segunda-feira, 4 de julho de 2016

Livro : Relatos da Existência Caótica / Ciro Pessoa - Por Luiz Domingues



 


Pense em um artista inquieto. Pense em alguém que vive intensamente a arte e literalmente a confunde com a sua própria vida. Imagine alguém que milita na música e na literatura simultaneamente, ao misturar as suas influências dentro desses dois ramos artísticos, um sobre a outro. Pois é, a conclusão óbvia que se chega, não pode ser outra a não ser mencionarmos a figura prolífica de Ciro Pessoa.


Rocker desde o berço, também encantou-se pelo poder da palavra, ao cultuar poetas; romancistas e cronistas da mais nobre estirpe. Pela coincidência do sobrenome ilustre, Ciro e Fernando rendem-se à magia das palavras, na busca pelas sintaxes/semânticas profundas, tão enigmáticas quanto Aleister Crowley propôs em suas chaves esotéricas. Psicodélico ao extremo, Pessoa, o Ciro, é apaixonado pelo surrealismo de Salvador Dali e Andre Breton. A busca incessante da imagem que diz muito pelas sensações que despertam, faz de sua escrita, um caleidoscópio emotivo, prestes a eclodir.

Fã da literatura da Beat Generation, muitas vezes a rodar pela Rota 66, sem destino. Apenas a viver o momento auspicioso do vento que bate no rosto e isso basta, sem pontuação, ao passar assim a absorver tudo. E não é pouca coisa. Registre-se. 

Conhecido por ter composto vários sucessos musicais de sua ex-banda, "Titãs", Ciro emendou trabalhos significativos, além dessa sua participação com tal banda, para deixar o seu nome grafado na história do Rock tupiniquim. Antropofágico, dentro da escotilha da sua "Cabine C", ele atravessou os mares robóticos e engessados dos anos oitenta, mas sempre a imprimir a sua fina escrita através de uma Caixa de Fósforos de Oxford. 
 



Vê-se então inspirado por Marcel Duchamp, "Nu Descendo a Escada", para caminhar solo, livre e solto. O mergulho na piscina psicodélica é inevitável para um camaleão tão perecido com o Rei Lagarto "Morrisoniano". Apertem os cintos, Major Tom acionou o botão da função "lift off", hora então propícia para trazer de volta a bolha multicolor dos "swing sixties", amém! Sim, o futuro é Pink Floyd... senhores... senhores...se nho res...

Muitos artigos em jornais e revistas depois e o lado escritor, assim, formalizado, teve que estar impresso, enfim.


Dessa maneira, chega às livrarias o seu tão aguardado livro debut: “Relatos da Existência Caótica”.


Basicamente definido como uma obra poética, na prática, extrapola o rótulo assim tão simplista. Isso por que a poesia ali proposta é rompedora de paradigmas por si só. Ela avança sobre os conceitos pré-concebidos e abre portas, sim, falamos de portas da percepção e que nos levam para dimensões não conhecidas, literal e literariamente. Talvez por evocar também a espiritualidade sob o viés budista, o zen-conhecimento de tal sabedoria lhe permita voar além do que a arte simplesmente lhe proporcionaria. Aí já encontra-se na verdade, um dos seus múltiplos “pulos do gato”. Ciro leva em consideração o extra-corpóreo, o além da matéria, o metafísico. 

O genial Claudio Willer enxergou tudo isso em seu brilhante prefácio. O livro já começa esfuziante depois de ler duas páginas e meia com tais considerações.
O desfile de personagens que passam nessa viagem psicodélica, impressiona. O Sr. Eno nos recepciona como se fosse um guia turístico de uma excursão de ônibus, que sinaliza ser às mentes cartesianas, a esperar-se uma ordem semiótica, mas se você pensava isso, foi ledo engano leitor, pois ao adentrar os portões dessa excursão, perca as esperanças de voltar a ser “normal”, por que o rompimento com o real é total, e tal qual Dante quando chegou à entrada dos portões infernais, não dá para sair dali igual ao tempo em que considerou-se a existência não ser caótica. Perca a sua esperança, se pensa que sairá ileso de uma obra como essa.


Quando se dá conta, o leitor já está sob a ação de uma descida sem volta de um tobogã provocado pelas páginas semi vazias do primeiro capítulo, com constatações pontuais ao pé da página.


“Astuto Eno entrevia emergir outro estado”...


“Através das noites a humanidade se repete : monótono movimento pendular”...


“A família é uma consequência natural da insanidade da paixão”...  


“Hunos no metrô”...


“Minha única certeza é que tenho “dúvidas”...

Com essa frase lapidar acima, encerra-se o primeiro capítulo e assim, constata-se que a viagem estava longe de chegar ao seu final e pelo contrário, nessa altura, o leitor só percebe que a magnitude da obra é muito maior do que supunha. Resta-lhe imbuir-se de coragem e desbravar o que vem a seguir nessa viagem extra-dimensional.


Ao entrar em “Ecos de um Encantamento Distante”, Ciro demarca o novo território. Mário de Sá Carneiro é quem abençoa essa nova jornada, onde as novas ideias apresentadas correspondem a uma catarse mental e literal, com Ciro “evacuando ideias na selva do improvável”.

Ali o texto é denso, ao percorrer longos períodos de experiências oníricas que perfazem uma sensação de sem fim. É instigante, provoca taquicardia e consequente vontade de não cessar a leitura sob hipótese alguma, mesmo que a hecatombe seja inevitável nas ruas da cidade, mesmo que o telefone não pare de tocar a importunar-lhe.


São “ecos da tagarelice mental”, ao andar pelas ruas esfumaçadas de Nova York ou de Bangoc, não sei ao certo. Pessoas apressadas a passar e a transpassar-lhe o tempo todo. Alguns esbarrões acontecem, mas não são provocativos, apenas inevitáveis em meio à multidão que simplesmente não para de falar. Tagarelas contumazes, por quê não se calam? Por quê não aquietam as suas mentes conturbadas? E por quê a fumaça do cigarro não dissipa-se? É assustador, mas inevitável sempre que precisamos socializar, andar em meio à essa gente que fala, fala, fala...

Talvez Frederico, o personagem que aparece para dar sentido à esse frenesi mental, detivesse a resposta e por não parar de repetir uma frase-mantra, sinaliza assim: -“Intergalak”.


Chegamos à “Planície dos Sonhos” !



“Bem que eles me avisaram, cuidado, cuidado”...

A calmaria que nos dá pausa na conturbação da patuleia que fala pelos cotovelos. Hora para ligar a caixa Leslie do órgão Hammond e embarcar no Space Rock. Viajar, literalmente na “usina dos desejos”, encantar-se com um livro de histórias sobre elementais e sobretudo, mergulhar em uma piscina formada por luzes coloridas e explosivas, a observar a fleuma britânica da parte de senhoras a tomar o chá das cinco, alheias à explosão psicodélica que nos norteia agora.


Em “Manual das Mãos”, capítulo posterior, o Sr. Heleno é o nosso novo "hostess". A sua proposta é ambígua. Fica difícil discernir a sua hospitalidade no decorrer das páginas que advém. Seremos seus prisioneiros, outrossim? Qual a verdadeira intenção dele, ali? Ciro revisita a sua própria história, entretido pela situação:

“Primeiro o cartório onde há trinta e três anos meu pai entrou com a boa nova: meu nome seria escrito ali... depois as cinco palavras decoradas: solicitar uma certidão de nascimento... depois os papéis da papelaria despencando estante abaixo... e finalmente  o doze de junho de ciro cinquenta e sete... corro-morro”.

E busca respostas na espiritualidade : “Os Bodisatvas não matam formigas”.

Chegamos à outra etapa da viagem. Avista-se a "Patagônia Mentalis". O Dadaismo dá as cartas..."abra a boca, é sucrilhos"...


Receitas culinárias que provam a intenção de se fazer um manjar literário e Ciro mostra-se "master chef", nessa empreitada, com méritos. Não cometerei a indelicadeza de reproduzir trechos dessa receita, sob pena de ser criminalizado por roubar um segredo industrial...ou artesanal...


Deixo o convite enfático ao leitor desta resenha que o faça in loco, buscando tal contato direto com o livro. 
O “Dossiê Rosenberg” é uma das partes mais instigantes do livro. Entre sucrilhos e sorvetes Bambolinos, eis que aparece, Dziga Vertov, um personagem controverso, dublê de jornalista e disposto a entrevistar o próprio autor do livro, quando lança a pergunta emblemática : Por quê Patagônia Mentalis? Mais que uma simples pergunta, ele extrai de Ciro respostas fortes, em meio a uma das entrevistas mais inusitadas que eu já li, protagonizadas entre um personagem entrevistador e o próprio autor do livro. Criador e criatura sentados em um set de talk-show televisivo, à meia-noite...

Significativo, Ciro faz uso da autoironia ao conceber tal entrevista, indagado sobre o caráter de sua poesia ser ou não popular.
Depende...sim, depende do ponto de vista e que tende a ser exclusivo do leitor. Arte democrática exposta ao grande público, "Relatos da Existência Caótica" pode ser popular, por que não ?

Se poderia ser exaltado no programa do Chacrinha ou respeitado nas bancadas examinadoras de acadêmicos, cabe ao leitor dar seu parecer. Quem vai querer o sucrilho do Ciro Pessoa, aí? Vai para o trono ou não vai?


Para fechar a obra, "Emblemas", o seu último capítulo, arrola múltiplas imagens em formato de aforismos propostos pelo autor. Dá a ideia de um mosaico, poderia ser também um jogral.


Em meio a tantos temas (método, herança, família, espelho etc), Ciro desfila um sem número de impressões e não são nada díspares entre si, embora assim possam parecer, a um olhar menos atento. O último, chamado “Óbito”, é desconcertante ao buscar o sentido inverso, ao dissertar sobre o nascimento. É disso que trata mesmo a poesia múltipla de Ciro Pessoa, um nascimento novo a cada imagem proposta e descoberta pelo leitor. 

Sobre a produção gráfica da obra, Ciro optou pela sobriedade de uma capa com cor única, letras garrafais e nada mais. Dispensou ilustrações externas ou internas. É nu e cru, almoço nu, nu descendo a escada...
Lançado pela editora Chiado de Lisboa / Portugal, aliás, uma interessante alternativa para autores brasileiros, dada a sua vocação para lançar autores muito interessantes da lusofonia.


Muitos poemas desse livro já foram musicados por Ciro Pessoa & Nu Descendo a Escada, onde tenho o prazer de ser componente também dessa viagem psicodélica. Vá aos shows para conferir.

Recomendo com ênfase a leitura de “Relatos da Existência Caótica”, uma das mais interessantes obras poéticas que eu já li.

6 comentários:

  1. Sensacional, nada melhor do que um psicodélico falando da obra de outro psicodélico!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que sensacional o seu comentário !!

      Absorvo-o como um tremendo elogio de tríplice alcance, atingindo a minha pessoa; ao Ciro, e logicamente ao livro aqui resenhado.

      Muito grato por ler,comentar e elogiar !!

      Excluir
  2. Maravilha!!!! Leitura deliciosa, adoro. Parabéns ao Ciro e é óbvio, com certeza o livro que deve ser muito bom, do jeito que eu gosto. E a você Luiz Domingues.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mas que maravilha ter esse comentário positivo de sua parte, Consuelo !

      De fato, atesto que o livro é muito bom, valendo a pena a sua leitura.

      Muito grato por sua atenção e apoio !!

      Excluir
  3. Esse livro deve ser ótimo! Poemas são tudo de bom!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Lourdes !

      Sim, recomendo o livro do Ciro, que reputo ser uma obra fortíssima no campo da poesia surrealista.

      Muito grato por sua atenção e comentário !!

      Excluir