Este filme
foi lançado em 2000, finalmente a honrar a história de um grande nome do Rock
em seus primórdios, nos anos cinquenta, e que influenciou uma infinidade de
artistas nas décadas posteriores. Falo sobre Little Richard, uma pianista/cantor e compositor, sensacional, e no seu caso, demorou bastante para enfim
surgir uma cinebiografia sobre tal astro e o seu legado artístico, visto que outros
pares contemporâneos seus, já haviam sido agraciados anteriormente, casos de
Buddy Holly, Ritchie Valens e Jerry Lee Lewis, sem contar a existência de
documentários, ao menos, para retratar outros astros cinquentistas da mesma
estatura, como por exemplo, com Chuck Berry.
No entanto,
uma tentativa de produzir-se um filme, fora tentada muito antes para abordar a
carreira de Little Richard. Ocorrera em 1980 e tal tentativa foi batizada como: “The Little Richard
Story”. O próprio artista participou desse projeto inicialmente, mas ao
desapontar-se com o rumo em que o desenvolvimento dessa produção transcorreu,
retirou-se do trabalho, muito contrariado. O filme na verdade foi finalizado e
hoje em dia é considerado um documentário, muito mais que um filme de fato e também contém uma pecha satírica, dado a maneira pela qual foi construído.
Ao intercalar
cenas reais de Little Richard, principalmente em apresentações na TV nos anos
cinquenta e sessenta, e também com as sessões de testes para recrutar-se um ator para a
própria produção, tornou-se risível por apresentar a bizarra aparição de diversos
aspirantes ao papel, mais a parecer um programa de calouros da TV, porém
daqueles bem popularescos, ao estilo da “Buzina do Chacrinha”, e dessa forma,
provoca muitas risadas ao espectador. No entanto, Little Richard, pela sua grandeza
artística, merecia algo mais substancial, digamos, e assim, quando surgiu a
produção, “Little Richard” (em 2000), essa lacuna foi parcialmente preenchida.
Por que, “parcialmente?” Isso deveu-se ao fato de que a produção revela-se apenas mediana, embora
esforçada, devo reconhecer. Pois eis que a obra foi roteirizada sobre um padrão
bem tradicional, em torno da ideia de resumir a vida do artista, a seguir a sua biografia. Nesses termos, para realçar os seus dramas pessoais e estabelecer o devido contraponto para justificar
ou mesmo fazer com o espectador entenda a personalidade do artista como ela foi
moldada e perdoe os seus possíveis equívocos.
O filme
inicia-se com Little Richard já muito famoso a apresentar-se ao vivo e ao ar
livre. Ele vê uma estrela cadente e fica transtornado. O flashback imediato
leva a narrativa para a infância de Richard Wayne Penniman e dessa forma,
mostra-se a como Richard viveu a sua infância pobre na cidade de Macon, Georgia, e sobretudo como já demonstrara desde a tenra idade, a sua
homossexualidade. Esse fator, em contraponto com a austeridade do seu pai e
tudo isso devidamente amalgamado pelo puritanismo professado pela família em
torno da religião cristã sob o viés protestante.
Por conta dessa identificação,
vem aí o primeiro sinal subliminar para a compreensão de uma persona, pois se o
pai de Richard o maltratava e humilhava (a cena dele, pai, a flagrar o pequeno
Richard vestido como menina e maquiado e daí tomar a drástica atitude em levá-lo
pela rua, assim travestido, para obrigá-lo a lutar em um ringue de boxe e
cobrar-lhe uma postura masculina, por exemplo). Mesmo quando supostamente a
situação familiar serenou-se, anos depois e o já então adolescente, Richard
cantava na igreja, os trejeitos efeminados do rapaz ainda envergonhavam
bastante o seu pai.
Bem, sem ambiente, Richard abandonou o Lar e foi
aventurar-se sem apoio na capital do estado e já ao final dos anos quarenta,
estava a sobreviver com dignidade, a realizar trabalhos como assistente de cozinha
em restaurante, por exemplo. Todavia manteve-se sempre à espreita das
oportunidades no ramo musical.
Eis que aos
poucos, entre apresentações amadorísticas e festivais, ele recebe o convite
para gravar e a vida pôs-se a mudar, doravante. Claro, cinebiografia adocicada
e bem clichê de um artista musical, eis que essa oportunidade surgiu
espontaneamente, através da abordagem da parte de um maioral do “show business”,
a procurá-lo. Então não foi assim que ocorreu? Foi em termos, como no caso da
maioria dos artistas que alcançaram tal patamar, pois nos filmes tudo parece
ser muito fácil, como em um conto de fadas.
Daí em diante, mostra-se a ascensão
da carreira e destaca-se algumas cenas interessantes a mostrar facetas da personalidade
de Little Richard, como a maneira pela qual o seu trejeito homossexual o ajudou
a compor o seu personagem como artista, e a maneira engraçada pela qual flertou
com a sua futura namorada, Lucille (cujo nome inspirou-lhe a compor um clássico
de seu repertório). Então ele não era (é) homossexual, mas bissexual, pois
namorou essa moça? Bem, não quero e nem vou entrar nesse mérito, mas o fato é
que ele namorou, Lucille e mais adiante, ao abandonar a carreira por cinco anos,
entre 1957 e 1962, tornou-se um pastor protestante, quando supostamente portou-se
de uma maneira mais comedida em relação ao sexo.
Outra cena
muito interessante, foi a dramatização em torno de como teria ocorrido a
criação da canção: “Tutti-Frutti”, talvez o seu maior sucesso ao lado de “Lucille”,
“Good Golly Miss Molly”, Slippin’ and Slidin”, What Lotta Shake Goin’ On”, “Keep
a Knockin’, “Long Tall Sally” e tantas outras. Da maneira como foi retratado tal
episódio, simulou-se ter ocorrido o ato de criação sob uma completa casualidade
e em tom de brincadeira, pois quando o produtor musical que assistira a cena,
propôs a gravação daquele incipiente tema recém criado e ainda não inteiramente
fechado, Richard ficou surpreendido e chegou a perguntar-lhe se este não
estaria a brincar, pois aquela letra fora improvisada e mostrava-se totalmente “idiota”.
No entanto, a onomatopaica expressão: “A whop bop-a-lula a whop bam boo”,
ganhou o mundo ao enlouquecer a juventude cinquentista e outras gerações que
advieram.
Outra interessante abordagem deu-se quando Richard descobriu que a
sua canção, “Tutti-Frutti”, fora gravada por um cantor branco, no caso, Pat
Boone. Este foi um bom artista Pop em sua época e teve uma carreira
significativa, não resta dúvida, no entanto, a sua linha de interpretação para
tudo o que gravava, tendeu para a atenuação do Rock; do Blues e do R’n’B que costumava
regravar do repertório de artistas negros, como Richards.
No próprio filme,
esse argumento é até usado diretamente para o próprio Richards, que mostrou-se
revoltado com a situação, ao que denotara em sua percepção, uma usurpação
indevida da parte de Pat Boone, porém, um produtor disse-lhe que essa atuação
de Boone, ajudava-o nos negócios, ao fazer com que as suas músicas alcançassem
o público branco, pois Richard e todos os artistas negros de então, não tinham
as suas músicas executadas em emissoras de rádio dirigidas ao público branco.
Época ainda fortemente marcada pelo segregacionismo, isso foi um fato
histórico.
Nesses
termos, é engraçada uma cena onde vê-se, Boone e Richards a gravar uma mesma
canção, em cena intercalada (a visceral, “Long Tall Sally”), a realçar o detalhe
sobre o tipo de interpretação muito diferente dos dois, para a mesma canção. A
engessada forma de cantar de um cantor Pop branco, com a voz impostada e a
esticar as notas aos finais das frases, um recurso estilístico bastante antiquado
e oriundo da tradição da música popular branca oriunda das décadas anteriores aos
anos cinquenta, versus a extrema intensidade da vocalização negra, mediante a raiz
dos Blues e a gerar o Gospel, R’n’B e a Soul Music.
Ainda a falar
sobre os fatos de sua vida pessoal, houve o drama do assassinato de seu pai,
algo que a produção julgou impossível de ser suprimido, no entanto, parece que
exagerou ao dramatizar a cena ao mostrar subliminarmente que mesmo contrariado
com o seu filho, o pai, secretamente apreciava o seu sucesso, ao retratá-lo a
ouvir uma canção do seu filho através da “jukebox” de um bar que administrava e
em seguida, o crime a ocorrer, motivado por conta de uma briga com um cliente inconveniente
que molestara uma mulher e por vingança estúpida, este descarregou o seu revolver
em cima do pai do Richard, portanto, um crime bárbaro por motivação banal.
Fora disso,
vem a riqueza material que Richards conquistou a reboque de sua fama e o seu deslumbramento
quase inevitável e compreensível (quando por exemplo comprou uma mansão arquitetonicamente
muito exagerada para a sua mãe). Há também a crise afetiva com a namorada, Lucille
e uma descompostura que ele passa em um músico de sua banda, quando este,
dentro do ônibus da turnê, faz uma piada homofóbica a chamar Richard como: “Sissy”,
uma gíria pejorativa para designar travestis.
Bem,
volta-se à primeira cena onde em meio a um show ao ar livre, Richard abandona o
palco profundamente impressionado com a visão de uma estrela cadente que
observara no céu e que despertou-lhe a ideia em ter sido um sinal divino a
despertá-lo para uma tomada de posição radical em sua vida. Foi a maneira romantizada
para demonstrar como subitamente ele resolveu jogar a carreira fora e tornar-se
um pastor humilde em uma cidade do interior. Daí, bem depois de 1957, em algum
momento perto de 1962, o filme mostra uma pregação dominical do pastor Richard
em sua congregação e a cantar bem como sempre, ao fazer uso de seu típico
falsete, intercalado com a voz rouca (um recurso típico, marcante e sensacional
do artista, sem dúvida), quando mais uma vez o dramalhão é evocado ao mostrar a
entrada de um homem muito humilde na Igreja, que abraça-o e pede-lhe perdão aos
prantos, ao afirmar ter sido o assassino de seu pai. Bem, se isso ocorreu na
vida real, foi um fato notável para ambos, pois o perdão é louvável, mas se foi
apenas uma dramatização em torno de uma licença poética, tal apelação somente depõe
contra a obra enquanto a significar um adendo piegas.
Logo a
seguir, aparece um produtor musical e conta-lhe um fato novo que talvez
Richard, então afastado do mundo artístico e do ambiente cultural em geral, não
tivesse conhecimento, mas o fato do dia em 1962, dava conta que garotos europeus
brancos, ingleses sobretudo, estavam a idolatrar os artistas norteamericanos
negros, egressos da raiz do Blues em geral e os astros pioneiros do Rock’n Roll
estavam na crista da onda entre eles, mesmo em uma outra década. Dessa maneira,
tal produtor estava a organizar uma organizar uma turnê do grande cantor de
Soul / R’n’B, Sam Cooke, e queria levar Little Richard para estabelecer uma carga
dupla.
Richard, convicto de sua nova atribuição religiosa, perguntou-lhe se
poderia cantar cações “gospel” nesses shows, mais adequadas à sua nova condição
como um pastor tão devotado e o produtor respondeu-lhe que sim. Talvez Richard
não tenha visto uma estrela cadente novamente, mas o sinal fora estabelecido fortemente
e desta feita a chamar-lhe de volta ao Rock’n' Roll.
Uma vez na
Inglaterra, a cena do show inaugural da turnê mostra um trecho do show de Sam
Cooke e quando Richard entra em cena, posteriormente, este mostra-se muito
comedido em seus trajes, ou seja, devidamente coadunado com a sua nova
consciência religiosa, mas assim que canta um pequeno número devocional sob
teor Gospel, simula um desmaio e levanta-se rapidamente, arranca as vestimentas
discretas para revelar uma roupa espalhafatosa por baixo, e de imediato atira-se
ao piano como nos velhos tempos... pronto, Little Richard voltou para o Rock e
assim permaneceu para sempre, mesmo a envelhecer e ser ativo até pelo menos os
primeiros anos do novo milênio de 2000.
Ele ainda está vivo neste instante em
que escrevi esta resenha, 2019, porém recolhido pela idade avançada.*
Em suma, o
filme não é nenhum primor, mas mostrou a aspectos da vida pessoal de Richard
Wayne Penniman, o popular: “Little Richard” (que na tradição da cultura luso-brasileira, poderia ser chamado como: “pequeno Ricardo” ou mais provavelmente,
como: “Ricardinho”); a formatação da sua carreira e sucesso parados por uma
questão de foro íntimo ao abraçar a vida religiosa e a sua volta triunfal à
vida artística.
De fato, o filme teve uma certa razão em encerrar-se aí nesse
ponto da volta dele aos palcos em 1962, pois dali em diante, ele praticamente
não teve mais picos em termos de criatividade com lançamentos e apesar em ter
mantido-se na ativa por décadas, isso foi apenas observado no âmbito dos shows
ao vivo, praticamente, porém longe dos holofotes principais da mídia, a não ser
quando o seu nome foi ventilado por conta do filme / documentário lançado em
1980 e por ocasião desta cinebiografia de 2000. Digno de nota, embora isso não
tenha sido um feito de Little Richard, propriamente dito, entre 1964 e 1965, um
guitarrista canhoto que foi componente de sua banda de apoio, ficou
mundialmente famoso, após deixar o grupo. Tratou-se de um rapaz conhecido como: Jimi
Hendrix...
Bem, para
encerrar, creio que é um filme razoável, que pode ser assistido se o espectador
não for deveras exigente no tocante à fidedignidade à história de tal artista
cinebiografado; não importar-se muito com a simplicidade da recriação das cenas
com shows ao vivo e similares, e também, se não ficar incomodado com as inevitáveis
licenças poéticas a justificar deturpações em prol da sustentabilidade dramática
do filme, um recurso que os cineastas mais ortodoxos usam, e em alguns casos,
abusam.
Entre os
atores principais, destacam-se : Leon Preston Robinson (a interpretar, Little
Richard); Jenifer Lewis (como Leva Mae, a mãe de Little Richard); Carl Lumbly
(como o pai austero e preconceituoso de Richard, o senhor, Charles “Bud”
Penniman); Tamala Jones (a namorada de Richard, Lucille); Garrett Morris (o
reverendo, Carl Reiney); Mel Jackson (como o produtor musical, Robert “Blumps”
Blackwell), e mais outros atores de apoio.
Desta feita,
Little Richard em pessoa, colaborou como assessor da produção. Foi escrito por
Bill Kerby e Daniel Taplitz e dirigido por Robert Townsend. Lançado em
fevereiro de 2000, teve indicações para algumas premiações, sendo o famoso “Emmy”
com a principal, mas não logrou êxito em nenhum concurso. A repercussão da
imprensa especializada foi bastante morna, infelizmente. Também não despertou um
grande interesse do público, ao manter-se obscuro, em linhas gerais.
O filme foi
exibido com bastante insistência nos canais de TV a cabo, nos primeiros anos do
novo milênio de 2000; possui cópia em formato DVD e é encontrado com facilidade
no You Tube.
Esta resenha faz parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume II e encontra-se disponível para a leitura a partir da página 187
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