terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Livro: 101 Crônicas para eu ler antes de morrer/João Lucas - Por Luiz Domingues

Entre as tantas possibilidades que a literatura nos oferece, a vertente das crônicas está entre as minhas prediletas. O cotidiano observado pelas pessoas, expresso em meio ao seu convívio na sociedade,  sempre rende um bom texto e do qual nos identificamos sob múltiplos aspectos, bem dentro daquela prerrogativa óbvia de que estamos todos a viver situações e emoções muito parecidas ao longo da existência.

O bom cronista é antes de tudo um observador, um detalhista que lê as entrelinhas, percebe os arredores sob visão mais ampla do que a percepção dos distraídos em geral e sobretudo, a acrescentar nuances diversificadas sobre cada narrativa empreendida.

Todos esses predicados eu encontrei com abundância, nas páginas do livro: "101 Crônicas minhas para eu ler antes de morrer", livro escrito por João Lucas, artista muito conhecido por sua trajetória na música, e que exerce a escrita há tempos, sempre a publicar seus bons textos através das redes sociais. Tal iniciativa de expor seus escritos certamente lhe serviu como um termômetro a lhe mostrar o sucesso que suas publicações despertaram e dessa forma, ele tomou a decisão certeira de providenciar a publicação do livro impresso, muito bem vindo.

Organizado de uma forma a acompanhar a trajetória cronológica do autor, o livro tem um certo caráter autobiográfico, sem ser no entanto, uma autobiografia assumida. Tal característica, inclusive, está insinuada na capa do livro e reforçada através das orelhas e contracapa da obra, quando diversas fotos do autor, extraídas das famosas fotos 3/4 obrigatórias para ilustrar documentos, o mostram, da juventude à idade madura, através de uma muito criativa ideia.

Nesses termos, são deliciosas as crônicas que remontam às suas mais remotas reminiscências da infância, das quais, confesso que gerou-me bastante comoção, pois as situações descritas são muito semelhantes ao que eu experimentei na minha própria tenra infância, principalmente no advento da idade escolar.

Pude também imaginar o bucolismo prosaico que foi uma marca registrada do bairro em que ele viveu na zona sul de São Paulo e do qual eu também experimentei percepções muito semelhantes, pois ali vivi, igualmente. Se eu já tenho essa lembrança boa desse bairro, quando ali morei a partir de 1967, posso mensurar como ele era ainda mais incrível ao final dos anos cinquenta e início dos sessenta, no qual ele o descreveu.

As brincadeiras de rua, a amizade mais ingênua e muito sincera que se forja no bairro em geral e nos bancos escolares, a simplicidade encantadora da metodologia didática adotada pelas primeiras professoras, enfim, são muitas as lembranças citadas.

No avançar da obra, eis que uma explosão de signos interessantíssimos surge, ao descrever a sua entrada no período da adolescência, amparada por toda aquela explosão sonora dos anos sessenta sob vários vórtices e a descoberta do cinema (e eu sei bem como a grande avenida que corta esse bairro era pródiga em exibir aquele grande número de salas de cinema de rua, décadas atrás), o impactou.

Eis que eu leio muitas crônicas ótimas sobre os seus primeiros contatos reais com a música, as primeiras bandas, a descoberta do Jazz, da Bossa Nova, do Rock'n'Roll e a vida do músico da noite levado para embalar a alegria onde o povo está, com direito a muitas histórias engraçadas dos bastidores, que muito me divertiram e claro, com as quais me identifiquei de imediato. 

A vida laboral fora da música também rendeu crônicas muito significativas, com situações dignas de um roteiro de filme, que renderia muito nas mãos de uma diretora engajada do porte de Lina Wertmüller e aliás, todas as crônicas propostas por João Lucas tem o poder da perspectiva cinematográfica. O cinema tem tudo a ver com a formação cultural dele e isso ficou impregnado nas suas crônicas, no sentido de que as crônicas tem muitas imagens implícitas.

A vida universitária e a consciência política recém-adquirida nessa fase da sua vida, a apontar para a convicção acalorada em torno dos mais belos ideais e os muitos contrastes que advém dessa perspectiva, também estão bem presentes e emocionam.

Dessa maneira, eu pensei muito no cinema de François Truffaut, quando ele propôs relatar as suas lembranças sobre a infância e adolescência, a me lembrar dos filmes que acompanharam o crescimento e amadurecimento sistemático da personagem de Antoine Doinel, em vários filmes a usar o recurso do mesmo ator (Jean-Pierre Léaud) a interpretá-lo e assim a explorar o seu próprio crescimento como ser humano. João Lucas e Truffaut tem muito a ver um com o outro, estou convencido disso.

Quando da plena adolescência e início da juventude madura em curso, eis que João Lucas descobriu o amor, quando fala de Valéria, sua namorada, musa inspiradora e esposa, cuja convivência pelas décadas afora, também rendeu crônicas ótimas, a falar sobre a cumplicidade do namoro e companheirismo no casamento, inclusive sobre os diversos aspectos mais básicos da organização familiar, a casa, os filhos e os netos.

A vida artística também rendeu boas crônicas e nesse aspecto, eu pensei que viria uma enxurrada de histórias nesse sentido, mas nesse quesito, João Lucas economizou. Indício de que virá um novo volume centrado em tais lembranças? Tomara que sim.

Aliás, foi exatamente nesse ponto que eu o conheci, quando tive a oportunidade de voltar a ser componente de uma banda da qual eu estive na sua primeira formação e nessa fase da minha volta, João Lucas foi o tecladista, compositor e vocalista do Língua de Trapo, ícone do humor e sátira no Brasil e então um dos nomes mais celebrados daquela cena artística que ficou conhecida como "Vanguarda Paulista", nos anos 1980. 

Da esquerda para a direita: Nahame Casseb, Fernando Marconi, Laert Sarrumor, João Lucas, Lizoel Costa, Serginho Gama, eu (Luiz Domingues) e Pituco Freitas. A formação do Língua de Trapo quando da minha volta à banda em 1983, quando me tornei amigo de João Lucas

Nessa minha segunda passagem pela banda (1983-1984), estive no palco com o amigo João Lucas por mais de cem vezes e gravamos juntos um disco ao vivo. Nos muitos ensaios, palcos de shows, saguões de hotéis, plataformas de rodoviárias & estações ferroviárias, bancos de "Kombis", restaurantes, coxias de teatro, estúdios de rádio e TV dos quais estivemos juntos, sempre conversávamos muito e ali ele já se mostrava um cronista nato e sensacional, ao contar-nos histórias incríveis que colecionara na sua memória.

Portanto, quando eu soube que ele lançara um livro, e já leitor de muitas crônicas que ele publicara na rede social, lembrei-me bem desse convívio, isto é, de como João armazenara tais lembranças na sua memória e como ele sempre as narrava com uma graciosidade muito grande. E ao ler a obra, constatei que, sim, todo aquele talento para contar histórias e a acrescentar muitas nuances enriquecedoras nas entrelinhas, estava devidamente impresso nas páginas da obra e sim, com direito a imagens cinematográficas, muita música implícita e claro, poesia.

Ainda a lembrar a nossa amizade forjada como companheiros de banda, eu preciso acrescentar que o editor do livro e autor do prefácio, foi o nosso amigo em comum, Jerome Vonk, cuja atuação como empresário do Língua de Trapo naquele período no qual estivemos juntos, foi muito prolífica. Jerome também é um ótimo contador de histórias boas, e suas lembranças dentro da música, são riquíssimas.   

Sobre o título do livro, João me contou que se baseou naquelas intermináveis listas que abundam as redes sociais, a dar conta de muitos assuntos variados. As pessoas adoram elencar os "melhores" (e também os "piores"), entre os representantes de infindáveis ramos das atividades humanas em geral e assim, ele usou dessa ideia como base e a ironizar a marca de "cem", ao usar o "cento e um", número de crônicas que demarcou o conteúdo do livro.

Para encerrar, digo que o livro me despertou o sentimento de identificação em muitos aspectos, gerou-me nostalgia por motivações diversas, boas risadas em muitos momentos e o florescer de reflexões importantes, em outros.

Músico de alto gabarito, João Lucas é um tecladista, cantor e compositor da pesada. Muitas das músicas que ele compôs, tem uma inequívoca vocação para o cinema, com aquela atmosfera de trilha sonora que fala por si só, algo muito natural em face à influência que o cinema sempre teve na sua formação cultural e isso também está presente no livro.

Leitura mais do que recomendada, "101 crônicas minhas para eu ler antes de morrer" abre espaço para um novo livro, que eu espero, não demore para ser lançado pelo meu talentoso amigo, João Lucas.

Ficha técnica:
Livro: "101 crônicas minhas para eu ler antes de morrer"
Autor: João Lucas
Editor: Jerome Vonk
Revisão: Laura Gillon
Projeto gráfico e diagramação: Laura Gillon
Capa: Ivan Lucchini
Lançamento: maio de 2023

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