O bairro da Bela Vista, próximo ao centro de São Paulo, e
popularmente conhecido como, “Bexiga” mantém um longo histórico de ligação com a arte
& cultura. Nele, existem diversos teatros; casas noturnas; museus;
feiras temáticas; livrarias; sebos & brechós; além das inúmeras cantinas e
restaurantes, em sua maioria orientadas pela culinária italiana, ainda como
herança dos tempos em que o bairro teve uma população esmagadoramente formada por imigrantes italianos e os seus descendentes. E por conter tantos teatros em seu perímetro, naturalmente
que o bairro tornou-se um ponto de encontro para a classe teatral, e assim, muitas
produções nasceram nas mesas dos restaurantes, frequentados por atores;
diretores; autores, e produtores. Um dos mais importantes espaços culturais do bairro,
passa atualmente por momentos difíceis, e que de certa forma traça um triste
paralelo entre a glória e a desgraça. Vamos aos fatos :
Em 10 de outubro de 1940, graças aos esforços dos irmãos,
José Fernando e Nicolau Taddeo, inaugurou-se o Cine Rex, na esquina das Ruas
Rui Barbosa e Conselheiro Carrão, ponto nevrálgico do bairro, a um quarteirão
das inúmeras cantinas italianas localizadas na Rua 13 de maio. Muito moderno para a época, teve a sua arquitetura construída de uma forma muito semelhante
aos cinemas norteamericanos, em nada a dever para qualquer sala de exibição de
Los Angeles, por exemplo.
Com 1800 lugares disponíveis ao público, tratou-se de um cinema luxuoso, aconchegante, e
com a melhor tecnologia possível para o fim de anos trinta / início dos
quarenta do século passado.
Na primeira sessão, foi exibido o filme : “Irene”, produção
norteamericana, a apresentar : Ray Milland e Anna Neagle, como os seus atores protagonistas.
O
ator Ray Milland só ganharia um Oscar quatro anos depois, por sinal, pela sua
atuação espetacular em : “The Lost
Weekend” (em português, inventaram um outro nome fora de contexto em relação à tradução literal : "Farrapo Humano"), e que muito provavelmente foi exibido com sucesso no Cine Rex, também. Por anos, o imponente Cine Rex foi mais uma das inúmeras
opções cinematográficas da cidade de São Paulo, e cabe salientar que os irmãos
Taddeo eram donos também do Cine Piratininga, uma sala gigantesca e histórica,
localizada no bairro do Brás, igualmente próximo ao centro da cidade.
Foto da inauguração do Cine Rex, com os seus proprietários, os irmãos Taddeo, perfilados no centro e à frente do quadro de funcionários dessa histórica sala de cinema, em outubro de 1940
Tudo funcionou de uma maneira maravilhosa, até que na segunda metade da década de sessenta, o velho
Cine Rex passou por uma grande transformação. Para os cinéfilos paulistanos foi uma tristeza, mas o consolo foi que
o seu novo proprietário teve planos culturais igualmente nobres e dessa forma,
a sala foi desarticulada como cinema, a transformar-se doravante em um teatro.
Híbrido, com a proposta em abrigar não apenas montagens
teatrais, mas também shows musicais, teve portanto o seu segundo momento de apogeu, ao
final da década de sessenta, quando ali encenou-se a peça manifesto do
movimento Hippie, “Hair”. Um marco para o teatro brasileiro, não só pela absoluta
contemporaneidade com a montagem original norteamericana, a montagem
brasileira de “Hair” em pleno ano de 1969, teve outros elementos notáveis para
fazer dela, histórica.
Primeiro por ser um verdadeiro libelo pró-liberdade, em um
momento onde o regime autoritário estava endurecer-se ainda mais, portanto, fazer com que tal montagem, viesse a concretizar-se como um oásis em meio ao baixo astral generalizado que assolava a
sociedade naquele instante. E sob uma segunda observação, por ter revelado uma verdadeira
constelação de atores e atrizes que brilhariam intensamente no teatro; cinema e
TV do Brasil, na década de setenta em diante, casos de Sonia Braga; Antonio
Fagundes; Nuno Leal Maia; Ney Latorraca; Antonio Pitanga, além de outros já
mais experientes como Altair Lima; Armando Bogus e Aracy Balabanian.
Nessa altura, o ex Cine Rex já atendia pelo nome de
Teatro Aquarius, e com esse nome estiloso, cheio de significado Hippie, manteve
“Hair” por anos em cartaz, sob absoluto sucesso, a abrigar posteriormente uma outra produção
igualmente a ver com o movimento contracultural internacional, no caso a tratar-se de “Jesus Christ
Superstar”. Por intercalar-se a esses dois retumbantes sucessos
teatrais, muitos shows de Rock foram ali realizados e o Teatro Aquarius foi no
início dos anos setenta, um dos maiores pontos para os freaks da cidade, a borbulhar
em meio ao desbunde, e portanto, a colorir um pouco os tempos cinzentos impostos pelo regime.
Secos & Molhados lançaram o seu mega bem sucedido álbum de estreia, ali.
O Som Nosso de Cada Dia lançou nos anos 2000, um CD com um show ali gravado em 1976, histórico.
O Apokalipsys de Zé Brasil; Silvia Helena & Cia., fez ali, shows memoráveis de sua carreira.
No ano de 1976, Rita Lee & Tutti-Frutti, em seu auge
criativo, ali lançou o LP “Entradas e Bandeiras”, através de uma temporada memorável
que entrou para a história do Rock brasileiro, pelo lado bom e pelo mau, visto que foi nessa temporada de lançamento desse álbum, que Rita Lee foi presa sob acusação de porte de drogas.
No início de 1977, o Made in Brazil encenou o seu show “Massacre”,
cuja temporada rendeu um disco ao vivo, e que ficou anos engavetado pela gravadora, mas
recentemente foi lançado, enfim. Em fevereiro desse mesmo ano, eu e Laert Sarrumor 9futuro Língua de Trapo), fomos juntos ver
esse show do Made in Brazil, e uma história engraçada a envolver o saudoso
jornalista / produtor Ezequiel Neves ocorreu conosco, e cujos detalhes eu já redigi
em minhas memórias autobiográficas (disponível em meu Blog 3).
A Diva do teatro, Bibi Ferreira, encenou ali : “Gota
D’Água”, ainda em 1977, ou seja, um momento ímpar para a dramaturgia brasileira.
Foram os últimos momentos de atuação contracultural do teatro, pois o Aquarius saiu de cena, e por conta de uma nova reformulação, transformou-se em "discothequé", a acompanhar os tristes sinais dos tempos, ao final da década de setenta. A efêmera (e vazia culturalmente), moda “Disco” passou bem répido, mas a edificação ficaria ainda mais longe de seus propósitos culturais originais, pois ali abrigou uma boite. Até que em meados dos anos oitenta, voltou a ostentar um uso mais condizente, ainda que não tão engajado com a arte mais avançada, pois deu vazão assim para vir a tornar-se um auditório para a gravação de programas populares para a TV.
O maestro, Zaccaro, uma figura conhecida em programas de
TV populares, a apresentar-se com a sua orquestra, tornou-se o novo proprietário
e ali por anos, o manteve para gravar o seu programa musical particular na TV, e
também para alugá-lo para outras produções.
Por exemplo, quando o programa : “Perdidos na Noite” saiu
da TV Gazeta e foi para a TV Record, as gravações usavam o velho palco do
Aquarius, então renomeado como, Teatro Zaccaro. Ao manter o seu programa musical na TV por alguns anos,
Zaccaro também usou o teatro para alavancar a sua marca e vender então os seus bailes de
formatura; para debutantes e réveillon / carnaval, além das festas temáticas
italianas, mote principal de sua orquestra.
Nos anos noventa, o Teatro teve um novo renascer como espaço
teatral, ao abrigar por muito tempo, a montagem da peça teatral : “Trair e Coçar é só
Começar”, a revelar-se um retumbante sucesso de público, escrito pelo ator / autor, Marcos
Caruso. Peça de humor popular, não continha o élan contracultural
que o teatro abrigou com “Hair” e “Jesus Christ Superstar”, além dos históricos shows de
Rock ali realizados, mas, claro que tinha o seu valor artístico e assim, segurou a nobre vocação da
edificação, por mais algum tempo.
Todavia, mesmo assim, tempos difíceis vieram e o maestro Zaccaro não suportou mais a dificuldade em manter ativo o teatro. Não mais sendo utilizado como espaço cultural, ali tornou-se
um escritório de produção artística, mas rapidamente fechou as portas. Então, o inevitável aconteceu, quando passou a
abrigar uma igreja evangélica, a seguir
os passos de tantos cinemas e teatros da cidade, agora cooptados pela verba não tributável do dízimo religioso. Porém, não durou muito tempo, por incrível que pareça nesse caso,
e ao fechar as portas, a casa ficou em absoluto ostracismo.
Dia a pós dia, o declínio pôs-se a acentuar-se, com a
fachada da edificação a ficar sob um estado de conservação deplorável, e o seu entorno,
a tornar-se um abrigo para pessoas carentes, sem moradia.
Por temer invasões, os novos donos do prédio tomaram a
providência triste em cercá-la com tapumes para evitar o pior, mas assim a tornar o aspecto do velho Rex / Aquarius, em um desalento.
É triste passar por ali e ver essa sua degradação e em meu
caso, quantas lembranças gloriosas vem-me à cabeça... o contraste entre o luxo de outrora e o lixo atual,
deprime.
Naquela esquina, Greta Garbo brilhou... os hippies
bradaram para que a luz do sol brilhasse no mundo... Maria Madalena perguntou
por quê não poderia amar aquele homem que só falava em amor... Rita Lee disse estar com "super estafa", e
Bibi Ferreira disse que pode ser a Gota D’água...
E agora, 2015, é uma edificação a cair aos pedaços, que serve como um mero abrigo para mendigos e pela calçada, os seus transeuntes apressados nem fazem ideia do que
ali acontecera nos seus anos de glória.
Não tenho certeza, mas há um boato a dar conta que o atual proprietário do edifício, é
uma concessionária de uma montadora de automóveis com origem italiana. A tendência é mandar passar um trator e ali construírem
as suas enormes vitrines para exibir os modelos do ano de sua fábrica. Torço para que uma luz venha a iluminar algum mecenas, e
que consiga reabrir o Teatro Aquarius, ou o Cine Rex, e melhor ainda, quem sabe
um mix entre ambos, para abrigar sala de cinema; teatro para montagens teatrais e
shows musicais. Eu sei que sou um sonhador, mas como seria alentador
recuperarmos tal espaço...
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2015
Olá Luiz,
ResponderExcluirGostei das suas impressões sobre o extinto Cine-Rex, realmente deve ter sido um lugar incrível nos seus tempos de glória!
Digo isso, por ter nascido na década de 90, mas por ser estudadnte de arquitetura e curiosa pela história do Bixiga, me deparei com esse interessante edifício e gostaria de saber se você poderia me ajudar.
Você teria fotos da época em que ele foi Teatro Aquarius ? Meu tcc é sobre o restauro desse edifício, consegui muitas fotos das época do Zaccaro e algumas como Cine-Rex, mas é bem difícil encontrar imagens de outras épocas. Se possível ficaria muitíssimo grata.
Abraços
Letícia - (leticia.moneda@outlook.com)
Oi, Letícia !
ExcluirQue prazer receber a sua visita no meu Blog.
Bem, de fato esse edifício já teve uma importância enorme para a cultura paulistana, como você tem visto em suas pesquisas.
Já anotei seu E-Mail, e reservadamente lhe falarei sobre o que solicitou-me.
Se puder ajudá-la em seu TCC, será um prazer para mim.
Tenho outras matérias no meu Blog falando sobre aspectos culturais da nossa cidade, e envolvendo épocas passadas, algumas inclusive falando, ainda que bem superficialmente, sobre arquitetura. Fique a vontade para olhar nos arquivos do mesmo.
Grande abraço !!
Olá Luiz,me chamo thiago sou neto do Nicolau Taddeo e filho do José Luiz masseram taddeo,estou em busca de documentos do meu avô,tipo onde ele nasceu,de qual cidade da Itália ele veio,você tem algum documento,gostaria de ter uma foto do Cine Rex,essa foto que ele está no centro com o irmão poderia mandar no meu e-mail pra eu guardar de lembranças. Desde já agradeço,excelente seu blog. Segue me email thiagotaddeo@gmail.com
ResponderExcluirObrigado
Olá, Thiago !!
ExcluirEstou muito honrado com sua visita, ainda mais ao identificar-se como neto do grande, Nicolau Taddeo, um grande empreendedor cultural para São Paulo e para o Brasil.
Sobre as questões mais pessoais que citou, já enviei-lhe um e-mail dias atrás com esclarecimentos e sim, mandei em anexo a foto desta matéria que ilustra a inauguração do Cine Rex, com as presenças de seu avô e tio-avô.
Grande abraço !!
Saudade desse tempo voltei aos anos 70. Hoje com 70 anos, moro em Maringa pr hoje tive a grande felicidade de recordar que assisti a peça 'HAIR' em 1970 no teatro aquarius muito obrigado.
ResponderExcluirSensacional, meu amigo!
ExcluirFico muito feliz por saber que a matéria despertou-lhe tal lembrança boa de quando você frequentou o Teatro Aquarius ao início dos anos setenta e teve o privilégio de assistir a primeira montagem de "Hair", com aquele elenco espetacular e produção de Altair Lima.
Volte sempre ao Blog, para visitá-lo, ficarei contente com a sua presença e leitura!
Abraço!