segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Filme: Das Wilde Leben (Eight Miles High - A Vida Selvagem) - Por Luiz Domingues

Mais uma história interessante a retratar a presença de groupies, como personagens recorrentes na entourage de bandas de Rock (principalmente nos anos sessenta e setenta), o filme alemão, “Das Wilde Leben” (denominado: Eight Miles High”, em inglês e “A Vida Selvagem”, em português), vai além do trivial já abordado em filmes como “Groupie Girl” e “Permissive”, lançados em 1970. Em primeiro lugar, porque trata-se de um filme baseado em fatos reais e em uma segunda análise, muito por conta da biografia da personagem central retratada, extrapolou os limites do Rock ao mostrar uma história a esbarrar em muitos aspectos diferentes, embora a aura Rock’n' Roll permeie a obra inteira.

A primeira cena do filme mostra a protagonista, completamente nua em uma praia paradisíaca a observar um bote em chamas a navegar no mar. Seria uma pira funerária viking? Ao final, tudo é esclarecido, certamente. Bem, em ritmo de flashback, o filme mostra a trajetória pessoal de uma moça de Munique, na Alemanha, chamada: Uschi Obermaier. Oriunda de uma família classe média baixa, ela vive às turras com a sua mãe e o padrasto. 


Eis que acompanhada de uma amiga, vão assistir um show de Rock em uma casa de pequena expressão, mas a sua beleza que é muito grande, chama a atenção de um fotógrafo que está ali por pura coincidência e este a aborda e pede autorização para fotografá-la. Dali para um ensaio fotográfico sensual foi um salto rápido, entretanto, a sua mãe acha as fotos em seu quarto e escandalizada, briga com a filha e também com o padrasto e sai de casa ao melhor estilo “She’s Leaving Home”, acompanhada de sua amiga.

Uma vez na estrada tais moças pedem carona, até que uma Kombi ornada com cores psicodélicas passa e as convida a viajar. Trata-se de uma banda de Rock em seu interior, chamada : “Bröselpilze”. Vive-se o ano de 1968 e a lisergia estava na Alemanha com toda a força, tanto quanto na Inglaterra, mas os alemães tinham as suas particularidades locais, bem acentuadas. Um exemplo disso, dá-se quando chegam em Berlim e lá, ocupam um um galpão abandonado, ou seja, um tipo de ocupação bem comum entre os hippies alemães nesses anos.

São interessantes as cenas a mostrar a vida deles em “kommune”, em meio a muitos incensos; o som de cítaras e eventualmente com a banda a ensaiar. O som que produzem ali, é absolutamente experimental e lembra sob muitos aspectos o som ultra conceitual da banda alemã, Amon Düül, em sua primeira fase na carreira (nos anos setenta, o Amon Düül II, a sua dissidência, foi bem mais musical, certamente), ou seja, é no limite da cacofonia. E para seguir a história real de Uschi Obermaier (interpretada por Natalia Avelon, tão linda quanto a Uschi da vida real), há um enfoque na sua vida sexual intensa, a fazer a conexão sobre a sua personalidade em específico, e o espírito livre da vida em comunidade hippie. 

Uschi envolve-se inicialmente com Rainer Langhans (interpretado por Mathias Schweighöfer). Ali, os conceitos misturam-se, visto que nem todos são hippies a acreditar no poder da paz & amor, pois alguns ali são militantes políticos e nesses termos, o amor livre dos hippies, não é aceito por todos. 

Gera-se a ideia dos ciúmes, que aos entusiastas das novas ideias a respeito do amor livre, é algo abominável e na contrapartida, a ideia em estimular ações políticas onde a violência é cogitada como expediente legítimo para impor ideologia, é rejeitada pelos hippies. Até a própria Uschi, que é bem resolvida nessa questão, cai na armadilha e tem um crise de ciúmes ao ver que uma antiga namorada de Rainer chega no galpão e ele não reluta em dormir com ela na mesma noite.

Enfim, em meio às controvérsias, Uschi logo é notada pelos repórteres fotográficos dos órgãos de imprensa e recebe convites para posar. Ele torna-se a musa dos movimentos estudantis e isso também gera ciúmes e inveja. Para piorar a relação dentro da “Kommune”, uma batida policial arbitrária, ocorre e acha-se uma bomba armazenada no local. Todos vão presos como terroristas, mas logo desmascara-se que a bomba fora “plantada” a mando das autoridades, para incriminar os jovens.

A fama de Uschi pela sua beleza incrível, é gerada na imprensa, e assim cresce muito, ao ponto de que um dia , ela receba um convite dos super astros do Rock, Mick Jagger & Keith Richards, dos Rolling Stones e assim, ela e Rainer vão a uma festa louquíssima, organizada por ambos em Londres. Dali em diante, Rainer percebe que não tem como segurar o ímpeto de astros com fama mundial e Uschi Obermaier torna-se uma groupie, dessa mega banda, de fato. 

Entretanto, por deter uma personalidade muito forte, ela não mergulha inteiramente nesse estilo de vida, ao menos nesse primeiro instante e dali até 1973, continuou a atuar como modelo fotográfico e a viver em várias cidades. Em 1969, por exemplo, ela recebeu um convite e aceitou atuar como atriz em um filme, chamado, “Rotte Sonne” (“Rota do Sol”). Dirigido por Rudolf Thome, ela foi protagonista da película, uma história policial, mas curiosamente, nesta cinebiografia, “Das Wilde Leben”, isso não foi mencionado. Tempos depois, por chamar tanto a atenção, eis que um dia o produtor de cinema italiano, Carlo Ponti, propõe-lhe um contrato milionário para atuar como atriz ao participar de dez filmes e o primeiro em que participaria, seria dirigido por Michelangelo Antonioni, ou seja, a sua beleza incrível abria-lhe as portas de uma forma absolutamente visceral, sem dificuldade alguma, mas em contrapartida, Uschi pareceu não ser ambiciosa, tampouco vaidosa e ao contrário de outras garotas que jamais perderiam tal chance, ela simplesmente emitiu um “arrivederci” para Carlo Ponti, ao rejeitar a oferta.
Nesse ínterim, entra em cena a figura de Dieter Bockhorn (interpretado por David Scheller), que acompanhado de um assessor seu (um lacaio, praticamente), chamado, Wieland “Lurchi” Vags (interpretado por Georg Friedrich), é um suposto hippie com um certo ar de aventureiro fanfarrão e golpista, que vive como um nômade a percorrer diversos países, sem maiores preocupações na vida a não ser viver um dia de cada vez. Portanto, Dieter tem muita sintonia de pensamento com Uschi, no sentido da liberdade absoluta e quando encontram-se verdadeiramente, há uma identificação imediata. Entretanto, Dieter, mesmo antes de conhecê-la pessoalmente, já sabia de sua existência e admirava-a, pela sua beleza física, ao ter visto muitas revistas com ensaios fotográficos seus.

Estabelecem então um relacionamento explosivo, visto que ambos tem gênio forte e brigam bastante por questões diversas, mas vão em frente, até que os Rolling Stones novamente surgem na vida de Uschi e ela volta a ser groupie, ao servir na cama os "Glimmer Twins", Jagger & Richards. 

Isso ocorreu por volta de 1973, quando ela viajou com a banda para uma extensa turnê pelos Estados Unidos (por ser fato real, deduz-se que isso ocorreu durante a turnê de lançamento do LP “Goat’s Head Soup”). Entretanto, ela cansa-se em viver em hotéis, fugir do assédio de fãs dentro de limusines e sobretudo, da extrema loucura permeada por drogas e bebidas e ao voltar para a Alemanha, reencontra Rainer em Hamburgo e aceita viajar com ele (e o assistente, Lurchi), pelo Oriente Médio e Ásia, através de um “Motorhome”, o famoso “Trailer”, que na verdade é um ônibus reformado e todo estilizado à estética psicodélica Hippie. 

Esse trio atravessa então muitos países exóticos e claro que chamam muito atenção com esse carro e eles próprios com visual “freak” em meio a povos com cultura fechada e quiçá adeptos de fundamentalismo religioso rígido. Na fronteira do Paquistão com a Índia, foi por pouco que mediante uma batida policial truculenta e arbitrária, eles não foram barbarizados e o salvo conduto só aconteceu quando Dieter com a sua costumeira mentira contumaz, convenceu os agentes policiais que seria um militar alemão com alta patente, apesar de aparentar ser um Hippie completamente lunático.

Na Índia, são confundidos com príncipes germânicos e uma senhora rica oferece-lhes uma cerimônia de casamento com direito a orquestra. Nessa cena, a chegada de Uschi, como uma noiva, em cima de um elefante totalmente ornado, é grandiloquente. Ambos vivem pois, uma aventura por dia nesses países, até que Uschi percebe que engravidara. Até aí tudo bem, fato da natureza, mas ela perde o bebê e isso mexe muito com ela, de uma maneira pela qual jamais achou que sentiria. Naturalmente que isso estremece a relação dela com Dieter.


Em seguida, o filme já os mostra por volta de 1983, no México, em uma praia, em meio a hippies latino-americanos, quando eis que aparece a figura de Keith Richards que está ali por alegar que vai casar-se naquela localidade, dias depois. Keith junta-se aos malucos na praia e faz um show particular em clima de luau. Dieter tem uma crise de ciúmes, pois sabe que Uschi já fora groupie dos Rolling Stones e sente que ela pode simplesmente sair dali com Richards, para voltar a acompanhar a banda em turnês, bastaria que ela desejasse isso e o casamento de Richards em nada mudaria tal predisposição. 

Esse ponto (aliás em todo o decorrer do filme isso acontece), é interessante por denotar que se a posição dos hippies em relação ao amor livre e sobretudo a condição das groupies em relação às bandas de Rock, sempre alardeou-se como livre e encarada com total naturalidade a revelar uma predisposição em impor-se como uma irreversível quebra de paradigma em torno das relações humanas (e principalmente em torno dos tabus sexuais), na prática, isso não foi exercido em 100%, exatamente pelo fator da personalidade única de cada indivíduo. Nesses termos, o fator posse/ciúmes, muitas vezes passou por cima do caráter libertário dos ideais. Portanto, nem mesmo uma alma livre como a de Uschi, esteve livre desses paradigmas mais arraigados.

Dieter resolve subir em uma moto e evadir-se da praia, sem despedir-se de Uschi. Aos gritos de “Viva Zapata”, ele simplesmente acelera a moto a vai embora. Uschi fica triste, tenta resignar-se e seguir em frente, mas vai atrás de Dieter e depara-se com uma cena triste, ocorrida poucos segundos antes, pois Dieter colidira de frente com um caminhão e morrera, instantaneamente.  Não fica claro no filme, se Dieter sofrera um acidente ou simplesmente teve o impulso em encerrar a sua existência por vontade própria. Daí, vem novamente a cena exibida no início do filme, em que Uschi prepara o corpo de Dieter e o crema, ao estilo de uma cerimônia fúnebre viking, com o corpo em chamas a queimar sob uma pira em forma de bote a navegar no mar.

O filme acaba aí, mas há uma menção nos créditos a esclarecer que posteriormente Ushi tornou-se uma designer de joias e abandonou a vida hippie, cheia de aventuras, que vivera desde 1968.

Muito bem, história real, pincela bem como foi o espírito de época sob a ótica germânica; envolve os Rolling Stones; cita o cinema; a vida de Uschi como modelo e a sua errante peregrinação como nômade em meio a muitas histórias que viveu e colecionou para justificar um filme interessante. Trilha sonora muito boa; fotografia e figurinos, idem, direção de arte e locações, visualmente belíssimas e atuações boas. A atriz, Natalia Avelon, impressionou pela semelhança física com a Ushi Obermaier da vida real. Aliás, Uschi em pessoa, foi assessora da produção e colaborou muito, não apenas com o roteiro e elaboração da personagem por parte de Natalia, mas inclusive como na questão do sotaque de Munique, que segundo consta para quem fala bem o idioma alemão, ficou bem convincente.
Outros atores relacionados neste filme: Friedericke Kempter (como Sabine), Victor Norén (como Mick Jagger), Milan Peschel (como Freiberg), George Friedrich (como Lurchi), Inga Busch (como Agentin), Heike Warmuth (como Barbara), Sebastian Maschat (como Conrad), Julia Valet(como Kajol) e outros.

A crítica não gostou do excesso de cenas de sexo e que em alguns trechos, são quase explícitas. Compreensível que haja uma reclamação nesse aspecto, visto não tratar-se de um filme pornográfico, no entanto, teria sido inverossímil evitar ou mesmo diminuir tal incidência de erotismo, ao tratar-se da cinebiografia de uma modelo que foi hippie e groupie. Tirante esse excesso, que há mesmo, trata-se de um bom filme a retratar mais uma vez o universo das groupies em relação às bandas de Rock, no entanto, com o enfoque ligeiramente diferente do habitual, visto que a vida de Uschi Obermaier deu margem a um filme cheio de aventuras. 

Escrito por Olaf Kraemer e Achim Bornhak. Dirigido por Akim Bornhak, e lançado em 2007.
Disponível em DVD / Blue Ray, no You Tube só existe postado em cenas esparsas. É possível assisti-lo na íntegra e gratuitamente, no portal de vídeos, “UK.RU”. 
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll". Está disponível para a leitura através do seu volume II, a partir da página 124.

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