golpes de navalha. Mais uma morte ao som do repique nervoso da caixa de bateria, concebida pelo arranjador musical, Chico Hamilton.


Surtada, definitivamente, Carol vê-se em meio à diversos devaneios com as rachaduras; o coelho apodrecido e outras cenas de espelhos.
 

É diante do espelho que parece estar aliviada enquanto maquia-se, e então, ela escreve frases desconexas em sua superfície, e tem mais delírios com estupros. Uma cena impressiona, com Carol no corredor a ser agarrada por mãos que saem, literalmente das paredes. A sua repulsa ao sexo chega às raias do desespero. Essa cena seria infelizmente usada posteriormente no cinema, inúmeras vezes, copiada literalmente, ao ser banalizada através de filmes de terror baratos.


Sob a ação da chuva, a irmã e o seu amante chegam das férias e encontram o apartamento revirado, com dois cadáveres e Carol completamente entregue, sendo praticamente um cadáver, também, embora ainda com vida, clinicamente a falar-se. Impressiona o assédio dos vizinhos a invadir o apartamento e sem uma ação coordenada de ajuda, apenas ao limitar-se a palpitar, ou seja, um reflexo do que é viver em sociedade.

A cena final é genial, com um pequeno "travelling" a mostrar-nos alguns pontos chave do filme: A rachadura na parede (além do aspecto da ruptura de personalidade-subpersonalidade, é também óbvia a conotação com o órgão genital feminino); o coelho (o aspecto típico da compulsão masculina à promiscuidade); espelho (o confronto com o seu "eu", a sua autenticidade e verdade pessoal) e finalmente, a foto familiar onde o encerramento inverte o início do filme e tudo culmina na imagem de Carol, quando criança, ao lado de familiares e uma impressionante constatação: eis ali, o mesmo olhar petrificante do início do filme!


"Repulsion" é considerado o primeiro filme de uma trilogia que Roman Polanski faria ambientados em apartamentos. A seguir, "Rosemary's Baby" ("O Bebê de Rosemary") e "Le Locateire" ("The Tenant", ou "O Inquilino", em português), completariam essa trilogia. Muitos críticos consideram, "Repulsion", como um filme de terror e são muitas as comparações com "Psyco" ("Psicose"), de Alfred Hitchcock e "El Anjo Exterminador" ("O Anjo Exterminador"), de Luis Buñuel. 

De fato, existem similaridades entre os três. Todavia, sem nenhuma pretensão de discordar de grandes críticos profissionais, acho que "Repulsion" pode ter elementos assustadores, mas isso não faz dele um filme de terror, propriamente dito.Tem sim, muito de thriller psicológico e esbarra na conjectura da psicanálise, sem dúvida.

Outro ponto interessante, eu li uma crítica a dar conta de que o filme é um contraponto à revolução contracultural dos anos sessenta, pois é sombrio; apresenta a sua fotografia em preto e branco, é mórbido, tenso etc. Com isso, o raciocínio seria de contraponto no sentido de que confrontara o colorido da "Swinging London" sessentista, que insinuava-se em meio à Beatlemania sob todo o vapor; a mini-saia como fator libertário para as meninas, o sexo livre e o feminismo propriamente dito. Permito-me discordar desse ponto de vista, pois desconheço que Polanski tenha declarado alguma intenção em contrapor-se à esses valores formalmente através da obra. 

Em segundo lugar, parece-me claro que o objetivo foi o de fazer um filme sobre a degradação interna de um ser humano, diante de paradigmas impostos pela sociedade, no tocante aos tabus do sexo, e a usar como parâmetro, as doenças psiquiátricas catalogadas no CID (código internacional de doenças), que apresentam tais sintomas vividos pela personagem, Carol. E diante de tal perspectiva, em tese, por quê Polanski atacaria quem estava disposto a rompê-los? 

Não pareceu ser essa a sua intenção, pois não enxergo nenhuma conotação reacionária da parte dele. Pelo contrário, a mensagem final parece ser a da constatação de que a personagem, Carol, foi vítima da opressão sexual da sociedade ao impor um papel indissolúvel para as pessoas e ao não encaixar-se nele, Carol perdeu o seu equilíbrio, a adoecer mentalmente.



Em suma, um filme impressionante, que causa reações fortes, e claro que vale a pena assistir como peça cinematográfica de alto nível ou para quem nutre interesse por psicologia, psicanálise e afins. É difícil achar o filme inteiro no YouTube, com legendas em português. Experimente via Telecine Play, e acredito que seja válido perder um tempo para fazer um cadastro exigido, para ter-se o login desse portal.

Eis o Link :
https://globosatplay.globo.com/telecine/v/5021339/