sábado, 27 de fevereiro de 2021

Filme : Sgtº Pepper's Lonely Hearts Club Band - Por Luiz Domingues

Parecia ser uma receita infalível: músicas dos Beatles a embalar um libreto para narrar uma história em tom de conto infantil, e a contar com astros Pop do momento, tais como Peter Frampton e o trio inglês/australiano, Bee Gees e para completar um elenco de apoio a conter atores e comediantes famosos da TV e mais alguns Rock Stars notórios. Perfeito, deve ter pensado o produtor musical/teatral e cinematográfico, Robert Stigwood ao selar o acordo com os estúdios hollywoodianos e captar o recurso para filmar uma obra chamada: “Sgtº Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, nos idos de 1977 e lançá-lo com bastante promoção em 1978.
E para reforçar tal euforia em torno da esperança de que este deveria ser um grande estouro de bilheteria e quiçá almejar prêmios importantes, e por quê não (?), o próprio Oscar, eis que Stigwood também deve ter ponderado que o recente êxito que obtivera ao produzir o famoso filme: “Saturday Night Fever” (o famigerado: “Os Embalos de Sábado a Noite”), ao consagrar o ator, John Travolta e a sua dancinha Disco, alavancaria ainda mais essa outra empreitada. 
Não foi por acaso que escalou-se o trio dos irmãos Gibb, o grupo Pop, Bee Gees, para atuar como atores em “Sgtº Peppers”, pela evidente observação de que tais artistas haviam estourado com a trilha do filme de John Travolta, recentemente (mais uma vez, na verdade, visto que tal banda já detinha uma carreira longeva e vitoriosa na música).
Peter Frampton, por sua vez, foi um artista com grande bagagem no Rock britânico por ter atuado em duas bandas, o “Herd” e o “Humble Pie”. Tudo bem, o Herd foi uma banda direcionada para adolescentes (mas longe de ser ruim, isso eu atesto) e o Humble Pie, dispensa maiores apresentações, visto ter sido um dos maiores baluartes do Blues-Rock britânico, entre o final dos anos sessenta, até meados dos setenta. A sua carreira solo também iniciara-se nesse campo, mas em surpreendente virada, quando lançou o álbum: “Frampton Comes Alive”, Peter mudou de patamar ao tornar-se um fenômeno Pop, a lotar estádios de futebol. O seu som, mostrava-se igualmente sensacional, apesar do forte apelo popular e o Bee Gees, igualmente, apesar da trilha melosa e muito comercial do filme de John Travolta, tinha uma história respeitável, desde os anos sessenta.
 
Portanto, ao juntar artistas que estavam na crista da onda nesse início de segunda metade dos anos setenta, mas que também desfrutavam de respeito do público mais Rocker, Stigwood igualmente deve ter elucubrado que uniria nichos diferenciados do público, isso sem contar com a obviedade de usar as músicas dos Beatles como argamassa da história, portanto, em sua avaliação, o sucesso seria estrondoso.
Para completar, o roteiro buscou inspiração nas histórias infantis, a usar o recurso do realismo fantástico, como se estivesse a produzir algo como, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (“Willie Wonka and the Chocolate Factory”), misturado com a loucura explícita dos filmes do diretor, Ken Russell (Stigwood foi produtor de Tommy”, não por acaso, um dos maiores delírios oníricos de Russell). E houve ainda o apelo ao humor, nas figuras de comediantes a atuar, tais como : George Burns e Steve Martin; vilões como Donald Pleasence e Frankie Howerd e uma mocinha bem sem graça, na figura de Sandy Farina. Para completar, astros reais do Rock e entre eles: Alice Cooper; Aerosmith; Paul Nicholas e o mega tecladista, Billy Preston, atuam como atores a cantar e tocar, igualmente, além da super banda Funk / Soul, “Earth/Wind and Fire” e da cantora R’n’B, Diane Strainberg. 
Mediante o aproveitamento de muitos ingredientes bons reunidos, seria apenas filmar, lançar e contabilizar os lucros, certo? Todavia, não foi o que ocorreu, pois o filme redundou em retumbante desastre, não apenas pelo ponto de vista artístico mas também em termos comerciais. Por que isso ocorreu? Bem, por múltiplos fatores, eu diria. Primeiro pelo roteiro em si, que adocicou em demasia a história a torná-la tão infantil ao ponto de tornar-se constrangedora, visto que apesar dessa aparência generalizada, não fora dirigida ao público infantil, portanto, um grave erro de avaliação, visto que fatalmente as crianças não gostariam dessa obra; os jovens não identificar-se-iam e o público Rocker, pior ainda, execrariam tal película ao ponto de considerá-la uma afronta à memória dos Beatles.
 
Segundo erro crasso, faltou uma leitura mais apurada sobre o “momentum” da parte de Stigwood, fator imperdoável ao meu ver, visto que ele deveria ter notado que nessa fase, entre 1977 e 1978, evocar o Rock sessentista estava na ordem do dia para gerar-se o efeito contrário do que ele desejou provocar, pois graças ao Movimento Punk que viveu o seu grande apogeu em 1977, o paradigma em voga foi odiar e execrar a Era Hippie, o Rock 1960/1970, a contracultura, cabeludos etc. 
 
Imperdoável, pois Stigwood apenas pensou no sucesso que experimentara com o filme, “Saturday Night Fever” e não parou para perceber que toda aquela cultura “Disco” fora o prenúncio do movimento “Yuppie”, ou seja, este a mostrar-se contrário ao movimento Hippie, e nesse sentido, Travolta fora um antagonista dos Beatles em termos culturais. Portanto, quando o mundo de 1977, polarizou-se entre o John Travolta e Johnny Rotten, o Rock sessentista/setentista foi execrado pelo público entusiasta de ambos ícones em voga.
 
Ora, Stigwood fora empresário do “Cream”, um dos maiores ícones da história do Rock britânico e mundial nos anos sessenta, portanto, alegar que não percebera tal movimentação cultural que inviabilizara o Rock clássico nesse momento de 1977, não poderia convencer ninguém, principalmente a ele mesmo, em síntese, foi um vacilo seu em termos logísticos.
E por fim, o filme depõe contra si mesmo, principalmente pela fragilidade da história, no entanto, ainda mais pela absoluta falta de tarimba para atuar como atores e ainda por cima a viver os protagonistas, no caso de Peter Frampton e os três irmãos Gibb. As cenas em que atuam, são tão constrangedoras que provocam no espectador a dita “vergonha alheia” e uma certa comiseração, inclusive, pois é nítido o quanto eles sofreram para atuar. Vou além (e não quero desdenhar, pois gosto da carreira musical real dos Bee Gees e ainda mais do Peter Frampton), contudo, preciso registrar que se a edição final gera vergonha, imagine as inúmeras tomadas de cena descartadas durante as filmagens. Triste.
 
E o pecado adicional: a pasteurização completa do repertório dos Beatles. Como sugere o título do filme, a história foi montada em torno do LP homônimo, mas houve um farto complemento com canções extraídas de outros discos do quarteto britânico, tão famosos quanto, a tratar-se de “Abbey Road”; “Revolver” e “Let It Be”. O problema, foi que o mundo de 1977 estava com o foco no Punk-Rock aviltante que assolara a Inglaterra ou a moda Disco, que lotava as discotheques norte-americanas e aliás, em todo mundo, incluso o Brasil. 
 
Stigwood estava com a sua mente focada no sucesso dos Bee Gees em “Saturday Night Fever” e assim, os arranjos foram calcados em tal sonoridade (ao final da resenha, eu revelo quem assinou os arranjos), e claro, atenuados para não ficar tão acintoso, mas o suficiente para gerar a ojeriza aos ouvidos Rockers e beatlemaníacos mais sensíveis. Nesses termos, é claro que não é mal tocado, e pelo contrário, trata-se de uma trilha bem produzida e executada em estúdio, contudo, desaponta e muito. A própria Disco Music em si, tratava-se de uma degeneração da Black Music de uma maneira geral. Ao misturar a Soul Music/R’n’B e Funk (o verdadeiro), com a ultra pasteurização Pop e comercial, gerou-se esse ritmo derivado, mediante o uso cafona de orquestrações. No caso dessa trilha em específico, houve uma atenuante, como já comentei e até é possível suportar, principalmente para quem toca ou gosta de ouvir as linhas de baixo, pois independente da Disco Music ser comercial ao extremo, a raiz da Black Music tradicional fez com que o baixo ganhasse destaque e assim, não posso negar que a atuação do baixista que gravou, é muito boa. 
E como uma segunda atenuante, há por destacar-se que é claro que os Bee Gees tocam e cantam bem: Peter Frampton, nem se fale e os demais convidados, idem, a destacar-se Aerosmith, Paul Nicholas, Alice Cooper, Diane Strainberg, Billy Preston e o Earth/Wind and Fire. No caso do Aerosmith, a sua versão para “Come Togheter” ficou tão marcante que tal canção passou a figurar em seus shows reais. Alice Cooper a interpretar, “Because”, é hilário, visto que transformou a canção em um tema macabro, a reforçar-se com a sua interpretação como ator, que lembrou cenas dos filmes de terror de Roger Corman. O mesmo em relação ao Earth / Wind and Fire que interpretou : “Got to Get You Into My Life” (esta do LP “Revolver” dos Beatles) e em seu caso, dentro da sua zona de conforto com uma interpretação ao estilo, “Soul Music” para um tema que os Beatles trataram da mesma forma em sua gravação original. E a atuação da cantora, Diane Strainberg, que era uma cantora com qualidade no mundo do R’n’B Pop norte-americano.
E sobre a história? Bem, eis que um narrador, “Mr Kite” (personagem da canção: The Benefit of Mr. Kite”), interpretado pelo ator, que já era bem veterano na ocasião, George Burns, explica ao espectador que em uma cidade remota chamada, “Heartland”, houve uma bandinha de coreto denominada: Sgtº Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que costumava tocar no início do século XX e  alegrava a sua comunidade reunida na praça central da localidade. Tal costume no entanto fora interrompido quando o seu líder veio a falecer por volta de 1958 e os instrumentos foram recolhidos no sótão e devidamente protegidos por um cata-vento que tem o formato de um músico a tocar trompete. Tantos os instrumentos, quanto o cata-vento, conteriam “poderes mágicos”. 
Um dia, o neto desse líder musical, chamado, “Billy Shears” (personagem recorrente, citado na canção Sgtº Pepper’s e alvo de muitas especulações em tom de lenda urbana no universo Beatle), interpretado por Peter Frampton, resolve reformular a banda com três amigos, os irmãos Henderson (Bob; Mark e Bob, interpretados pelos irmãos Gibb, Barry, Robin e Maurice). 
O irmão de Billy Shears, Dougie Shears, interpretado pelo ator e cantor, Paul Nicholas, é o empresário da banda. A banda canta os primeiros números correspondentes ao álbum dos Beatles no coreto e o público na praça, delira. 
 
Eis que um empresário vilão, “BD Hoffler/ Blockhurst, os contrata mediante promessas estratosféricas e eles vão para Los Angeles a fim de buscar tal fama. São ludibriados mediante a sedução da parte da cantora da banda “Diamonds”, chamada:  Lucy, que foi interpretada por Diane Strainberg (Lucy... Diamonds... faltou o Sky...), a cantar maliciosamente a canção: “I Want You” (She’s so Heavy), e assim, entorpecidos pela ingestão de álcool, drogas e sevícias sexuais, os rapazes assinam um contrato leonino que obriga-os a trabalhar muito, ganhar pouco e pasmem, cultivar o hábito do histrionismo como uma obrigação.
Para piorar as coisas, Billy Shears deixara a sua doce namorada, “Strawberry Fields” (creio não ser preciso explicar de onde veio a inspiração, para tal apelido estrambótico), em “Heartland" e agora a ficar famoso, engatara namoro com a insinuante Lucy (Diane Strainberg). Bem, não poderia faltar o triângulo amoroso folhetinesco, óbvio.
Enquanto isso, o vilão, “Mr. Mustard”, cujo nome é mais uma inspiração em música dos Beatles (“Mean Mr Mustard”), naturalmente (interpretado por Frank Howerd), com o apoio de seu assistente, Brute (interpretado por Carel Struycken), deseja roubar os instrumentos mágicos da bandinha original, a pedido de um misterioso solicitante identificado com a sigla : FVB. Tal personagem, Mustard, é bastante caricato, a lembrar vilões ridículos de programas infantis toscos, ainda mais pelo uso de efeitos, que já na época do filme eram muito ultrapassados, dignos de filmes japoneses de ficção científica dos anos cinquenta, digamos assim. 
Eis que a namorada de Billy Shears, Strawberry Fields, alerta o seu namorado e os seus companheiros, para que todos saiam em perseguição ao vilão, a fim de recuperar os instrumentos. Vão parar em um consultório dentário comandado por um dentista louco, Maxwell Edison (alusão direta à canção que ele canta: “Maxwell Silver Hammer”), onde é até engraçada a atuação tresloucada do comediante, ainda mais pelas lutas ridículas encenadas com o pessoal da banda, a lembrar a canastrice infantil dos Trapalhões (com muito respeito à Didi; Dedé; Mussum & Zacarias). E a seguir, mais engraçado ainda é ver o Alice Cooper a viver o “Father Sun” (alusão à canção “Sun King”), líder inescrupuloso de uma seita maluca, a cantar (na verdade a declamar), “Because”, nas circunstâncias em que já descrevi, e essa cena praticamente salva o filme do desastre total, mas na realidade, isso é muito pouco, infelizmente.
Bem, a história ainda não fechou. Faltou recuperar o bumbo da bandinha de coreto e nesse meio tempo, mais dois vilões paralelos, Dougie Sheers e Lucy, tornam-se amantes e sócios do mal e assim, roubam o dinheiro da banda. Desolados, eles assistem um show do Earth/Wind and Fire e a produção do palco dessa banda era tão histriônica, normalmente na vida real, que os seus excessos no filme, nem causam espanto em meio a tanta bobagem que esta produção preconizou. Eis que a turma de Maurice White entra em cena a sucumbir de sarcófagos egípcios, por exemplo. O outro vilão, Mr. Mustard reaparece e desta feita sequestra, Strawberry, por quem apaixonara-se. 
 
Nesta altura, se o espectador tiver menos de dez anos de idade, estará plenamente convencido de que já assistiu filmes de aventuras, muito melhores e se tiver mais do que isso, ficará bastante arrependido em ter suportado assistir até aqui, mas infelizmente, vem mais idiotices até o seu desfecho. E para um Rocker e fã dos Beatles, então, a vontade é execrar todo mundo que envolveu-se nessa produção equivocada, porém, vou em frente para fechar esta resenha com dignidade.
O vilão dirige a sua van supostamente tecnológica (efeitos deveras simplórios, devo observar, visto que mais parecem recursos usados em seriados de TV dos anos cinquenta, bem em clima de produção classe Z), em direção à sede de seu cliente, o misterioso FVB. Na verdade, tal sigla quer dizer: “Future Villain Band”, e trata-se do Aerosmith a interpretar uma banda formada por bandidos. Bem, eles cantam, “Come Togheter”, como já disse anteriormente, e o cúmulo dessa cena é que forçam a doce, “Strawberry”, a tornar-se uma groupie da banda e de forma sádica, amarram os componentes da banda rival, Sgtº Pepper’s, incluso o namorado, Billy Shears, só para que sejam forçados a assistir tal degradação da mocinha. Ridículo, em suma. Tudo acaba em uma briga homérica, que é bastante constrangedora enquanto ação dramatúrgica e a garota morre.
Bem, derrota total, a cidade de Heartland organiza um funeral para a moça e Billy Shears entra em depressão total, quando chega ao ponto em que resolve dar cabo de sua própria vida, ao pular do telhado de uma casa, Eis que a figura mágica do trompetista em formato de cata-vento, ganha forma humana e mediante poderes mágicos, vemos o personagem: “Magic Whater Vane” (interpretado por Billy Preston, a cantar, “Get Back”), literalmente o cata-vento, a lançar raios ridículos, como forma de energia poderosa ao estilo de seriados de super heróis, mas com uma resolução visual tosca, muito longe dos filmes da Marvel dos dias atuais (2020), portanto, mais a assemelhar-se aos seriados setentistas como: “Wonder Woman”, “Hulk” (do Lou Ferrigno e Bill Bixby) e outros, ou seja, é risível. 
Entre outras ações mágicas, a mocinha, Strawberry, ressuscita, Billy Sheers é salvo da morte certa e os vilões, são todos derrotados, porém devidamente regenerados, ou seja, mais piegas, impossível. Alegria total, a praça da cidade é tomada por uma multidão para cantar o tema final e aí, uma surpresa boa para atenuar a ruindade dessa produção, pois são inúmeros rostos conhecidos, alguns até inacreditáveis. Trata-se de uma série de músicos e cantores do mundo do Rock, Blues, Soul Music, R’n’B e até bandas inteiras representadas a tentar simular a capa original do LP dos Beatles homônimo ao filme. Se isso foi para fazer uma média com a comunidade Rocker, não pode ser encarado no entanto como a salvação de um desastre, porém, apenas veio para amenizá-lo.
 
Finito, filme que não agradou ninguém, certamente e pelo contrário, gerou o desconforto para os envolvidos, na medida em que por muitos anos, dali em diante, os obrigou a justificar por inúmeras vezes tal deslize cometido em suas respectivas carreiras. Foi um fracasso financeiro; destruído pela crítica cinematográfica e também pela musical. Odiado pelos fãs dos Beatles; desprezado pelos Rockers e nem mesmo os fãs dos Bee Gees na ocasião (e não pela carreira pregressa do trio), absorveu, visto que preferiam naturalmente muito mais apreciar as canções que eles cantaram no filme de John Travolta.
DVD para a aquisição, receio que só em versão internacional, sem legendas em português. Na TV aberta, passou poucas vezes, no início dos anos 1980 e muitos anos depois, poucas vezes nos canais da TV a cabo. Na Internet, só existe fragmentos de cenas e uma versão integral, só encontrei uma, de origem polonesa, com imagens provavelmente capturadas e armazenadas de uma fita VHS. É precário, portanto, e com legendas em polonês, ou seja, é preciso entender tal idioma ou guiar-se pelo som original em inglês. 
Foi dirigido por Michael Schultz; escrito por Henry Edwards e produzido por Robert Stigwood. Por incrível que pareça, o produtor musical oficial dos Beatles, George Martin, assinou a produção musical da trilha sonora deste filme, ao embasar um desatino. Pior ainda que isso, foi a desastrada fala proferida por Robin Gibb, dos Bee Gees, que antes do filme ser lançado, veio a público e declarou que em absoluto seria uma volta dos Beatles com uma formação inteiramente nova, ou seja, ele perdeu uma oportunidade de ouro para ficar quieto, mesmo que eu tenha certeza de que não o fez por mal, contudo por ter sido ingênuo. O roteiro foi inspirado levemente por uma peça teatral com o mesmo mote e título, que Stigwood produzira no circuito Off Braodway, em 1974, mas certamente que no filme, exageraram; deturparam e abusaram em todos os sentidos para tornar essa história, algo praticamente imperdoável.
 
Esta resenha faz parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", e está disponível para a leitura através de seu volume II, a partir da página 131

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Filme: Das Wilde Leben (Eight Miles High - A Vida Selvagem) - Por Luiz Domingues

Mais uma história interessante a retratar a presença de groupies, como personagens recorrentes na entourage de bandas de Rock (principalmente nos anos sessenta e setenta), o filme alemão, “Das Wilde Leben” (denominado: Eight Miles High”, em inglês e “A Vida Selvagem”, em português), vai além do trivial já abordado em filmes como “Groupie Girl” e “Permissive”, lançados em 1970. Em primeiro lugar, porque trata-se de um filme baseado em fatos reais e em uma segunda análise, muito por conta da biografia da personagem central retratada, extrapolou os limites do Rock ao mostrar uma história a esbarrar em muitos aspectos diferentes, embora a aura Rock’n' Roll permeie a obra inteira.

A primeira cena do filme mostra a protagonista, completamente nua em uma praia paradisíaca a observar um bote em chamas a navegar no mar. Seria uma pira funerária viking? Ao final, tudo é esclarecido, certamente. Bem, em ritmo de flashback, o filme mostra a trajetória pessoal de uma moça de Munique, na Alemanha, chamada: Uschi Obermaier. Oriunda de uma família classe média baixa, ela vive às turras com a sua mãe e o padrasto. 


Eis que acompanhada de uma amiga, vão assistir um show de Rock em uma casa de pequena expressão, mas a sua beleza que é muito grande, chama a atenção de um fotógrafo que está ali por pura coincidência e este a aborda e pede autorização para fotografá-la. Dali para um ensaio fotográfico sensual foi um salto rápido, entretanto, a sua mãe acha as fotos em seu quarto e escandalizada, briga com a filha e também com o padrasto e sai de casa ao melhor estilo “She’s Leaving Home”, acompanhada de sua amiga.

Uma vez na estrada tais moças pedem carona, até que uma Kombi ornada com cores psicodélicas passa e as convida a viajar. Trata-se de uma banda de Rock em seu interior, chamada : “Bröselpilze”. Vive-se o ano de 1968 e a lisergia estava na Alemanha com toda a força, tanto quanto na Inglaterra, mas os alemães tinham as suas particularidades locais, bem acentuadas. Um exemplo disso, dá-se quando chegam em Berlim e lá, ocupam um um galpão abandonado, ou seja, um tipo de ocupação bem comum entre os hippies alemães nesses anos.

São interessantes as cenas a mostrar a vida deles em “kommune”, em meio a muitos incensos; o som de cítaras e eventualmente com a banda a ensaiar. O som que produzem ali, é absolutamente experimental e lembra sob muitos aspectos o som ultra conceitual da banda alemã, Amon Düül, em sua primeira fase na carreira (nos anos setenta, o Amon Düül II, a sua dissidência, foi bem mais musical, certamente), ou seja, é no limite da cacofonia. E para seguir a história real de Uschi Obermaier (interpretada por Natalia Avelon, tão linda quanto a Uschi da vida real), há um enfoque na sua vida sexual intensa, a fazer a conexão sobre a sua personalidade em específico, e o espírito livre da vida em comunidade hippie. 

Uschi envolve-se inicialmente com Rainer Langhans (interpretado por Mathias Schweighöfer). Ali, os conceitos misturam-se, visto que nem todos são hippies a acreditar no poder da paz & amor, pois alguns ali são militantes políticos e nesses termos, o amor livre dos hippies, não é aceito por todos. 

Gera-se a ideia dos ciúmes, que aos entusiastas das novas ideias a respeito do amor livre, é algo abominável e na contrapartida, a ideia em estimular ações políticas onde a violência é cogitada como expediente legítimo para impor ideologia, é rejeitada pelos hippies. Até a própria Uschi, que é bem resolvida nessa questão, cai na armadilha e tem um crise de ciúmes ao ver que uma antiga namorada de Rainer chega no galpão e ele não reluta em dormir com ela na mesma noite.

Enfim, em meio às controvérsias, Uschi logo é notada pelos repórteres fotográficos dos órgãos de imprensa e recebe convites para posar. Ele torna-se a musa dos movimentos estudantis e isso também gera ciúmes e inveja. Para piorar a relação dentro da “Kommune”, uma batida policial arbitrária, ocorre e acha-se uma bomba armazenada no local. Todos vão presos como terroristas, mas logo desmascara-se que a bomba fora “plantada” a mando das autoridades, para incriminar os jovens.

A fama de Uschi pela sua beleza incrível, é gerada na imprensa, e assim cresce muito, ao ponto de que um dia , ela receba um convite dos super astros do Rock, Mick Jagger & Keith Richards, dos Rolling Stones e assim, ela e Rainer vão a uma festa louquíssima, organizada por ambos em Londres. Dali em diante, Rainer percebe que não tem como segurar o ímpeto de astros com fama mundial e Uschi Obermaier torna-se uma groupie, dessa mega banda, de fato. 

Entretanto, por deter uma personalidade muito forte, ela não mergulha inteiramente nesse estilo de vida, ao menos nesse primeiro instante e dali até 1973, continuou a atuar como modelo fotográfico e a viver em várias cidades. Em 1969, por exemplo, ela recebeu um convite e aceitou atuar como atriz em um filme, chamado, “Rotte Sonne” (“Rota do Sol”). Dirigido por Rudolf Thome, ela foi protagonista da película, uma história policial, mas curiosamente, nesta cinebiografia, “Das Wilde Leben”, isso não foi mencionado. Tempos depois, por chamar tanto a atenção, eis que um dia o produtor de cinema italiano, Carlo Ponti, propõe-lhe um contrato milionário para atuar como atriz ao participar de dez filmes e o primeiro em que participaria, seria dirigido por Michelangelo Antonioni, ou seja, a sua beleza incrível abria-lhe as portas de uma forma absolutamente visceral, sem dificuldade alguma, mas em contrapartida, Uschi pareceu não ser ambiciosa, tampouco vaidosa e ao contrário de outras garotas que jamais perderiam tal chance, ela simplesmente emitiu um “arrivederci” para Carlo Ponti, ao rejeitar a oferta.
Nesse ínterim, entra em cena a figura de Dieter Bockhorn (interpretado por David Scheller), que acompanhado de um assessor seu (um lacaio, praticamente), chamado, Wieland “Lurchi” Vags (interpretado por Georg Friedrich), é um suposto hippie com um certo ar de aventureiro fanfarrão e golpista, que vive como um nômade a percorrer diversos países, sem maiores preocupações na vida a não ser viver um dia de cada vez. Portanto, Dieter tem muita sintonia de pensamento com Uschi, no sentido da liberdade absoluta e quando encontram-se verdadeiramente, há uma identificação imediata. Entretanto, Dieter, mesmo antes de conhecê-la pessoalmente, já sabia de sua existência e admirava-a, pela sua beleza física, ao ter visto muitas revistas com ensaios fotográficos seus.

Estabelecem então um relacionamento explosivo, visto que ambos tem gênio forte e brigam bastante por questões diversas, mas vão em frente, até que os Rolling Stones novamente surgem na vida de Uschi e ela volta a ser groupie, ao servir na cama os "Glimmer Twins", Jagger & Richards. 

Isso ocorreu por volta de 1973, quando ela viajou com a banda para uma extensa turnê pelos Estados Unidos (por ser fato real, deduz-se que isso ocorreu durante a turnê de lançamento do LP “Goat’s Head Soup”). Entretanto, ela cansa-se em viver em hotéis, fugir do assédio de fãs dentro de limusines e sobretudo, da extrema loucura permeada por drogas e bebidas e ao voltar para a Alemanha, reencontra Rainer em Hamburgo e aceita viajar com ele (e o assistente, Lurchi), pelo Oriente Médio e Ásia, através de um “Motorhome”, o famoso “Trailer”, que na verdade é um ônibus reformado e todo estilizado à estética psicodélica Hippie. 

Esse trio atravessa então muitos países exóticos e claro que chamam muito atenção com esse carro e eles próprios com visual “freak” em meio a povos com cultura fechada e quiçá adeptos de fundamentalismo religioso rígido. Na fronteira do Paquistão com a Índia, foi por pouco que mediante uma batida policial truculenta e arbitrária, eles não foram barbarizados e o salvo conduto só aconteceu quando Dieter com a sua costumeira mentira contumaz, convenceu os agentes policiais que seria um militar alemão com alta patente, apesar de aparentar ser um Hippie completamente lunático.

Na Índia, são confundidos com príncipes germânicos e uma senhora rica oferece-lhes uma cerimônia de casamento com direito a orquestra. Nessa cena, a chegada de Uschi, como uma noiva, em cima de um elefante totalmente ornado, é grandiloquente. Ambos vivem pois, uma aventura por dia nesses países, até que Uschi percebe que engravidara. Até aí tudo bem, fato da natureza, mas ela perde o bebê e isso mexe muito com ela, de uma maneira pela qual jamais achou que sentiria. Naturalmente que isso estremece a relação dela com Dieter.


Em seguida, o filme já os mostra por volta de 1983, no México, em uma praia, em meio a hippies latino-americanos, quando eis que aparece a figura de Keith Richards que está ali por alegar que vai casar-se naquela localidade, dias depois. Keith junta-se aos malucos na praia e faz um show particular em clima de luau. Dieter tem uma crise de ciúmes, pois sabe que Uschi já fora groupie dos Rolling Stones e sente que ela pode simplesmente sair dali com Richards, para voltar a acompanhar a banda em turnês, bastaria que ela desejasse isso e o casamento de Richards em nada mudaria tal predisposição. 

Esse ponto (aliás em todo o decorrer do filme isso acontece), é interessante por denotar que se a posição dos hippies em relação ao amor livre e sobretudo a condição das groupies em relação às bandas de Rock, sempre alardeou-se como livre e encarada com total naturalidade a revelar uma predisposição em impor-se como uma irreversível quebra de paradigma em torno das relações humanas (e principalmente em torno dos tabus sexuais), na prática, isso não foi exercido em 100%, exatamente pelo fator da personalidade única de cada indivíduo. Nesses termos, o fator posse/ciúmes, muitas vezes passou por cima do caráter libertário dos ideais. Portanto, nem mesmo uma alma livre como a de Uschi, esteve livre desses paradigmas mais arraigados.

Dieter resolve subir em uma moto e evadir-se da praia, sem despedir-se de Uschi. Aos gritos de “Viva Zapata”, ele simplesmente acelera a moto a vai embora. Uschi fica triste, tenta resignar-se e seguir em frente, mas vai atrás de Dieter e depara-se com uma cena triste, ocorrida poucos segundos antes, pois Dieter colidira de frente com um caminhão e morrera, instantaneamente.  Não fica claro no filme, se Dieter sofrera um acidente ou simplesmente teve o impulso em encerrar a sua existência por vontade própria. Daí, vem novamente a cena exibida no início do filme, em que Uschi prepara o corpo de Dieter e o crema, ao estilo de uma cerimônia fúnebre viking, com o corpo em chamas a queimar sob uma pira em forma de bote a navegar no mar.

O filme acaba aí, mas há uma menção nos créditos a esclarecer que posteriormente Ushi tornou-se uma designer de joias e abandonou a vida hippie, cheia de aventuras, que vivera desde 1968.

Muito bem, história real, pincela bem como foi o espírito de época sob a ótica germânica; envolve os Rolling Stones; cita o cinema; a vida de Uschi como modelo e a sua errante peregrinação como nômade em meio a muitas histórias que viveu e colecionou para justificar um filme interessante. Trilha sonora muito boa; fotografia e figurinos, idem, direção de arte e locações, visualmente belíssimas e atuações boas. A atriz, Natalia Avelon, impressionou pela semelhança física com a Ushi Obermaier da vida real. Aliás, Uschi em pessoa, foi assessora da produção e colaborou muito, não apenas com o roteiro e elaboração da personagem por parte de Natalia, mas inclusive como na questão do sotaque de Munique, que segundo consta para quem fala bem o idioma alemão, ficou bem convincente.
Outros atores relacionados neste filme: Friedericke Kempter (como Sabine), Victor Norén (como Mick Jagger), Milan Peschel (como Freiberg), George Friedrich (como Lurchi), Inga Busch (como Agentin), Heike Warmuth (como Barbara), Sebastian Maschat (como Conrad), Julia Valet(como Kajol) e outros.

A crítica não gostou do excesso de cenas de sexo e que em alguns trechos, são quase explícitas. Compreensível que haja uma reclamação nesse aspecto, visto não tratar-se de um filme pornográfico, no entanto, teria sido inverossímil evitar ou mesmo diminuir tal incidência de erotismo, ao tratar-se da cinebiografia de uma modelo que foi hippie e groupie. Tirante esse excesso, que há mesmo, trata-se de um bom filme a retratar mais uma vez o universo das groupies em relação às bandas de Rock, no entanto, com o enfoque ligeiramente diferente do habitual, visto que a vida de Uschi Obermaier deu margem a um filme cheio de aventuras. 

Escrito por Olaf Kraemer e Achim Bornhak. Dirigido por Akim Bornhak, e lançado em 2007.
Disponível em DVD / Blue Ray, no You Tube só existe postado em cenas esparsas. É possível assisti-lo na íntegra e gratuitamente, no portal de vídeos, “UK.RU”. 
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll". Está disponível para a leitura através do seu volume II, a partir da página 124.