quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Filme: Eddie and The Cruisers (Eddie, o Ídolo Pop) - Por Luiz Domingues

Lançado em 1983, o filme, “Eddie and the Cruisers” (“Eddie, o Ídolo Pop”), foi baseado em um romance do escritor, P.F. Kluge. Este escritor, por sua vez, já havia emplacado um dos seus livros para a adaptação ao cinema, no caso, o aclamado, “Dog Day Afternoon” (“Um Dia de Cão”, protagonizado pelo grande, Al Pacino), além de ter construído uma carreira com muitas outras obras, com “Biggest Elvis”, entre elas.
Bem, tal romance policial é ambientado no mundo da música e envolve uma trama em torno de uma morte misteriosa que conteria segredos e suspeitos, a dar margem para uma boa novela desse gênero, que aliás, costuma ser deveras menosprezado dentro do mundo da literatura. A despeito de tal preconceito literário (e que eu definitivamente não nutro e pelo contrário, gosto desse estilo, particularmente), e creio que tal mote deu margem para um bom filme em linhas gerais, pela trama em si e boa música da trilha, ainda que ressalvas importantes precisam ser mencionadas, em termos musicais e no tocante à produção da obra.
O roteiro foi montado acintosamente a imitar o filme, “Citizen Kane”, mas desta feita, ao menos o diretor, Martin Davidson que o escreveu em conjunto com Arlene Davidson (cuja informação sobre parentesco entre ambos eu desconheço, apenas sei que não formavam um casal), assumiu isso publicamente, ao contrário de outros que assinaram tantas outras obras sob tal “inspiração”, digo assim para não usar outro termo mais realista. Portanto, o filme transcorre em meio a uma frenética mudança a retratar duas épocas, o início dos anos 1960 (entre 1962 e 1963) e 1983, época da atualidade da produção para firmar a ideia do “presente”.
 
A meta do roteiro, tal como Citizen Kane, foi aludir a uma morte ocorrida no passado e o quanto as pessoas envolvidas com aquela pessoa desaparecida estavam ainda impactadas pela perda e sobretudo, pelos mistérios que levam a crer que houve algo em torno de algo além da suposto falecimento acidental, principalmente pelo fato de que o corpo do desaparecido, jamais foi encontrado. 
Muito bem, constrói-se uma boa trama policial, pronta inclusive para relembrar a tradição do cinema “noir” clássico dos anos quarenta, mas o ambiente não é o dos escritórios enfumaçados por conta de fumantes inveterados que procuram detetives particulares, mas sim, a ascensão de uma banda de Rock, no início dos anos sessenta.
Então devo anotar a minha primeira ressalva e que trata-se de algo significativo. Sei que a intenção inicial foi filmar um romance policial e a música, em tese, fosse mero pano de fundo, como uma trilha comum só para ilustrar, mas ao ganhar a proporção de um “Rock Movie”, é óbvio que a questão musical ganhou uma protagonismo, portanto, ao mostrar a criação de uma carreira, houve a boa preocupação da produção em dar substância, e isso foi feito. 
Entretanto, ao meu ver, apesar de reconhecer que as músicas compostas para essa trilha sejam boas, houve um desleixo imperdoável da produção em não estabelecer uma diferenciação sonora acentuada entre as épocas retratadas. Ou seja, as cenas da banda Eddie and The Cruisers a tocar em 1962/1963, soam como se fossem de 1983. Causa estranheza ao tratar-se de uma película norte-americana, justamente por levar-se em conta que o cinema norte-americano nunca erra nesse quesito de produção, ao denotar que talvez tenha sido uma intenção deliberada da parte da produção e do diretor a usar da licença poética, neste caso, bastante anacrônica.
Nesses termos, o som dessa banda parece muito o trabalho do guitarrista/cantor e compositor, Bruce Springsteen e a sua fiel banda a “E Street Band”. No release da produção, há a informação concreta de que quando contrataram o compositor, John Cafferty para compor algumas canções da trilha, houve uma mudança de ideia posterior, a fazer com que ele assumisse toda a trilha e que a gravasse com a sua banda, John Cafferty & The Beaver Brown Band. 
A justificativa fora que queriam mesmo a sonoridade do Bruce Springsteen, e John Cafferty e sua banda soavam assim, normalmente, por ser de Providence, Rhode Island, a mesma raiz sonora de Springsteen e na ficção, Eddie and The Cruisers é de New Jersey, ou seja, vizinhos próximos a falar as mesmas gírias, manter sotaque parecido etc.
 
Até então, tudo bem que nas cenas de 1983 a música soasse dessa forma, mas decepciona bastante ver a banda a tocar em 1962/1963 com tal sonoridade, inclusive na resolução de áudio, a denotar uma falha, visto que trata-se de uma impossibilidade tecnológica, visto que os padrões de gravação em 1962, eram muito diferentes.
A outra ressalva que eu faço, diz respeito à direção de arte. Nota-se, igualmente em relação à música, que não houve um grande esforço para demarcar bem as duas épocas distintas. Ou seja, a ambientação; direção de arte e figurinos, embaralha tudo e tem-se a impressão que o filme passa-se o tempo todo em 1983.
Fora dessas questões de produção, o filme funciona como trama; os personagens tem a sua dramaticidade e o mote do mistério todo em torno da morte do vocalista, Eddie, age como um fantasma a atormentar os demais que permaneceram vivos e arcaram com a frustração do fracasso da banda, gerado por tal ruptura dramática.
Nesses termos, o filme começa com uma repórter investigativa da TV que propõe uma reportagem para relembrar a misteriosa morte do vocalista, Eddie; o fim da banda e também o mistério sobre o desaparecimento das fitas do álbum inacabado. Em meio à sua pesquisa, ela aborda alguns ex-componentes da banda. O baterista e o saxofonista haviam falecido ainda nos anos oitenta, mas ainda sobrara o baixista, que foi o único que seguiu na música e mantém um relativo sucesso a tocar em uma banda “tributo” de si mesmo, a tocar em clubes pequenos; a backing vocalista que fora namorada de Eddie à época e que agora era uma coreógrafa e o antigo tecladista da banda, que formou-se como professor de literatura e ganha a vida a lecionar. E também a figura polêmica do empresário da banda, que nos dias atuais é um DJ de uma emissora de rádio ao estilo “College Radio”.
Entre as entrevistas que faz, a repórter ouve as histórias contadas por tais diferentes pontos de vista e logicamente são ilustradas pela visão dos fatos à época. Eddie é um rapaz talentoso, mas bastante altivo, com uma certa soberba por conta de ser carismático, bom guitarrista; cantor e compor bem. Como se não bastasse tais atributos musicais, ele tem um forte carisma e boa aparência, ao ponto de ser considerado um galã pelas meninas e diante desse quadro, traz atenção natural para a banda; gera ciumeiras internas e tudo piora por ele ser tão genioso. Por outro lado, em contraponto, a figura do tecladista mostra-se diametralmente oposta. Rapaz tímido; discreto e muito respeitador, só foi convidado a entrar na banda por conta de que por um mero golpe fortuito, demonstrou possuir uma erudição literária que nenhum outro membro da banda possuía, nem mesmo o convencido, Eddie. Dessa forma, por tocar piano, igualmente, tornou-se útil, doravante como músico e letrista das canções do grupo. 
Daí, vem a ascensão do grupo, a tocar em casas noturnas; festivais e angariar muitos fãs. As meninas descabelam-se por Eddie, mas muitos marmanjos igualmente encantam-se pela beleza e sensualidade da backing vocalista e os demais músicos são bons, a banda soa robusta, com arranjos bem feitos e as letras mostram-se poéticas, portanto, o sucesso parece inevitável.
Em um show que ocorreria no auditório de uma universidade, os componentes da banda chegam cedo e em meio a um passeio pelo campus, o tecladista e a backing vocalista, sentem-se atraídos um pelo outro e ocorre um beijo. Eddie, que namorava a garota, vê de longe e não faz nada, mas no momento do show, ele apresenta todos os membros da banda e ignora o tecladista, de propósito. Alguém da plateia o adverte que ele esquecera do tecladista e então, Eddie faz um comentário muito deselegante para humilhar o companheiro, notadamente por vingança por conta do beijo que este dera em sua namorada.
Gravam o primeiro disco e quando vão gravar o segundo, a pressão da gravadora é bem grande e um diretor déspota, veta as novas canções por não considerá-las comercialmente viáveis. Sim, as gravadoras tolhiam a criatividade dos artistas fortemente nessa época, era um jogo sujo em torno da chantagem do “pegar ou largar”. Ocorre que Eddie não suporta e briga com o diretor da gravadora e praticamente arruína-se tudo ali. Temperamental, sai de carro com a namorada e vistam um esconderijo que ele alega frequentar desde criança, a parecer um ferro velho abandonado. Deixa a moça perto de sua casa e vai embora, transtornado no volante do seu carro. No dia seguinte, sai a manchete na imprensa, o seu carro foi encontrado todo arrebentado em um lago, mas o corpo de Eddie nunca foi encontrado. Transtorno, estupefação e fim da carreira da banda.
Em 1983, a reportagem vai sendo costurada com esses elementos todos, e algo ocorre como um fato novo. Os ex-membros relatam ter tido as suas respectivas residências invadidas e a apresentar tudo revirado, como se alguém estivesse a procurar algo. É quando o tecladista, agora o professor, reencontra a backing vocalista e em meio às reminiscências que trocam, ela lembra-se do tal ferro velho abandonado que visitara com Eddie, vinte anos antes. Bingo, sob atmosfera misteriosa, na calada da noite, encontram as fitas master do disco inacabado da banda, ali alojadas por Eddie, há vinte anos atrás. Eles voltam então para a residência da moça e quando parece que tudo foi resolvido, um telefonema misterioso causa transtorno a ambos. 
O homem ao telefone alega ser Eddie e exige as fitas que ele sabe que foram resgatadas. Um encontro é marcado e o tecladista esconde-se para tentar surpreender Eddie e a moça observa o velho carro do vocalista chegar. O suposto Eddie abre a porta do passageiro e exige que ela entre com as fitas em mãos e o tecladista ataca e desmascara o rapaz ao arrancar-lhe um disfarce e este revela a presença do antigo empresário da banda, que arquitetara todos esse plano macabro para assustar os ex-membros e assim apossar-se das fitas. Tudo resolvido, até de uma forma ingênua, pois eis que as fitas são entregues e ambos até gostam da ideia do disco ser produzido tantos anos depois. Foi apenas isso, então, fim do filme ao estilo "Scooby-Doo", certo?
Eis que a reportagem é concluída e enquanto ela é exibida pela emissora, vê-se muitas pessoas aglomeradas em frente a uma vitrine de loja de aparelhos de TV, para assistir tal programa. Vemos a repórter a falar, da ponte onde o carro de Eddie despencara em 1963 e a concluir que o seu corpo nunca foi encontrado, embora ele houvesse sido declarado oficialmente morto. Clichê dos clichês, eis que em meio à multidão que dispersa após o fim da reportagem, pelo reflexo da vitrine, um rapaz barbudo destaca-se e ao aproximar-se a sua face na tela, vemos que trata-se de... Eddie.
 
O curioso foi que um segundo filme a esclarecer tal fato estarrecedor, só veio a ocorrer em 1989, ou seja, seis anos depois. De onde conclui-se que alguma dificuldade gerencial não permitiu que a sequência do filme fosse lançada imediatamente, ou, muito pelo contrário, a intenção inicial, foi terminar misteriosamente.
Sobre o elenco, com exceção do saxofonista, que realmente era músico e não por coincidência tocava na banda que deu sustentáculo à trilha, John Cafferty & The Beaver Brown Band (Michael “Tunes” Antunes, que interpretou, Wendell Newton), todos os demais eram apenas atores e não músicos, nem mesmo por hobby. Tom Beringer (que interpretou o tecladista, Frank Ridgeway), alegou inclusive, que nem preocupou-se em aprender um pouco do gestual e de fato, as suas cenas a tocar, são quase todas filmadas com o teclado à sua frente, para facilitar a sua atuação como não músico. 
Matthew Laurence (a interpretar o baixista, Sal Amato), foi o único que preocupou-se em aprender os rudimentos do instrumento e a sua performance a fingir tocar no filme, chega a ser convincente, pelo menos ao segurar o instrumento com uma desenvoltura. David Wilson interpretou o baterista, Kenny Hopkins, Joe Pantoliano fez a figura do empresário inapto, “Doc” Robbins e Helen Schneider interpretou a bela backing vocalista, Joann Carlino. Ellen Barkin, ainda não muita conhecida nessa época, interpretou a repórter, Maggie Foley. 
E finalmente, o astro protagonista, Eddie Wilson, foi defendido por um ator principiante, mas que cumpriu bem a sua missão, o ator chamado, Michael Paré.
 
Na época, o filme fracassou na bilheteria dos cinemas e não obteve boas críticas. Basicamente as mesmas queixas que eu formulei logo no início, foram observadas pelos críticos, à época, embora em meu caso, por ser músico, o anacronismo observado tenha incomodado-me ainda mais do que a um crítico de cinema tradicional, eu imagino. 
Logo a seguir, o filme foi lançado em formato VHS, mas foi quando ingressou na grade de canais a cabo norte-americanos, que o filme teve um resultado muito significativo, ao atingir, anos depois, uma outra faixa etária de adeptos que eram crianças por ocasião do lançamento nas salas de cinema e o filme tornou-se cultuado. A trilha sonora, igualmente, foi reconhecida quando chegou a galgar degraus nas paradas de sucesso e motivou uma boa vendagem de discos. Talvez tenha sido essa a resposta, para o questionamento que eu lancei alguns parágrafos atrás, pois eis aí o êxito que precipitou a produção do segundo filme, “Eddie and The Cruisers II/Eddie Lives!”, em 1989.
Existe em formato DVD/Blue Ray, passou com muita assiduidade na TV aberta, durante boa parte dos anos noventa, com muitas exibições nos canais da TV a cabo, igualmente. Infelizmente, no entanto, por conta de direitos autorais, não existe uma cópia integral no You Tube, mas apenas fragmentos do filme, geralmente a conter edições caseiras dos trechos musicais da obra, com a banda a tocar em simulações de shows ou ensaios. 
 
No portal, UK.RU, é possível assistir na íntegra, mas não posso dizer até quando. Não posso deixar de observar que essa mesquinharia em torno desse mercantilismo descabido que normatiza os ditos “direitos autorais”, é algo abominável. Senão vejamos: eu não sou contra a garantia dos direitos autorais preservados. Todos os envolvidos na produção, devem ganhar, sem dúvida alguma, pois a despesa foi grande e os profissionais envolvidos trabalharam honestamente para que a obra existisse, do escritor do livro original que motivou o filme, aos que dedicaram-se ao filme, propriamente dito. No entanto, esse filme, por exemplo, foi para as salas de cinema em 1983. Independente de ter podido ou não, gerar uma boa bilheteria (e não angariou, como já salientei anteriormente), o fato é que algum dinheiro entrou. Depois uma segunda receita foi gerada com o lançamento na TV. Depois disso, ganhou mais dinheiro através do lançamento em plataforma VHS. Mudou a tecnologia e veio a versão em Disc Laser; depois criou-se o DVD e a seguir, o Blue-Ray. Entrou na grade dos canais da TV a cabo e com inúmeras reprises na TV aberta, cada exibição, paga, naturalmente. 
Em suma, escrevo esta resenha em 2019, e desde 1983, o filme gerou inúmeras fontes de renda diferentes e muitas vezes em torno de um tipo de exploração predatória, visto que o consumidor não tem culpa se a tecnologia torna tudo obsoleto, rapidamente. Esta crítica, aliás, vale para todos os filmes que eu resenhei até aqui e na verdade, para qualquer um que tenha a sua exibição vetada em um portal popular como o YouTube, a denotar uma ganância descabida. Chega-se em um ponto, e não precisa ser um século, literalmente, como reza a Lei atual, em que a obra não pode mais ser cerceada ao grande público, isso é o mais justo, eu quero crer. 
 
Baseado na novela "Eddie and The Cruisers", escrita por P.F. Klunge e que segundo consta, teria inspiração na biografia do poeta francês do século XIX, Rimbaud. Escrita por por Martin e Arlene Davidson. Dirigido por Martin Davidson e Jean-Claude Lord e lançado em 1983.
Esta resenha faz parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume II e está disponível para a leitura a partir da página 195

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Filme: What's Love Got to Do With It (Tina) - Por Luiz Domingues


Este filme tem uma força dramática enorme, isso é público e notório. Tem também o poder em revelar o talento extraordinário de uma das maiores cantoras da Black Music de todos os tempos e que por força das circunstâncias pelas quais a sua carreira foi construída, pode ser considerada uma grande cantora na história do Rock, igualmente. Mais que isso, por conta de sua história de vida, tal obra desvela de uma forma chocante o que ela passou e não foi pouca coisa, o que sucinta o sentimento de comiseração imediata da parte do espectador que assiste tal abordagem cinematográfica. Outro aspecto, e isso é triste igualmente, demoniza a imagem de seu ex-marido, que foi um artista relevante, embora com fama bem menor do que a dela. Com as passagens tristes de cunho pessoal a parte, cabe acrescentar que a música apresentada, é de primeira qualidade ao mostrar a trajetória dessa grande cantora, portanto, é a parte mais alegre a amenizar as partes pesadas da dramaturgia. 
 
Sobre quem falo? Tina Turner, a grande Diva dotada de uma voz impressionante e presença de palco fortíssima, em suma, uma artista inquestionável. Certamente que no imaginário do grande público, a carreira de Tina Turner é conhecida e reverenciada a partir dos anos oitenta, quando ela ganhou uma proeminência enorme como uma artista solo. Entretanto, a sua carreira pregressa é sensacional, quando fazia dupla com o seu ex-marido, Ike Turner, que era guitarrista/cantor e compositor. 
Na primeira foto, Tina Turner e Ike Turner da vida real  e abaixo, os atores Angela Bassett e Laurence Fishbone a interpretar a dupla musical e casal
 
Para quem acompanhou bem a trajetória desse casal e dupla artística, sabe que a sua carreira foi longeva e brilhante sob o ponto de vista musical, embora no caso de Ike, com uma projeção bem menor do que ela alcançou posteriormente em carreira solo, quando teve apoio maciço da grande mídia, para torná-la então, uma super estrela em proporção mundial.
 
O que depõe contra essa sua fase anterior como membro desse duo? Bem, além da fama bem menos avantajada sob o ponto de vista comercial, sem dúvida alguma que foi o bastidor desse trabalho, regido pelo extremo sofrimento de ordem pessoal da parte de Tina Turner, por ser constantemente maltratada pelo seu ex-marido, Ike Turner. Na época (e compute o leitor que eu esteja a falar sobre quase vinte anos de casamento e parceria musical entre Ike & Tina), tornara-se pública a informação que o casal detinha problemas pessoais e vazava ao público que estes eram sérios, ao ter em conta o temperamento irascível de Ike em torno de um comportamento agressivo e regido pela mentalidade machista, fortemente arraigada. 
Portanto, não seria preciso ser um psicólogo para deduzir que ao trabalhar junto e principalmente por conta do talento extraordinário de Tina, um sentimento de impotência seria exacerbado a qualquer momento da parte de Ike, ao sentir-se preterido pelos críticos e fãs. Somado ao seu machismo, ciúmes doentio, arrogância e temperamento violento, realmente reuniu-se nesse caso, muitos elementos para fazer de Ike, um vilão, com potencial para a ficção, no entanto, neste caso, ao tratar-se de um caso da vida real, portanto, a tornar a sua figura, ainda mais demonizada perante a opinião pública.
É o que acontece no filme em questão, pois ele foi baseado no livro : “I, Tina”, escrito pela própria, Tina Turner, com a cooperação de Kurt Loder. Pois muito bem, esse filme narra todo o sofrimento pelo qual Tina foi tratada por seu ex-marido, a oprimi-la como esposa e companheira de trabalho. No entanto, quando ele foi lançado, houve muita controvérsia em torno dos detalhes ali revelados por Tina, principalmente da parte de Ike, que não negou peremptoriamente tais revelações, mas alertou para a existência de algumas inverdades e sobretudo, por haver em sua opinião, muito exagero na visão de Tina. Phil Spector, o famoso produtor musical e que trabalhou com Tina, também manifestou-se com surpresa ao alegar que o livro não era cem por cento fidedigno, por conter distorções e assim a demonizar Ike Turner. 
Portanto, quando decidiu-se pela adaptação do livro para o cinema, no início dos anos noventa, Tina e Loder, autores dessa obra, outorgaram à roteirista, Kate Lanier, a carta branca para que ela pudesse enxergar no depoimento publicado em tal livro, uma verdade inquestionável e certamente já a contar com as inevitáveis modificações estratégicas para dar vazão às licenças poéticas, ou seja, para distorcer ainda mais os fatos, amparada na boa desculpa da inteligibilidade cinematográfica a ser observada. 
 
Bem, com essas colocações estou a dizer que Tina não foi vilipendiada e que Ike não abusou dela de uma forma vil, portanto? Absolutamente não! O que afirmo é que, sim, a história é verídica e Tina foi mesmo muito machucada, de forma física e psicológica por Ike. Entretanto, neste filme e por conseguinte no livro, em que o seu roteiro baseou-se, há exagero e dessa forma, a destruição da imagem de Ike foi total.
Bem, desequilíbrio narrativo constatado, há por levar-se em consideração os méritos do filme, e são vários. Primeiramente, na atuação do seu elenco que é muito boa. Tanto foi assim, que os protagonistas, Angela Bassett (a interpretar, Tina Turner), e Laurence Fishburne (a interpretar, Ike Turner), sobressaíram-se de tal forma que ambos, foram indicados para os prêmios como melhor atriz e ator, respectivamente, no Oscar. Não venceram, mas Angela arrebatou um outro prêmio, o Globo de Ouro, muito importante no mundo do cinema. De fato, a atuação de ambos, impressiona. Não fica apenas no casal protagonista, pois os demais atores e atrizes escalados para o apoio em meio às personagens secundárias, corresponderam muito bem, a tornar a parte dramatúrgica, bem sólida. No campo mais técnico, a direção de arte é muito boa ao retratar com fidedignidade as diversas passagens sutis do tempo ao longo da narrativa.
Em termos de roteiro, eu já comentei anteriormente e reforço agora, há muita licença poética, o que é uma praxe em qualquer cinebiografia de algum astro da música. Neste caso, como a trama foi montada a dar ênfase ao lado pessoal de Tina Turner, cometeu-se muitos lapsos na descrição dos fatos cronológicos arrolados em sua carreira. Isso sem contar que a parte musical, propriamente dita, tenha sido exibida com parcimônia. Dessa forma, não houve um maior esmero em citar os seus álbuns e melhores feitos na carreira, com apenas algumas inserções de cenas mediante a exibição de shows ao vivo e aparições em programas de TV; assim como o ambiente em estúdio a gravar ou ensaiar e também sobre bastidores a envolver camarins e cenas do cotidiano das turnês em meio a quartos de hotel, saguão de aeroporto, viagens rodoviárias & afins. Quando isso é retratado, pelo menos nas cenas com shows ao vivo, foi realizada de uma forma bastante agradável e fidedigna, a mostrar os músicos, todos, com o figurino bem característico de época, além de fazer uso de instrumentos e equipamentos adequados, sem nenhuma falha anacrônica a denunciar a não observação desses detalhes.
Inclusive, muito interessante a atuação de Bassett e das atrizes que interpretaram o grupo de backing vocalistas, as chamadas “Ikettes”, no quesito da coreografia, no que tange à performance ao vivo sob o palco, em cenas a retratar shows. 
 
Consta na ficha do filme, que Tina Turner em pessoa, foi consultora das atrizes nesse quesito e de fato, a atuação é muito boa a lembrar muito a performance real de Tina & Ikettes ao vivo, com um tipo de presença cênica esfuziante para tirar o fôlego de qualquer plateia, visto que o frenesi com a qual apresentavam as suas coreografias, em conjunto com a performance vocal exemplar, fazia com que os shows de Ike & Tina Turner fossem tão celebrados e motivasse até convites irrecusáveis, como por exemplo a oferta vinda dos Rolling Stones para que abrisse os shows de suas turnês de 1966 e 1969, fato que é mencionado de uma forma apenas sutil no filme.
 
Outro fato importante e a configurar uma tomada de posição da própria Tina, eu quero crer, é falado com todas as letras, mediante a encenação de uma entrevista que ela concedera, quando já livre do casamento e parceria musical com Ike, que não desejava mais cantar “blues” e que agora, estava aberta para o Rock’n’ Roll. Ora, uma frase de efeito que talvez passe despercebida por uma pessoa leiga no assunto, mas se Tina realmente afirmou isso na época, deve ter sido de uma forma figurada, a querer expressar outro fator bem diferente, pois é inacreditável tal afirmação, se entendida ao pé da letra. Visto que a base do repertório de sua carreira construída com Ike & Tina Turner, sempre foi o R’n’B mesclado à Soul Music e ao Rock’n’ Roll, e todos esses estilos são frutos da mesma árvore, o Blues, portanto, eu quero crer que a ideia foi valorizar a liberdade recém adquirida para gerir a sua própria carreira desse ponto em diante e não exatamente a promover uma radical mudança na estética de seu trabalho. O que mudou na prática, na vida real, foi a roupagem no áudio de seu som, a acompanhar os maneirismos oitentistas em voga e nesse aspecto, aos mais puristas, onde incluo-me, o seu áudio pasteurizou-se em demasia, para atingir o parâmetro do Pop radiofônico típico dessa década. No entanto, a base estilística permaneceu calcada nas escolas em que ela sempre atuou em sua carreira e todas, com a devida base firme dentro do Blues.
Sobre o filme, a sua estrutura em termos de roteiro segue a cronologia de uma cinebiografia tradicional. Começa com a pequena Anna Mae Bullock (interpretada por Rae’ Ven Larrymore Kelly, quando criança e a revelar o verdadeiro nome de Tina Turner), a cantar no coro de uma igreja protestante. Fenômeno bem típico nos Estados Unidos, muitos talentos da música, iniciaram as suas respectivas carreiras a cantar ou tocar em cultos dessa natureza. Ela é duramente repreendida pela maestrina, que irrita-se ao ver a menina a solar e nessa circunstância, ela proíbe a menina de sair da linha gospel e jamais cantar “blues”, ali dentro da igreja. Criada pela avó, quando esta vem a falecer, ela vai morar com a sua mãe e irmã e aí, a passagem temporal mostra Tina crescida, a sugerir a adolescência, mas já interpretada por Angela Bassett. Em um show de Ike Turner, este costumava oferecer o microfone para várias moças da plateia cantar pequenos trechos de alguma música, para promover a interação. Nessa oportunidade que surge, Anna Mae canta de uma forma impressionante a sobressair-se e logicamente chamar a atenção de Ike.
Rapidamente ele procura Anna Mae e a convida para que ela ingresse em sua banda. A mãe dela não gosta nem um pouco da ideia. Trata-se de Zelma Bullock (interpretada por Jenifer Lewis), que na cena, é elogiada pela sua jovialidade impressionante. De fato, a mãe de Tina era bem jovem, mas no filme houve um certo exagero na escolha da atriz, visto que a atriz, Jenifer Lewis, era pouca coisa mais velha que a atriz, Angela Bassett.
Bem, Anna Mae entra para a banda e o circuito em que atua é ainda modesto a revelar-se ambientado em pequenas casas noturnas interioranas, em princípio. E logo ela desperta o sentimento de ciúmes entre as backing vocalistas da banda, notadamente, da parte de Lorraine Taylor (interpretada por Penny Johnson Jerald), que é amante de Ike. A banda ascende e as animosidades internas crescem entre Anna Mae/Tina, principalmente pelo fato de que Ike, acintosamente demonstra estar interessado em sua nova vocalista, sob um outro parâmetro, desta feita como mulher.
Bem, daí o salto já mostra que eles assumem um relacionamento e moram juntos. Rapidamente nasce o primeiro filho do casal e eles decidem casar-se. Inicia-se aí o martírio de Tina Turner, doravante assim conhecida com tal nome artístico adotado. Ela sabia que Ike era temperamental e prepotente como líder da banda, mas talvez não tenha dimensionado que na condição de marido, ele portar-se-ia muito pior, ao demonstrar ser dominador, ciumento e muito violento. 
Na mesma medida em que o filme mostra a boa ascensão da banda, revela também as surras homéricas que Ike deu em Tina; isso sem contar o vilipêndio psicológico registrado através de inúmeras demonstrações de domínio e desdém, inclusive em público. 
 
O filme avança em meio aos melhores anos da banda, ali entre 1964, até pelo menos 1975, mas que simultaneamente marcou-se como uma época difícil para a vida pessoal de Tina, ao ser humilhada, subjugada e violentamente agredida, o tempo todo. Nesta altura, Ike é um vilão e tanto para o filme, daqueles para ser odiado sem reservas, e como já afirmei, na vida real, o seu comportamento foi de fato repreendido, pois ele foi condenado e preso pelo seu comportamento criminoso.
Bem, Tina tentou livrar-se dele diversas vezes nos anos setenta, inclusive a usar um método radical, como a fuga sumária, mas fora interceptada e por conta dessas tentativas que enfureceram ainda mais o seu marido, foi mais agredida ainda, inclusive com a ocorrência de estupro. Para piorar a sua situação, o famoso produtor musical, Phil Spector propôs produzir um álbum, mas somente com Tina e isso deixou Ike, transtornado. Com se não bastasse tudo isso, Ike está mergulhado no consumo de drogas e bebida e assim, o seu estado pessoal tornara-se insuportável.
 
Bem, eis que um fator inesperado surge para trazer um alento à vida de Tina, quando uma amiga a apresenta à filosofia budista. Com a prática de rituais baseados na pacificação total em meio a meditações e cântico de mantras apaziguadores, eis que ela acha um porto seguro enfim, para começar a buscar a sua paz de espírito. É realçado no filme a incidência do Sutra de Lótus: “Nam Myoho Renge Kyo”, como um elemento vital para a grande virada na trajetória da artista e certamente que tal prerrogativa foi uma observação enfática ditada por ela mesma, Tina, ao ter escrito essa determinação em seu livro e devidamente realçada no filme.
Ela cria coragem enfim, e ao ser violentamente agredida dentro de um automóvel por Ike, reage à altura, para machucá-lo, igualmente. Não demora muito e ela enfrenta-o nos tribunais em 1977, para exigir o divórcio e isso ocorre, com uma única exigência de Tina e que Ike tentou barrar a todo custo: a manutenção do sobrenome “Turner”, em seu nome, pois ela sabia que a marca : “Tina Turner” estava solidificada como nome artístico e perder tal denominação teria sido um duro golpe para ela, nesse instante.
 
Daí em diante, Tina iniciou a sua escalada para o sucesso na carreira solo, o que não ocorreu imediatamente, mas quando veio, fortaleceu-a de uma forma absurda, ao ponto em torna-la um fenômeno Pop na década de oitenta, a esticar até os primeiros anos de década posterior, anos noventa. Fundamental para essa escalada que ela experimentou, foi a presença do produtor, Roger Davies (interpretado por James Reyne), que acreditou nela e a ajudou a conquistar a sua vitória. Ela é questionada nesse momento, por estar com quase quarenta e cinco de anos no momento de sua ascensão solo, no entanto, comprovou que sim, tinha e teve todas as condições para atingir o seu sucesso pessoal como artista e pessoa. Tina aparece doravante com o seu visual que a tornou mega famosa, a usar a típica peruca armada que a marcou sobremaneira.
Bem, Ike é mostrado a observar de longe a virada de Tina e a denotar uma contrariedade ante a soma de sentimentos negativos. Ele tenta uma reaproximação com ela, mas Tina não esboça nenhuma intenção em oferecer uma brecha que seja, para que ele tente algo. O filme encerra-se de um maneira bonita, ao estabelecer uma fusão da simulação de um show, com um show real e aí, a verdadeira, Tina Turner aparece para denotar uma homenagem viva à essa grande cantora.
 
Um dado pessoal para ilustrar: em 1998, eu, Luiz Domingues, tive a oportunidade de assistir um show de Ike Turner, na minha cidade, São Paulo. Pois muito interessante, tantos anos depois do auge de Ike & Tina Turner; da separação e ascensão de Tina em sua carreira solo e ostracismo de Ike na contrapartida, eis que eu vejo no palco, um Ike envelhecido, todavia com mesma postura pessoal como músico e cantor e amparado por uma banda a demonstrar a mesma configuração clássica com a qual atuara em sua vida inteira. Estavam ali três meninas a cumprir a função das suas Ikettes e uma ótima cantora loura a suprir a vaga de cantora solo da sua banda. Por alguns minutos, eu tive o prazer de ver aquela mesma formação e sonoridade versada pelo melhor da Black Music, mediante um desfile de canções clássicas de seu repertório. E mais um fenômeno ocorreu, decorrente da fama de Ike, desta feita em meio ao público que rodeava-me: vozes esparsas em tom de pilhéria, mexiam com Ike, em português, a estabelecer acusações sobre o seu comportamento. Alguns diziam que a tal cantora loura devia estar a apanhar nesse momento, por uma questão de lógica etc. e tal. Pois é, Ike levou a sua fama pessoal como um homem violento e explosivo, até a sua morte, em 2007. 
Muito bem, o filme mostra a resiliência e merecida virada de Tina Turner em sua vida pessoal e artística, isso é muito bonito e certamente que essa artista precisa ser reverenciada, sempre. Os excessos executados a denegrir a imagem de Ike, e as muitas licenças poéticas cometidas a estabelecer informações errôneas sobre a carreira de Ike & Tina Turner, não desabonam o filme. No entanto, fica a advertência ao leitor/espectador do filme, que não obstante o fato de Ike ter agido criminosamente, fica a ressalva de que é possível ter ocorrido um exagero nessa avaliação.
 
Outros atores não citados anteriormente: Cora Lee Day (como a avó de Anna Mae/Tina Turner), Phyllis Yvonne Stickney (como Alline Bulock, a irmã de Tina), Chi McBride (como Fross), Shermann Augustus (como Reggie), Terrence Riggins (como Spider), Rob LaBelle (como Phil Spector), Richard T. Jones (como Ike Turner Junior, filho de Ike, mas não de Tina), Shavar Ross (como Michael Turner), Damon Hines (como Ronnie Turner, filho de Tina), Suli McCullough (como Raymond Craig Turner, filho de Tina), Elijah B. Saleem (como Ike Turner Junior, quando criança) e outros.
Roteiro de Kate Lanier, baseado no livro: “I, Tina” escrito pela própria, Tina Turner e Kurt Loder. Direção de Brian Gibson. Foi lançado em junho de 1993.

A crítica gostou, em linhas gerais, ao exaltar a qualidade da produção, e realçar as boas interpretações, sobretudo do casal protagonista. E certamente que a simpatia por Tina, tanto pela sua categoria como artista, quanto por sua história pessoal atribulada, tratou por reforçar a boa impressão que o filme causou aos críticos. Nas bilheterias, o filme foi bem, igualmente. Foi bastante exibido pelos canais de TV a cabo, passou pela TV aberta e em 1999, foi lançado em formato DVD e posteriormente, no Blu-Ray. Na Internet, está disponível para ser assistido na íntegra e de forma gratuita, no YouTube.

Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume III, com a sua leitura disponibilizada a partir da página 303.