Eu sou muito fã do cinema brasileiro, desde sempre, e sou de uma geração mais antiga, portanto, não comecei a acompanhar apenas depois do famoso "boom" gerado pelo filme : "Carlota Joaquina", em plena Era Pós governo Collor. Na verdade, tenho esse apreço desde criança, com a infância vivida nos anos sessenta, e dessa forma, certamente um dos filmes que mais impressionou-me nessa década, foi uma história baseada em fatos reais, denominada : "O Caso dos Irmãos Naves". E daí em diante, pus-me a conhecer as demais obras do diretor desse filme, e tornei-me seu fã.
Tratou-se de um cineasta paulistano chamado : Luiz Sérgio Person, que não foi um autor de um sucesso apenas, mas pelo contrário, criou e muito bem, outros filmes significativos para o cinema brasileiro. Nascido em 1936, na cidade de São Paulo, Person ainda quando foi adolescente realizou cursos de interpretação, ao visar inicialmente tornar-se um ator. O seu seu foco fora o cinema, no entanto, o teatro (e também a TV), entrou em sua vida, primeiramente ao conceder-lhe uma bagagem interessante para o cinema, posteriormente, visto que ele obteve a oportunidade para dirigir, muito cedo. Atuou como ator em pequenos papéis nos filmes : "Cais do Vício" e "A Doutora é Muito Viva", no ano de 1956.
Escreveu o roteiro em parceria com Alfredo Palácios (e também atuou como assistente de direção e ator), do filme : "casei-me com um Xavante", em 1957, e a seguir, dirigiu enfim, o seu primeiro longa, denominado : "Um Marido para Três Mulheres". Através de uma uma guinada radical, abandonou por um bom tempo o mundo artístico, para ir trabalhar na indústria.
Entretanto, ele pode voltar com tudo para a sétima arte, com muita vontade para mergulhar no celuloide, pois em 1961, mudou-se para Roma, com o objetivo em matricular-se no curso de cinema do "Centro Sperimentali di Cinematografia (CSC).
Fã ardoroso do grande cineasta italiano, Michelangelo Antonioni (eu também sou !), Person estudou e experimentou muito na cidade eterna. Foi o momento certo, no lugar certo, com a cidade a respirar cinema por todos os poros, ou por todas as fontes da Dolce Vitta. Na pátria do Neorrealismo, Person produziu; dirigiu e roteirizou em parceria com os seus colegas de curso, o curta : "Al Ladro", em 1962, ao usar e abusar das ruas de Roma como set, e utilizar atores amadores, e gente desavisada da rua para atuar sob improviso, na melhor tradição dessa escola cinematográfica, pródiga em desnudar a realidade. Esse curta representou a Itália nos festivais de Veneza e Bilbao (Espanha). Ainda como trabalho no curso da CSC, realizou "L'ottimista Sorridente" e "Il Palazzo Doria Panphili", em 1963.
Historiadores costumam dizer que a sua curta experiência como executivo de uma indústria (Person / Bouquet), foi decisiva para escrever o roteiro de "São Paulo S/A" (que em seu primeiro título, chamar-se-ia previamente : "Agonia"). Particularmente, eu concordo com essa observação, porém em termos, pois nesse filme, outras influências decisivas impuseram-se. Sem a arguta observação de Person, em relação à psique do ser humano, o filme não teria sido tão rico em sua resolução final. Se o massacre da sociedade industrial de alto consumo, foi a linha mestra do filme, não creio que só por ter conhecido o mundo corporativo na pele, teria fornecido-lhe tantos elementos para criar um filme tão brilhante. Foi nessa somatória, onde a experiência como ator e diretor de Teatro e TV; além dos filmes de Antonioni e o Neorrealismo italiano como um todo que o influenciou, foram elementos decisivos. Person lançou enfim (em 1964), a sua primeira obra-prima : "São Paulo S/A".
Um impressionante retrato do massacre capitalista; da sociedade de consumo; da hipocrisia; do status social; da futilidade atroz, mas sobretudo, um estudo sobre o vazio do homem contemporâneo, vítima de tudo isso que descrevi, e muitos outros fatores inerentes.
Mediante atuações espetaculares da parte de seus atores principais (talvez a melhor atuação da carreira de Walmor Chagas, no cinema); ótima edição; roteiro; fotografia; e trilha, trata-se de um filme que impressiona muito, e na minha opinião, está entre os melhores da história do cinema brasileiro. Super premiado, inclusive internacionalmente (Pesaro - Itália e Acapulco - México), tal obra solidificou Person como cineasta, no cenário brasileiro.
Com a responsabilidade desse êxito, Person não intimidou-se e seu próximo longa foi tão bom quanto, para dignificar ainda mais a sua carreira. Nesse ínterim, ocorreu que nessa época, Person foi sondado para filmar um longa com o astro da Jovem Guarda, Roberto Carlos, a atuar como protagonista, em uma tentativa para seguir os passos de Elvis Presley e dos Beatles, sobretudo, ao usar o cinema como plataforma extra de popularização da carreira musical. A ideia seria produzir-se um filme de ação, também a aproveitar a incrível onda de sucesso que os filmes do agente James Bond / 007 ostentaram naquela época, no mundo inteiro.
Então, Person deixou momentaneamente o projeto :"O Caso dos Irmãos Naves" de lado e foi trabalhar nesse roteiro para o "Rei da Juventude", junto com Jean Claude Bernadet e Jô Soares. Tal filme com Roberto Carlose o filme estava com o nome provisório ainda, a chamar-se : "SSS Contra Jovem Guarda". Contudo, as negociações não lograram êxito, e o projeto foi abortado, ao fazer com que Person e Bernadet mergulhassem então em "O Caso dos Irmãos Naves", e no ano seguinte, Roberto Carlos entraria enfim nas salas de cinema com : "Roberto Carlos em Ritmo de Aventura", dirigido por Roberto Farias, e aliás, para honrar as tradições de Elvis Presley, em torno de suas três máximas cinematográficas :
1) Dar soco em bandido;
2) Cantar uma canção;
3) Beijar uma garota...
Em "O Caso dos Irmãos Naves", Person recorreu à atuação do roteirista, Jean Claude Bernadet, para contar a história real de dois irmãos mineiros, que nos anos trinta haviam sido vítimas de um erro judiciário terrível, e muito pior que a injusta condenação de ambos por um crime que sequer ocorreu, foram vítimas de terríveis torturas e humilhações múltiplas.
Inacreditável a coragem em filmar essa história chocante sobre a arbitrariedade, em um momento crucial em que o regime governamental começara a endurecer para valer no Brasil e portanto, a metáfora do filme, fora quase explícita em torno da injustiça alicerçada por arbitrariedade.
Sucesso absoluto de crítica e público, tal obra arrebatou inúmeros prêmios, inclusive para os atores, onde destaco a atuação de Anselmo Duarte, que nos anos cinquenta fora estigmatizado por papéis a viver "galãs" em produções das companhias, Vera Cruz, e da Atlântida, mas nesse filme parece ter incorporado um demônio, ao interpretar o sádico delegado, obcecado em forjar as falsas confissões dos irmãos Naves, mediante torturas bárbaras.
Depois de dois sucessos retumbantes, Person deu-se ao luxo de atuar como ator em filmes de outros diretores. Por quê não, se ele era ator, também ?
E foi assim em "Anuska, Manequim e Mulher", de Francisco Ramalho Junior; "O Quarto", de Rubem Viáfora e uma surpresa... a atuar no episódio, "O Fabricante de Bonecas", do longa : "O Estranho Mundo de Zé Caixão", de José Mojica Marins, o popular "Zé do Caixão". Muito amigo de Mojica, Person recebeu o convite para dirigir um episódio em outro longa denominado, "Trilogia do Terror". Assinou então, o episódio : "A Procissão dos Mortos".
Em 1969, ele lançou : "Panca de Valente", mas esse projeto na verdade estava engavetado desde 1968.
A ideia foi produzir um filme ao estilo "western", onde influências múltiplas far-se-iam presentes. Ao misturar as chanchadas da Atlântida ("Matar ou Correr", sem dúvida); westerns norteamericanos clássicos, spaguetti western (Sergio Leone, é óbvio); e uma dose de experimentalismo implícito, Person causou estranheza com essa árida ambientação retratada em preto e branco. Para usar uma expressão típica da época, a crítica estigmatizou-o como um filme : "sem pé, nem cabeça". Perdoem-me críticos, mas eu gosto...
Infelizmente, como fazer arte no Brasil é bastante difícil, Person que estava recém casado, e logo foi pai de duas meninas, precisou embarcar no mercado publicitário para ganhar dinheiro. Logo de cara, em 1969, já ganhou um prêmio por um comercial de bastante sucesso que realizou, para uma rede de loja de pneus.
Person voltou a atuar como ator, em 1970, inserido no filme, "Audácia", de Antônio Lima e Carlos Reichenbach, e concomitantemente garantiu-se financeiramente como diretor de comerciais para a TV, até que em 1972, ele soube que o seu filme, "O Caso dos Irmãos Naves" estava a angariar um tremendo sucesso em recentes exibições na cidade de Nova York. Animado, viajou para lá e com o roteiro de um novo filme em mãos, que estava pronto desde 1967, "A Hora dos Ruminantes". Não deu certo, infelizmente, essa tentativa, mas ao menos os norteamericanos impressionaram-se com "O Caso dos Irmãos Naves", ainda que tardiamente. Em 1973, finalmente ele lançou um novo longa metragem : "Cassy Jones, o Magnífico Sedutor".
Nos compêndios de cinema, "Cassy Jones, O Magnífico Sedutor" é geralmente rotulado como uma "pornochanchada dos anos setenta". Sim, existe o elemento sensual / erótico no filme, mas ao meu ver, o filme vai muito além disso. Em minha humilde opinião, existe elementos anárquicos nesse filme, que muito o aproximam de trabalhos de diretores estrangeiros como Roger Vadim e Al Ashby.
Nesses termos, "Cassy Jones" dialoga com "Barbarella" e "Ensina-me a Viver", só para citar um trabalho de cada um dos diretores internacionais, que eu citei. A crítica não entendeu e infelizmente diminuiu a importância do filme à época. E digo de novo : eu gosto...
Person continuou a trabalhar com comerciais e a dividir-se em aulas de cinema que ministrava e produções teatrais, mas infelizmente, no início de 1976, ele sofreu um acidente automobilístico, que ceifou-lhe a vida, ocorrido na rodovia Régis Bittencourt, que liga São Paulo a Curitiba e Porto Alegre.
Ele Deixou duas filhas pequenas, que anos depois tornaram-se apresentadoras famosas na TV, e ambas a militar no mundo do cinema, e produção audiovisual em geral como seu pai, ao honrar o DNA da família, representadas por Marina e Domingas Person.
Lamento muito que o ótimo Person, não esteja mais entre nós, não apenas pela óbvia falta que faz, como pessoa, ao ter ido para o "outro lado", tão cedo (ele morreu um mês antes de completar quarenta anos de idade), entretanto, também por não ter produzido tanto quanto desejar em sua carreira, vítima do descaso absoluto que o Brasil tem por seus artistas, mas não vou estabelecer aqui o discurso óbvio, neste momento, sobre o que penso sobre a forma com a qual lida-se com a educação e cultura neste país. Prefiro afirmar que Luiz Sérgio Person foi um tremendo diretor de cinema; ator; roteirista; produtor; agitador cultural; homem de teatro; TV; cinema; mundo publicitário; professor etc. E claro, eu recomendo com ênfase os seus filmes, que citei ao longo desta matéria.
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, e republicada na Revista Eletrônica Cinema Paradiso, número 347, ambas em 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário