Inaugurado em uma época onde a força dos
cinemas de rua ainda era muito grande em São Paulo, o Cine Bijou teve o seu
charme e diferencial por outros aspectos. Ao fugir da tendência dos cinemas
gigantescos e luxuosos (alguns bem "kitsch", convenhamos), o Bijou mostrava-se como uma sala
modesta, a conter apenas 137 poltronas, com decoração simples, sem exageros. Todavia, o grande diferencial esteve na
sua programação, com a opção pelo cinema de arte; alternativos; documentários e
outras peças impossíveis de serem exibidas em salas tradicionais da cidade.
Com essa característica assumida como um
cineclube, e aberto ao público em geral, o Cine Bijou ganhou admiradores de imediato,
ao atrair o jovem público universitário que cercava a Praça Roosevelt, em uma
época em que o Campus da USP, no distante bairro do Butantã, ainda estava a ser construído, e portanto, as suas
diversas faculdades espalhavam-se por prédios esparsos pelo centro da cidade de
São Paulo.
Mas também atraiu a classe artística, o
pessoal do meio teatral que sempre frequentou aquele pedaço, principalmente, por conta da
existência de inúmeros teatros pelas redondezas e uma infinidade de restaurantes;
bares e lanchonetes frequentados por atores; diretores; técnicos; autores, jornalistas e intelectuais etc. Logicamente isso também atraiu músicos
que apresentavam-se em casas noturnas daquele entorno e por conseguinte, gente
do cinema; artes plásticas; escritores; poetas e cronistas...
Bingo, estava formatada uma clientela
assídua, formada por intelectuais, ao fazer com que a fama da sala, a tornasse de fato, uma
referência cultural muito forte para os paulistanos. Em meio a uma época onde o centro velho de São
Paulo ainda não apresentava sinais de degradação, a noite era movimentada como
eu já afirmei anteriormente e o Cine Bijou foi um ponto certo para um programa
sempre de ótimo nível, e assim abrir a possibilidade da noite ser prolongada a posteriori com
a opção de uma eventual visita a um teatro; show musical; jantares ou noitadas pelas boites das
cercanias.
Foi no ano de 1962, que um rapaz
estrangeiro chamado, Harry Wilhoit (cuja nacionalidade é controversa, pois
alguns afirmam que era francês e outros, norte-americano), fundou o Cine Bijou. Ele
fora um ex-funcionário da Universal Pictures, segundo consta. A exibir filmes europeus, japoneses ou
norte-americanos e principalmente alternativos, nada "Hollywoodeanos", agradava em cheio à esse público
sedento por um cinema, menos ou nada comercial, o padrão nas salas de cinema
tradicionais da cidade. A fina flor do cinema francês; italiano
e japonês, entre outras escolas e nacionalidades, ali foi exibida para o deleite
dos cinéfilos paulistanos.
A "Nouvelle Vague" francesa bateu ponto
na Praça Roosevelt, assim como o pós-neorrealismo italiano de Fellini e
Antonioni, para o completo deleite dos cinéfilos paulistanos. No período anteriormente prévio ao endurecimento do regime em 1964, apesar
das tensões que já haviam no ar por conta da turbulência sociopolítica gerada,
ainda não havia problemas para a exibição de filmes por conta da censura, e
nem mesmo no período inicial do regime militar, quando a pressão sobre a cultura
iniciou-se de forma branda, e só a piorar mesmo, após a decretação do AI-5, em dezembro
de 1968.
Portanto, filmes como “Mimi, o
Metalúrgico”, de Lina Wertmuller, e “ A Classe Operária vai ao Paraíso”, de
Elio Petri, foram exibidos no Cine Bijou, nos chamados "anos de chumbo", mas não sem antes
uma longa conversa de convencimento com os senhores censores de que a programação não tinha intenção “subversiva” etc e tal. Por volta do final dos anos sessenta, o
cinema foi vendido para o empreendedor cultural, Francisco Coelho, que manteve o
mesmo espírito alternativo, apesar de ser dono de salas de cinema cinemas tradicionais nos
bairros do Brás e Penha, na zona leste de São Paulo. A sua perspicácia em não
mudar a orientação do Bijou, foi genial.
Ao final dos anos sessenta, e por quase
toda a década de setenta, filmes e documentários sob forte teor contracultural fizeram
a festa no Bijou, e o espaço também tornou-se um grande ponto de
referência para Hippies; Rockers & Freaks em geral.
São históricas as sessões que exibiram
filmes como Easy Rider; The Trip; Zabriskie Point, além dos documentários sobre
os festivais de Monterey’ 1967; Woodstock; Altamont; e a turnê de Joe Cocker, de 1970, Mad Dogs and the Englishmen, entre tantos outros
que evocavam a cultura Pop; Contracultura; Rock e afins. No ano de 1972, o espaço passou por uma
ampliação, quando abriu uma nova sala em anexo, que passou a chamar-se : Sala Bijou
Sérgio Cardoso.
A minha ligação pessoal com o Cine Bijou,
vem daí, nos anos setenta, quando eu entrei na adolescência e mesclei duas paixões.
Uma que vinha desde a tenra infância, que foi o cinema, e posteriormente o
mergulho no desbunde contracultural, via música e demais signos inerentes.
Causa-me uma incrível nostalgia pensar
nas inúmeras sessões de cinema que eu ali presenciei, em companhia de amigos ou solitariamente, não apenas pela qualidade das
obras exibidas que eu escolhi ver, mas também pela aura sensacional que a época proporcionou-nos. Claro, nas ruas o baixo astral da época
cinza da política dura, existia e assustava. Batidas policiais agressivas aconteciam
aos montes e há relatos de ocorrências com frequentadores do Bijou, mas esse
azar eu não tive, ainda bem.
Alheios aos tempos marcados por coturnos e ideário nada libertário, e muito pelo contrário, o astral ali na porta e
dentro do Bijou, era totalmente coadunado com a máxima do “Peace & Love”, e o aroma típico daqueles anos
foi o de Patchouli, perfume padrão para nove a cada dez Freaks.
Eu assisti muitos filmes do genial Werner Herzog, um
cineasta alemão que aprendi a cultuar, com o seu cinema hipnótico e quase sempre
ao som da banda alemã Prog-Rock, "Popol Vuh", sensacional.
Apreciei muito cinema italiano, onde tornei-me
muito fã de Ettore Scola e Mario Monicelli, entre tantos cineastas geniais da
terra do macarrão.
Dario Argento; Alain Resnais; Ingmar
Bergman e um Woody Allen ainda não elevado à categoria de uma “persona pop”,
foram frequentes ali.
Ciclos sensacionais com diretores como:
Akira Kurosawa; Yasujiro Ono; Stanley Kubrick; Tony Richardson e Roman
Polansky... onde mais seria possível, senão no Bijou ?
Hal Ashby; o desbunde britânico através do humor do
Monty Phyton e o primeiro Milos Forman (que a gente nunca esquece)...
Lembro-me em ter saído do Bijou, com a música:
“Porque te Vas", grudada, literalmente em minha mente, depois de assistir “Cria Cuervos”, do diretor espanhol, Carlos Saura.
A cinebiografia do compositor, Scott
Joplin, um achado musical sensacional que abriu-me os olhos para a beleza do
"ragtime", uma vertente antiga e praticamente extinta do Jazz, foi uma película que causou-me um grande
impacto.
Assim como outra cinebiografia musical, a narrar a vida & obra de Woody
Guthrie (Bound for Glory, de Hal Ashby), um pioneiro da Folk-Music norte-americana,
ídolo de Bob Dylan e Joan Baez; pai do Hippie-mor, Arlo Guthrie, e interpretado
de forma visceral pelo eterno "Kung Fu", o ator David Carradine. E não poderia ter sido uma pancada
mais forte, bem no meio do peito, que eu levei, no bom sentido do termo, sentado em uma daquelas poltronas
vermelhas...
Presenciei também muitos filmes mais antigos.
Reprises de filmes sessentistas sensacionais como, “A Dança dos Vampiros”, de Roman
Polansky, e ao ver, não parar de pensar que aquela mulher deslumbrante, Sharon Tate,
havia morrido poucos anos antes de uma forma tão chocante...
Ver a Barbarella, interpretada por aquela outra mulher deslumbrante... convencido
que aquele francês safado, um tal de Roger Vadin, foi o sujeito mais sortudo do planeta,
enfim...
Dustin Hoffman sem saber o que fazer
com a sogra, e o som de Simon and Garfunkel a explodir na tela; depois foi o som
do Nilsson a ecoar, e o Dustin a viajar para Miami, ao buscar o sol, e morrer
antes de sentir o calor da Flórida, tuberculoso, dentro do ônibus...
Responda-me, Stanley Kubrick : E os macacos ? E o monolito ? E a valsa
espacial ? E o Hal 9000 (I’m Sorry, Dave... I’m Afraid, I Can’t Do That...) ? Isso sem deixar de mencionar sobre a grande cena final que causa aquela apreensão toda sobre a vida / morte; começo /
final ? Preciso citar o nome do filme ? Tudo na tela do Bijou !
O que dizer sobre o documentário, “Janis”, a repercutir a vida & obra de Janis
Joplin ?
Quantas sessões de "Janis" eu assisti e sempre com o mesmo
desfecho : aquele bando de hippies sendo surpreendidos com os olhos marejados
ao inevitável acendimento das luzes de serviço com o término da sessão... quem
aguenta aquela cena final das fotos na garagem, ao som de "Me and Bob McGee", sem
emocionar-se ?
Outro momento a gerar um “nó na garganta”, com o
belíssimo “The Last Waltz”, de Martin Scorsese. Tudo bem, nós sabíamos que a
The Band havia encerrado a sua carreira e isso foi inevitável. Sabíamos também
que o filme era lindo, misto de documentário e show ao vivo do concerto de
despedida dessa banda maravilhosa, mas como não emocionar-se mesmo assim ?
E lá fomos nós, muitas vezes pagar para deixar
cair uma lágrima ao ver o grande Levon Hel cantar : "The Night They Drove Old Dixie
Down”... fazer o quê, não é mesmo ? Não foi a realidade afirmar que o sonho acabou, mas na verdade, acabaram com o
nosso sonho, se é que me entendem...
Todavia, os tempos mudaram e esse
astral todo pôs-se a dissipar-se. Por volta de 1986, uma das salas remodelou-se e
passou a chamar-se : “Cine Clube Oscarito”. Eis que a sua administração tentou bravamente manter a tradição
do Cine Bijou, mas tratava-se de uma geração diferente a ser atraída, e que não dava a
mesma resposta a lotar as salas e comungar dos mesmo ideais. Outro fator, a ser considerado, ao perder para os videocassetes e as “baladas”,
o Bijou perdeu força e lá pela metade dos anos noventa, encerrou a sua
história. Para amenizar, uma turma boa, imbuída
de amor à arte, não deixou a sala cair nas mãos de um empreendedor disposto a
abrir um supermercado ou um religioso a fundar uma Igreja. Em princípio, no ano de 1999, recebeu o
nome de “Cine Teatro Recriarte Bijou”. Não durou muito, infelizmente, e em 2003, passou por outra reformulação,
quando passou a chamar-se “Teatro do Ator”. Transformada novamente alguns anos
depois, a sala tornou-se o Teatro Studio 184, e desde então, tem mantido-se
como um polo de resistência ao teatro não comercial, ao lado do Teatro
Parlapatões, que mantém a mesma iniciativa, e ambos agitam a Praça Roosevelt dos anos
2000/2010, como um polo de teatro alternativo na cidade.
Mais que isso, mesclam exibições de
cinema, a evocar a velha aura do antigo Cine Bijou, inclusive ao exibir
clássicos do cinema alternativo das décadas de cinquenta; sessenta e setenta,
visivelmente para atrair muitos saudosistas do velho Bijou de outrora. Eventualmente, anunciam
também produções itinerantes, com o objetivo em levar tal programação de cinema para outros
ambientes, uma iniciativa positiva, também. Claro que não é a mesma coisa, mas eu prefiro
mil vezes que ainda haja uma ligação, tênue que seja, viva do velho Bijou, do
que o destino da imensa maioria dos cinemas de rua da cidade de São Paulo :
demolidos ou entregues para fins nada culturais.
Um livro escrito por um rapaz que foi
frequentador do Cine Bijou, foi lançado no mercado literário a conter muitas impressões pessoais do seu autor, a
respeito de sua experiência como habitue da sala. Trata-se de “Cine Bijou”, de
Marcelo Coelho, e que conta com ilustrações belíssimas, assinadas por Caco
Galhardo, inspiradas nos filmes citados por Marcelo, e também pela própria
ambientação do Bijou e alguns pontos da cidade de São Paulo, igualmente citados
na obra.
Ilustração de Caco Galhardo, a aludir ao filme: "A Clockwork Orange" ("Laranja Mecânica"), de Stanley Kubrick, e presente no livro, "Cine Bijou".
É um texto bem centrado na experimentação pessoal do autor, que remonta às suas impressões desde 1974, quando passou a frequentar com assiduidade a sala, e mesmo sendo bem personalista, é um belo registro.
É um texto bem centrado na experimentação pessoal do autor, que remonta às suas impressões desde 1974, quando passou a frequentar com assiduidade a sala, e mesmo sendo bem personalista, é um belo registro.
Eu culminei em trilhar o mesmo caminho do
Marcelo em seu livro, e nesta matéria, citei muitas impressões e lembranças
pessoais minhas, também, por que é válido, acredito. Esse foi o Cine Bijou, que fez uma história
muito linda entre 1962, e o fim dos anos setenta, a pensar-se em um “auge”, digamos
assim, e que teve o seu final oficial em 1996, infelizmente, mas que continua nos dias atuais, como um espaço multiuso em prol da arte & cultura.
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2016
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