sábado, 1 de outubro de 2016

Filme: High Fidelity (Alta Fidelidade) - Por Luiz Domingues



Nicky Hornby é um escritor inglês, oriundo da safra de novos autores britânicos da década de noventa, com uma predileção pessoal e toda especial para a cultura Pop de uma forma geral e inclui-se nessa sua predisposição a sua paixão pelo futebol. Desde então, os seus livros, que transitam entre os romances, contos e resenhas (neste caso sobre obras de outros autores, logicamente), versam sobre música; literatura e o mundo do futebol, quase sempre. 

Torcedor fanático do Arsenal, clube londrino tradicional no futebol inglês, ele lançou o seu primeiro livro em 1992, chamado “Fever Pitch” (no Brasil, saiu como “Febre de Bola” e foi até incensado entre certos jornalistas esportivos que apreciam cultura Pop e futebol, como o autor, lembro-me bem disso a repercutir em certos setores da mídia esportiva e / ou cultural, na época). Tal obra revelou então um sucesso, ainda mais como uma primeira empreitada desse jovem autor, e daí inaugurou uma tendência em sua carreira literária, com muitos livros seus a tornar-se filmes logo a seguir, para retroalimentar o seu êxito. “Fever Pitch” inspirou dois filmes, inclusive.

E foi o que aconteceu também no seu segundo livro, chamado : “High Fidelity”, lançado em 1995, cuja ida para as telas de cinema foi realizada igualmente. E nesse caso, não foi o futebol o objeto do mote para o romance, mas a música, ainda que tratada como argumento para usar-se metáforas a dar vazão à trama romântica vivida pelos personagens por ele criados. 

Lançada em 2000, a película mostrou-se fiel ao texto do livro, apenas a mudar a sua ambientação. Ao invés de ser uma ação ocorrida na cidade de Londres, como no livro, o filme usa a cidade de Chicago, nos Estados Unidos, como o seu cenário. E do que trata-se o afinal, filme? Pode ser considerado um “Rock Movie” na acepção da palavra ? A resposta, é: quase...

Bem, cabe então traçar um breve resumo sobre a história: Rob Gordon (interpretado por John Cusack), é dono de uma loja de discos chamada : “Champhionship Vinyl” (“Campeonato do Vinil”, sob uma tradução livre), ou seja, mesmo subliminarmente, o autor do livro que originou o filme, sempre buscou provocar um artifício para inserir o mundo do futebol em suas histórias, mesmo quando não tratou sobre tal assunto, formalmente. 

Rob é o típico dono de loja de discos de vinil, ou seja, uma enciclopédia humana sobre a música Pop em geral. Os seus dois empregados, igualmente detél tal bagagem gigantesca sobre o assunto, ainda que cada um tenha uma personalidade muito diferente um do outro e as divergências sobre gostos musicais rendam rusgas entre os dois e também com o patrão e naturalmente, a gerar boas piadas ao longo do filme.

Dick (interpretado por Todd Louiso), é um “geek” e aprecia expoentes inexpressivos da música indie, com clara influência dos netos e bisnetos do Pós-Punk oitentista. E o outro funcionário é Barry (interpretado por Jack Black). 

Barry é mais explosivo, e altivo. Prefere o Rock e a Black Music  clássicos e mostra-se sem paciência para atender clientes que não entendem de música e entram para comprar discos de música Pop insípida, de ocasião. Por exemplo, existe uma cena em que ele destrata um pai de família que entra a procurar por um disco a conter um sucesso Pop radiofônico, a pedido de sua filha e Barry expulsa-o da loja, ao humilhá-lo.

Essa atitude por ele adotada, sob um tipo de tratamento inadmissível, é bom frisar, existe infelizmente na vida real (eu sou testemunha de que isso ocorre na vida real, e já tive o desprazer de presenciar um tipo de tratamento desdenhoso desse nível, dentro de lojas dessas características, onde quase todo proprietário e igualmente os seus funcionários, mostram-se "experts" na matéria sobre a história do Rock,  e diante desse quadro, tais lojistas tendem a não suportar a presença de pessoas que não possuam o mesmo nível de conhecimento, sob uma demonstração de elitismo e arrogância que obviamente eu não concordo, mas enfim, isso existe nesse meio. 

No filme, ele manda o senhor ir procurar o álbum em questão em qualquer loja de discos de Shopping Center, o que demonstra a irritação descabida e carregada com desdém.

Logo de início, também, percebemos que o ator protagonista fala diretamente com o público, ao travar diálogos a mirar a câmera, como um narrador. Ele “pensa alto”, ao estabelecer as suas conjecturas e as divide conosco, a audiência do filme. 

Não é um recurso inovador no cinema, existem muitos filmes que utilizaram tal recurso, e cito o caso de, “Alfie”, clássico britânico de 1966, onde o personagem protagonista e título do filme (interpretado por Michael Caine), é um canalha incorrigível, todavia, por falar diretamente com o público, apesar do seu cinismo, ele tende a angariar a simpatia do espectador. 

De volta à “High Fidelity”, há uma cena interessante a denotar uma certa originalidade nesse bojo, quando ao citar certas letras das canções de Bruce Springsteen, o próprio músico e compositor entra em cena e dialoga dentro desse contexto, a reforçar o raciocínio do protagonista, naquele instante. 

Sobre o temperamento do personagem, Rob Gordon, este mostra-se amargurado, tenso e desagradável em muitos aspectos, embora não chegue ao ponto para provocar a antipatia, portanto isso não arruína o filme, em minha opinião, apesar dos pesares. E por que o protagonista é tão amargurado?

Bem, leve-se em conta que ele é dono de uma loja que revela-se decadente no ambiente dos anos noventa, ao considerar-se que nessa época, os discos de vinil estavam marginalizados, fora de uso, assim como as Fitas K7. E dentro daquela pureza natural de quase todo lojista tradicionalista e com espírito de colecionador de discos, a ideia em alimentar uma birra para contra a tecnologia subsequente, foi e ainda o é, muito comum. 

Nesses termos, o personagem nutre uma contrariedade para com os Compact Discs, os ditos CD’s, e assim demora a adaptar a sua loja para uma nova realidade e diante nesse vacilo estratégico, perde dinheiro. Todavia, o que mais incomoda o rapaz, é a sua dificuldade para lidar com os seus relacionamentos amorosos e nesse quesito, foi que a trama mais baseou-se, daí que não pode-se dizer trata-se de um Rock Movie, propriamente dito, pois toda a ambientação musical é apenas um pano de fundo para o que pode-se considerar na realidade, um filme para ser classificado como uma “comédia romântica”. Algumas cenas em “flashback” reforçam a ideia do personagem sofrer com a sua inaptidão nos relacionamentos amorosos, desde a adolescência, onde ele aparece a lidar com isso, embalado pelo som de Elton John, nos anos setenta.

Nesse caso, as suas idas e vindas com a namorada, Laura (interpretada por Iben Hjejle), levam-no a alterar o seu humor pelo filme inteiro, ao passar pelo momento em que vê-se substituído por um novo namorado por ela e pelo qual, passa a odiar mortalmente, chamado : Ian “Ray” Raymond (interpretado por Tim Robbins). Vale a pena destacar que neste caso usou-se alguns clichês surrados do cinema para descrever cenas de ciúmes, como a situação do protagonista a ouvir ruídos provenientes da noite de sexo de sua ex, com o novo namorado e a imaginação a atormentá-lo por isso. Qualquer semelhança com o filme, “De Olhos Bem Fechados”, do diretor britânico, Stanley Kubrick, não deve ter sido mera coincidência. 

E outro clichê ocorre, quando sob um confronto direto com o rival, dentro da loja, a realidade de um diálogo áspero, mas sem violência, mescla-se com cenas fictícias a representar a vontade expressa da parte do protagonista, ao surrar o seu rival, em sua imaginação. Não foi nada inovador  portanto, pois tal recurso metafórico já foi usado centenas de vezes no cinema, contudo, não chega a ser algo constrangedor. Aliás, há uma piada subliminar ao seu final, quando o rapaz é expulso da loja, aos gritos de: -“tire o seu fedor de Patchouly, daqui”, em uma alusão ao fato do rapaz em questão, ter a aparência de um Hippie velho...

Nesse ínterim, outras mulheres entram e saem da vida de Rob. A sensual, Charlie Nicholson (interpretada por Catherine Zeta-Jones); a bela, Marie DeSalle (interpretada por Liza Bonett), e Caroline (interpretada por Natasha Gregson Wagner). 

Eis que um pequeno acidente ocorrido dentro da loja, abre uma perspectiva nova para o seu proprietário. Ao flagrar dois adolescentes a cometer o roubo de alguns vinis, eis que persegue-os pela rua e quando aborda-os, não leva adiante a queixa policial, ao contentar-se em recuperar os discos e um manual para gravação de discos em “Home Studio”, que estava nas mãos desses punguistas (Vince e Justin, interpretados por Chris Rehmann e Ben Carr, respectivamente). 

É nesse ponto que ele percebe, no entanto, que os garotos não são gatunos inescrupulosos, mas aspirantes a produzir música. Em 1995, quando o livro saiu e em 2000, quando o filme foi lançado, gravar discos em casa ainda não era uma realidade disseminada de uma forma viral, entretanto, muita gente já estava a buscar tais soluções caseiras e simplificadas, graças aos recursos da tecnologia, ao montar estúdios de gravação dentro de suas residências, a funcionar adaptados em torno de softwares de computadores para simular as mesmas condições técnicas de captura de gravação profissional. 

E o imponderável acontece, quando os dois ladrões de ocasião, são contratados por Rob, que além disso, lança o trabalho musical deles em disco, ao tornar a sua loja, também uma pequena gravadora e isso dá sobrevida ao negócio. Bem, isso existe muito no mundo da música, muitas lojas tornaram-se pequenas gravadoras, sei desse fato por experiência própria, até, pois eu tenho uma ligação particular com duas lojas/gravadoras localizadas em São Paulo, que lançaram discos de bandas por onde eu atuei nos anos oitenta.

Então ocorre mais um arranjo para o desfecho do filme, e mesmo sendo por uma via triste (o pai da ex-namorada de Rob falece e ele reaproxima-se dela na cerimônia do funeral), e chega-se à parte final, quando em clima de “final feliz”, uma festa ocorre em uma casa noturna e então celebra-se o lançamento do disco dos dois “ex-delinquentes”, e de quebra, também a apresentação da banda do funcionário, Barry (Jack Black), onde o patrão surpreende-se ao verificar que a banda é boa e Barry canta muito bem o sucesso de Marvin Gaye, “Let’s Get On” (convenhamos, não é fácil cantar bem como o velho mestre do Soul, Marvin, o fazia). 

Em suma, um filme que pode ser encarado como uma diversão leve; a conter uma trilha sonora boa, a mesclar clássicos do Rock, Pop e Soul Music de várias décadas; algumas piadas sutis só percebidas por entusiastas da música e cultura Pop em geral, o suficiente para agradar o público da “Sessão da Tarde”, com a sua dose forte de romantismo suave.

O cartaz oficial do disco, imita o lay-out da capa do LP “A Hard Day’s Night” dos Beatles, com uma sequência de fotos em preto e branco do personagem protagonista, a denotar uma sessão fotográfica. Segundo o ator, John Cusack, que também foi o produtor do filme, a escolha da trilha sonora teve como critério básico, considerar músicas que refletissem a arrogância de seu personagem e de seus funcionários, que mantinham a postura de portar-se com altivez e indelicadeza para com os clientes que julgassem não ter o mesmo nível de conhecimento musical.

Certamente que o autor do livro construiu o seu romance a pensar detidamente nesse aspecto, por sentir na pele, muito provavelmente, tal tratamento despendido por balconistas presunçosos, nas lojas de Londres, que ele frequentou na sua vida real. 

A escolha de Jack Black para interpretar o intempestivo, “Barry”, foi estratégica. Jack é um ator com muito talento para a comédia, todavia, traz uma característica pessoal que é a de ser músico e apaixonado pelo Rock. Não foi o primeiro e nem o último filme em que interpretou um personagem diretamente ligado à essa realidade de sua vida real e exatamente por ter essa cultura e comprometimento com a música e o Rock em específico, agregou ao personagem um fator extra, com uma verdade implícita, além da mera interpretação. 

Participaram também: a famosa atriz, Joan Cusack, irmã de John Cusack na vida real, como “Liz”; Sarah Gilbert (como “Annaugh Moss”), Lili Taylor (como “Sarah Kendrew”), Joelle Carter (como Penny Hardwick), Drake Bell (Como Rob Gordon, quando adolescente), e outros de apoio.

O filme teve um bom desempenho nas salas de cinema. Embora tenha sido associado à música e com o Rock de uma maneira subliminar, não se tornou, por conseguinte uma obra específica para o público Rocker. Tratado mais como uma comédia romântica, atraiu o tradicional público seguidor dessa linha de cinema comercial, em predominância, no entanto, aos poucos, na base da formação de opinião, em uma segunda instância, ganhou um público novo, com Rockers e admiradores da música Pop em geral, interessados em sua boa trilha sonora e também na ambientação da loja de discos, além das piadas em torno do universo dos colecionadores de discos.

Em uma comparação bem generalizada, há uma certa similaridade desta obra com o filme brasileiro, "Durval Discos", onde o ambiente é também uma loja de discos, mediante uma trilha sonora maravilhosa, onde o personagem principal, o senhor Durval, em questão, é o típico dono de loja de discos, a ostentar um conhecimento mastodôntico sobre o Rock e a música Pop em geral (neste caso, inclui-se também a MPB), como mote primordial, porém, a história oferece múltiplas variantes e assim como "High Fidelity", não é necessariamente um filme sobre música.
O filme teve uma recepção boa da crítica, ao elogiar os seus diálogos e pela construção dos personagens, o que denota um elogio ao livro, por extensão. Entre tantas observações , eu pincei uma frase escrita por um crítico que eu acho que resume bem o teor da história: -"a fixação musical de Rob, é um sinal de sua adolescência presa, ele precisa obter registros antigos para encontrar o amor verdadeiro" Creio que o jornalista acertou em cheio, pois o personagem de Rob usa a música que ouviu em sua adolesc~encia como âncora para buscar o amor idealizado no seu passado. E certamente essa é a linha mestra da história. 

Sobre a sua trilha sonora, há a presença de muitos artistas clássicos, certamente, todavia a contar com muitos artistas da então atualidade Indie, muito para justificar as características do personagem de Dick, que é um ardoroso fã de Indie Rock. Então, entre os clássicos, destaca-se: Grand Funk Railroad, Elton John, Love, Stevie Wonder, Marvin Gaye, The Kinks, Bob Dylan, Harry Nilsson, The Velvet Underground, Al Green, Elvis Costello, Aretha Franklin, Barry White, 13th. Floor Elevator, Peter Frampton, Bruce Springsteen e Joan Jett & The Blackhearts. Em suma, muito som de extrema qualidade, proveniente dessa turma clássica.

Baseado no livro: High Fidelity, de Nick Hornby. Roteiro por John Cusack, Steve Pink, Scott Rosemberg e DV De Vincentis. Direção de Stephen Frears, um profissional britânico com vasta experiência e filmografia. Lançado em março de 2000.

Já foi exibido em muitas reprises em canais de TV’s a cabo; na TV aberta também, e mostra-se facilmente encontrado em versão DVD/Blue Ray. Além de estar disponível no You Tube. Como já salientei, não é um Rock Movie explícito, mas tem uma ambientação nesse universo, mais a ver com o espectro dos vendedores de discos, e na figura de seus colecionadores/consumidores, como adendo.

Esta resenha foi revista e ampliada para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", e encontra-se disponível para a leitura a através do seu volume I, a partir da página 366.
 

2 comentários:

  1. Legal,vou assistir no You Tube,ótima dica... o perfume que mais gosto é Patchouly, me faz lembrar a adolescência,amigos,loucuras, boas lembranças....sabe, gostaria de ter te conhecido pessoalmente, parece que somos amigos dessa época, bailes de Rock, turma,festivais de Rock, legal rs....viajei hehe, seus textos me causam esse efeito.

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    1. Sim, amigo Kim ! Vale a pena assistir, um filme com sutilezas interessantes para quem curte cultura pop e contracultura como nós.

      Sobre o perfume de patchouly, nem fale-me...é o aroma que acompanhou e embalou todas as ações em que envolvi-me nos anos setenta. De fato, você observou bem, certamente que apreciamos as mesmas coisas.

      E por fim, que sensacional saber que os textos que escrevo despertam-lhe tais sensações boas !! Levo como incentivo para prosseguir sempre !!

      Abraço e muito obrigado pela sua leitura e participação sempre rica.

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