domingo, 7 de maio de 2023

Filme: American Hot Wax (Viva o Rock'n' Roll) - Por Luiz Domingues

Se há uma personalidade que não foi músico, mas tem uma importância enorme no estopim do Rock’n’ Roll como algo muito maior que um simples gênero musical, na década de cinquenta, esta pessoa foi: Alan Freed. Radialista, Freed foi um dos primeiros, senão o primeiro a perceber algo novo no panorama da música norte-americana no início dos anos cinquenta, inicialmente ao descobrir uma variação do Blues tradicional, ao mostrar-se algo mais dançante e com alto teor Pop, no caso o Rhythm and Blues, conhecido pela sigla: “R’n’B”. 
 
Corajoso, em meio a uma sociedade extremamente pautada pelo racismo, encantou-se pela música produzida pelos artistas negros, de uma maneira geral e por conta desse seu entusiasmo, primeiramente com o Blues e o R’n’B, percebeu o potencial desse novo galho oriundo da raiz primordial da música negra. Posteriormente, ao perceber que a música negra ao fundir-se com o tradicional Country & Western, a poderosa raiz do cancioneiro da cultura branca, haveria por produzir uma música explosiva, rica e capaz de abranger um público miscigenado, a englobar brancos e negros e assim: “boom”, a explosão consumou-se em torno do Rock’n’ Roll. 
A importância de Alan Freed nesse processo é tão grande que é atribuído à sua pessoa, esse ponto de fusão que gerou o estilo. Exageros à parte, Freed ficou responsabilizado por ter criado o neologismo: “Rock’n’Roll. Independente desse fato ser verídico ou mero exagero em tom de boato e/ou lenda urbana, o fato foi que Freed foi um difusor do Rock, com um fervor impressionante e mais que isso, Freed organizou shows com muitos artistas da cena, inclusive a configurar uma periodicidade e também por gerar filmes, vários, nos quais o próprio Freed atuou, a interpretar a si mesmo e cercado por artistas musicais sensacionais.
Bem, Alan Freed também foi controverso. A despeito de ser reconhecido como um agente para a propulsão do Rock na década de cinquenta e enaltecido por uma série de artistas que foram beneficiados diretamente pela sua força midiática inconteste, todavia, por outro lado ele foi duramente perseguido pelas autoridades, por conta de seus shows realizados em salões e teatros, irremediavelmente a gerar tanta euforia espontânea.
 
Por conta de tal frenesi despertado, muitas vezes os jovens a dançar freneticamente, quebraram cadeiras e objetos em geral de tais locais, a suscitar muitas intervenções policiais truculentas. 
Porém, o incômodo maior, foi óbvio, e sob uma outra monta, ao tocar-se em um assunto delicado ao extremo na sociedade norte-americana de então, ao propor subliminarmente, que garotos brancos pudessem entusiasmar-se com a música dos negros. E ainda houve um terceiro elemento a demolir a sua imagem, e fato grave que praticamente o derrotou em sua credibilidade: a acusação que pairou sobre a sua reputação em torno do recebimento da chamada, “Payola”, que foi o neologismo criados pelos norte-americanos para designar o que no Brasil é conhecido como “Jabaculê”, ou “Jabá” na forma mais simplificada. 
 
Em síntese, a prática amoral da cobrança de um ágio, para a execução de músicas dos artistas nas estações de rádio. A “Payola” (a junção de sílabas das palavras: “Pay”-pagar, com “ola”, a sugerir “vitrola”, “radiola”, ou seja, aparelhos para ouvir-se música etc), foi uma prática abominável que gerou uma discussão sobre ética no âmbito da cultura, fortemente nos Estados Unidos, nessa época.
 
Pois em 1978, um filme cinebiográfico foi lançado para trazer à tona a pessoa de Alan Freed, a enaltecê-lo como um grande difusor do Rock’n’ Roll. Claro que isso foi verdade, a despeito de alguns aspectos negativos de sua biografia, como eu mencionei acima. Longe de estabelecer qualquer tipo de julgamento de minha parte, eu sei que o aspecto negativo em torno do escândalo da Payola foi grave e desagradável, no entanto, no cômputo geral, a sua contribuição ao Rock foi e sempre será inquestionável. 
Em “American Hot Wax” (no Brasil, tal filme recebeu o título: “Viva o Rock’n’ Roll”), o roteiro privilegiou a cronologia já a mostrar Alan Freed a viver o início de sua explosão como radialista. Em uma das primeiras cenas, Alan Freed (interpretado pelo ator, Tim McIntire), é duramente repreendido por um executivo da emissora (WINS de Nova York), por estar a tocar o sucesso de Little Richard, “Tutti-Frutti”, e ele ouve a verborragia irritada do sujeito, passivamente, a denotar uma atitude de deboche e assim deixar claro que não iria obedecer nenhuma ordem da direção para mudar a sua programação.
 
Destaca-se a presença da secretária, Sheryl (interpretada por Fran Drescher), que mostra-se engraçada, ingênua e dá o tom cômico do filme ao ser assediada o tempo todo por muitos homens, visto que além de ser uma personagem engraçada, Sheryl/Fran Drescher (e bem jovem nessa época), era muito bonita. E do motorista de Freed, “Mookie” (interpretado por Jay Leno, que anos mais tarde tornar-se-ia muito mais famoso ao apresentar um talk-show prestigiado na TV). Mookie mostra-se engraçado também em alguns momentos, mas na verdade, é um personagem dúbio, ao denotar não estar comprometido inteiramente com o seu patrão.
 
Cenas com Freed a comandar o seu programa, intercalam-se à outras, onde é realçada a repercussão entre os jovens e isso é alvissareiro para demonstrar o poder da difusão radiofônica nesse processo. E nesse bojo, vem também o contraponto com os pais dos adolescentes a mostrar-se muito revoltados com tal influência, e assim pressionar profundamente os seus filhos em sinal de reprimenda e sob a sua visão tacanha, certamente vir a desnudar o seu racismo indelével, entre outros aspectos nada louváveis.
 
Uma cena ainda mais forte sobrevém, ao mostrar uma pressão que Freed sofrera da parte de um comitê em prol dos “bons costumes”, a reclamar sobre ele estar a difundir essa tal música tóxica e assim, gerar um desserviço ao país etc. e tal. 
 
Outro aspecto bem interessante do filme, foi ter mostrado com bastante ênfase, inclusive, a questão sobre o assédio direto que Freed recebia, diariamente da parte de artistas e até aspirantes a artistas. Fato concreto, isso realmente foi uma constante na trajetória de Alan Freed, que costumava ser abordado por artistas na porta do prédio onde funcionava a estação de rádio, para mostrar os seus dotes musicais. Cenas nesse sentido são interessantes e até divertidas, pois chegou-se em um ponto onde as pessoas o confundiam com um produtor caça-talentos de alguma gravadora e a todo custo, o procuravam. Até mãe a levar filhos pequenos para atormentá-lo ao obriga-lo a assistir os seu pimpolhos a cantar (e desafinar), a capela, em seu gabinete. 
Destaca-se a presença de uma jovem compositora chamada, Louise (interpretada por Loraine Newman), que não apenas compõe canções ao piano, como ajuda um grupo vocal negro, orientado pelo R’n’B, para arranjar e ensaiar os rapazes. Essa personagem é acintosamente inspirada em Carole King, uma artista sensacional e que de fato, bem nova, ainda nos anos cinquenta, forjou-se no mercado musical como uma compositora e até chegar ao ponto de ser contratada por uma gravadora, definitivamente. 
 
Verdade histórica, Carole King insistiu bastante em abordar pessoas ligadas ao show business, através do apoio de grupos vocais R’n’B, formado por rapazes (ou moças), negros com os quais os alimentava com as suas composições.
 
Outra cena interessante no filme, mostra um garoto muito novo, que abordou Freed, ao se apresentar como o presidente de um fã clube do genial cantor/compositor e guitarrista, Buddy Holly. Pois Freed abriu o microfone e o garoto deu um depoimento emocionado, ao ponto de embargar a voz e deduz-se que isso ocorrera em setembro de 1959, pois ele estava ali a comemorar a data de nascimento do artista e emocionara-se ao citar perda de Buddy (falecido por conta de uma acidente aéreo), o que ocorrera em fevereiro desse ano. 
 
Uma cena forte ocorre quando o pai de Louise a repreende por estar envolvida com homens negros e ela revolta-se, pois a sua paixão pela música falara mais alto que o preconceito de sua família conservadora. Se a personagem foi inspirada em Carole King, vale destacar que Carole, na vida real, passou por esse tipo de aborrecimento com o seu pai, que foi um empresário poderoso e este frustrou-se com a decisão de sua filha de não ser uma boa herdeira obediente, para preferir viver de música e andar com “más companhias”. Enfim, no filme, não é explicitado tratar-se de Carole King e a condição social da personagem é bem mais modesta, alojada na classe média.
Enquanto isso, cenas do show de primeiro aniversário do programa radiofônico que Freed protagonizava, realizado no teatro Paramount, mostra o tumulto gerado pela super lotação e principalmente pela euforia proporcionada pelos jovens. Vê-se de tudo, incluso artistas fantasiados. 
Um músico de rua, a tocar uma bateria improvisada com um tambor de óleo, é notado em alguns "frames". Um pedaço da performance do sempre exótico, "Screamin" Jay Hawkins, mostra-o a grunhir, literalmente e encerrar a sua apresentação e entrar em um caixão, algo bem chocante para os padrões da época, muitos anos antes de Alice Cooper teatralizar os seus shows. Aliás, Alice nessa época, 1959, era só um garoto estudante, fã de Rock’n’Roll e certamente a ouvir o programa de Alan Freed no rádio.
 
Cena desagradável, mas que corresponde à realidade, de fato as autoridades usaram a polícia para reprimir o show. O clima fica tenso na coxia, quando o aparato policial cerca tudo e ameaça parar o show a qualquer instante e pior ainda, efetuar prisões a esmo, incluso os artistas que estão ali a apresentar-se. Uma ordem é proferida a dar conta que a polícia não toleraria nenhum jovem em pé, a dançar. Todos deveriam assistir tal show sentados e caso alguém desobedecesse, o espetáculo seria sumariamente encerrado, ou seja, uma tremenda arbitrariedade abominável.
Chuck Berry e Jerry Lee Lewis, em pessoa, apresentam-se. A produção convidou os dois artistas o que foi simpático, mesmo porque, ambos foram muito amigos de Alan Freed e apresentaram-se muitas vezes nesses espetáculos produzidos pelo radialista, na vida real. Tenho certeza que os dois participaram do filme com muito prazer pela homenagem ao seu saudoso amigo, Freed, no entanto, ao pensar no filme, a licença poética ficou descabida, pois ambos, na casa dos quarenta anos de idade nos anos setenta, quando este filme foi produzido, não foram maquiados para parecer mais jovens, e assim, com quarenta e poucos anos a interpretar a si próprios com vinte e poucos, ficou bem forçado. 
 
E mais um detalhe, a sobre a sonoridade dos shows, não houve nenhuma preocupação em buscar-se um áudio mais compatível com a realidade dos anos cinquenta. Detalhe, eu sei e compreendo igualmente que a licença poética justificou-se pela homenagem prestada, no entanto, se tal encenação houvesse sido feita com atores mais jovens e os dois super astros cinquentistas aparecessem de outra forma, a homenagem estaria representada dignamente, acredito.
 
De volta ao filme, a cena em que a polícia pressiona na coxia do teatro chega aos ouvidos de Jerry Lee Lewis, que estava no palco a apresentar-se. Ele pede calma aos jovens, mas em seguida, ele mesmo já sobe em cima do piano e comanda a rebeldia total (bem típica a reação do “The Killer”, por sinal). A polícia manda cortar a energia elétrica e sai a bater e prender todo mundo que conseguiu agarrar, em meio ao tumulto e correria.
A última cena é muito simbólica. Aquele rapaz que cantava e tocava um tambor de óleo na rua, é mostrado com a rua deserta após o tumulto. Nada mais simbólico, pois se a repressão tentou barrar (e tentaria muitas vezes no futuro), o fenômeno, na verdade o Rock sobreviveu, tal qual o percussionista improvável das ruas continuou a tocar, incólume aos acontecimentos policialescos.
 
Uma tarja com dizeres, apenas afirma que Alan Freed foi morar na Califórnia, posteriormente. Então, nada mais é esclarecido, portanto, a questão sobre o “Payola” que o prejudicou ao ponto de ser demitido da rádio, não foi mencionada a justificar a decadência do radialista e a sua morte em 1965, decorrente do alcoolismo e certamente pela tristeza gerada pelo ostracismo forçado.
Enfim, trata-se de uma obra que maquiou bastante a trajetória do radialista, nos aspectos mais obscuros de sua biografia. Entretanto, mostrou méritos ao exibir a sua importância para a cena. E contém igualmente algumas pontuais passagens da sua vida e obra, interessantes. 
 
A direção de arte não foi das mais caprichadas o que causa um espanto, ao tratar-se de uma produção norte-americana. Não é nada gritante, mas observa-se no figurino e no visual das personagens, um certo anacronismo, que não é compatível ao padrão norte-americano que é sempre tão rigoroso nesse quesito em específico sobre filmes ambientados em épocas mais antigas. Não basta comprar figurinos em brechós para encenar uma dramaturgia ambientada em algum ponto do passado. É preciso fazer uma pesquisa mais apurada etc. e tal. 
O mesmo em relação ao áudio. Não é necessário ser um engenheiro de som para notar que o som cinquentista que soa na trilha sonora do filme, a excetuar-se trechos de músicas extraídas de discos da época, na verdade é óbvio tratar-se de uma sonoridade setentista e Pop, para ser mais preciso. 
 
O ator que interpretou, Alan Freed, Tim McIntire, tinha uma aparência pessoal semelhante ao cinebiografado, porém, nitidamente mais robusto. Brincadeiras surgiram a dizer que McIntire havia composto a personagem de Freed, após um tratamento intensivo realizado em bons restaurantes italianos.
 
Outros atores que participaram do filme: Moosie Drier (como Artie Moress), Jeff Altman (como Lennie Richfield), John Lehne (como DA Coleman), Charles Greene (como Chuck Otis) e Richard Perry (como um produtor de estúdio). Uma curiosidade especial, o cineasta e crítico musical, Cameron Crowe, faz uma participação especial, com um entregador. Nessa época ele era bem jovem, mas precoce, era crítico de Rock da revista Rolling Stone, já desde o início dos anos setenta.
 
Outros artistas musicais que participaram: The Chesterfields (representado por atores), The Delights (representados por atores), Brenda Russell, Timmy and The Tulips (representado por atores) e The Planotones (representado por atores). 
O roteiro foi escrito por John Kaye e a direção ficou a cargo de Floyd Matrux. Foi lançado em março de 1978. O resultado prático revelou-se muito mal na bilheteria das salas de cinema assim que entrou em cartaz e recebeu críticas pouco animadas, inclusive mediante menções ao filme ter edulcorado a biografia de Alan Freed e dessa forma, ignorar os pontos negativos, como o caso da “Payola”, por exemplo. Circulou na TV, com muitas reprises. Está disponível em formato DVD e encontra-se na íntegra para ser assistido no YouTube, ao menos neste instante em que escrevi esta resenha, em 2019.
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz, Câmera & Rock'n' Roll", em seu volume III e está disponível para a leitura a partir da página 58. 

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