quarta-feira, 15 de junho de 2022

EP Poente/Ana Gallian - Por Luiz Domingues

Esta é uma história marcada pela persistência, mas antes de tudo pelo amor à música e arte como um todo. É também uma prova cabal de que não existe barreira, nem mesmo a do tempo, que impeça que uma artista exerça a sua livre criação em torno da arte.

Ana Gallian é uma cantora e compositora que descobriu a sua vocação desde a adolescência, ao criar e cantar as suas canções sob âmbito restrito. Foi quando estabeleceu uma parceria com uma artista emergente como ela, chamada: Cristina Perez Duhá e como dupla, criaram um repertório fortemente inspirado pela Bossa Nova, e principalmente pela MPB ligada ao Rock Progressivo bem ao estilo dos geniais artistas mineiros que formavam o grande Clube da Esquina, o Rock como um todo e que ambas tanto admiravam. 

                    Ana Gallian em foto atual sob ritmo de selfie

Nesse aspecto da criação em si, foram músicas pensadas inicialmente para o formato de um duo de vozes e violões, ao estilo Folk, a se realçar o espectro bucólico bem ao sabor da vida silvestre a observar as belas montanhas de Minas como uma imagem poética e inspiradora.

Até que em 1988, Ana teve uma oportunidade boa para crescer na carreira ao ter sido convidada a integrar uma banda de Rock que apresentava uma tendência psicodélica como forma de expressão.

Naquele panorama de fim de década de oitenta e no avançar dos anos noventa, a banda “Retina de Emily” se apresentou com constância pelo circuito de casas de pequeno e médio porte de São Paulo e chegou a participar de um grande festival ao ar livre, na famosa “Praça do Relógio” da Cidade Universitária da USP, apresentado pelo grande jornalista, Valdir Montanari, um especialista na análise do Rock Progressivo setentista.

Ouça abaixo a canção “Grãos do Espaço”, com o grupo “Retina de Emily”:

Eis o link para assistir no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=H0-REt8Gj4o

A banda era formada por José Henrique "Zérik" Dias Ferreira (bateria), Nelson Luiz Dias Ferreira (guitarra e voz), Nicola Kurji (guitarra), Vadim Surkov (baixo) e Ana Gallian nos vocais. José Henrique e Nelson Luiz são irmãos de Ana, portanto, a banda se revelava praticamente como um esforço musical familiar.

Ana deixou a banda em meados de 1991, e deu vazão à uma outra paixão sua, ao se dedicar ao estudo da psicologia. No entanto, manteve a música em paralelo, talvez não com o mesmo ímpeto de outrora, porém, com a paixão de sempre, ao se apresentar com o seu marido, Isidoro Hofacker Junior em apresentações intimistas sazonais.

Ana Gallian no ambiente silvestre que inspira a sua música. Foto: Fernando Dias

Muitos anos depois, no entanto, eis que mesmo com a pandemia decorrente do Covid-19 em pleno curso, Ana foi surpreendida pelo seu marido, Isidoro, ao lhe comunicar que este fizera contato com o grande guitarrista e produtor musical, Edu Gomes, para viabilizar a gravação de um álbum solo da sua esposa, para ser gravado no estúdio do Edu e sob o seu comando técnico no áudio e na produção em geral e ainda a contar com participação dele, Edu, como músico e arranjador, portanto, tal iniciativa se tornara por antecipação a garantia de que seria um grande trabalho.

Foi então que Ana resgatou algumas das suas composições feitas nos anos 1980 (algumas em parceria com a amiga e compositora, Cristina Perez), repensou a sua formatação para o trabalho soar mais eletrificado e contou com o decisivo apoio de Edu Gomes, que comandou a produção total, incluso os arranjos e arregimentação de músicos de apoio (e um desses foi o próprio irmão de Ana e ex-companheiro da banda “Retina de Emily”, o baterista José Henrique Dias Ferreira).

Com todos os cuidados sanitários adotados para a proteção de todos em tempos de contaminação total, eis que o trabalho avançou e assim, Ana Gallian mostrou ao mundo, logo no início de 2022, o seu álbum solo, enfim, denominado: “Poente”.

Com produção de áudio caprichadíssima da parte do grande Edu Gomes, as composições de Ana fazem com que o ouvinte flutue, tamanha a delicadeza de suas melodias inspiradas.

A instrumentação é de primeira linha, com arranjos de muito bom gosto e momentos de brilhantismo que só enriqueceram a obra, não resta dúvida.

E sobre a performance vocal e interpretação da parte de Ana Gallian, observa-se uma cantora dotada de um lindo timbre de voz, excelente emissão e alcance, muito boa dicção a garantir a completa inteligibilidade das suas letras e muita graça na forma de interpretar.

Na minha percepção, o estilo dela lembrou-me muito o de cantoras como Jane Duboc, Luiza Maria e Olívia Byington, para citar apenas três exemplos próximos e principalmente pelo fato de que todas essas cantoras citadas tenham trilhado um caminho muito semelhante ao que Ana busca com tal trabalho, ou seja, a estabelecer aquela simbiose entre a MPB e o Rock e neste caso, mais próximo do Rock Progressivo, por conseguinte, da música Folk, no seu aspecto mais silvestre. 

Sobre a parte gráfica do álbum, a capa frontal mostra a artista em destaque, junto ao seu violão, retratada em um ambiente belíssimo de fazenda interiorana muito charmosa, no caso, sob um mural construído com azulejos belíssimos.

O click com muito senso fotogênico foi obra de seu próprio filho, Fernando Dias e no release do disco, há uma boa informação a dar conta que essa foto foi produzida em uma fazenda tradicional, chamada Santa Elza, localizada no perímetro rural da cidade de Santa Cruz das Palmeiras-SP, e segundo a própria Ana revelou, tal localidade contém grande significado afetivo para ela e toda a sua família, pois ali nasceu a sua mãe e assim, foi uma forma também de homenagear a sua avó materna, dona Francisca Gallian.

E sobre o belo azulejo português, ele de fato foi pintado à mão, no início do século XX, portanto, trata-se de uma relíquia arquitetônica e artística.

Na contracapa, a artista é realçada em meio ao ambiente bucólico da fazenda e a ficha técnica com informações precisas sobre a produção geral do álbum.

Os ótimos músicos que garantiram o instrumental de alto padrão para que Ana Gallian pudesse cantar com desenvoltura no EP Poente, da primeira foto mais acima, em diante: Hugo Hori, Adriano Grineberg, José Zérik" Henrique e Edu Gomes

Sobre as canções, cabe espaço para que eu elabore algumas ponderações adicionais.

Ouça a canção “Paisagem”, abaixo:

Eis o link para escutar diretamente no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=Ny6CIk2haQs

Paisagem”, é a primeira canção e de imediato ela nos conduz ao sabor do Rock em simbiose com a MPB, bem ao estilo do “Clube da Esquina”.

Há um apoio de cordas acústicas em perfeita sintonia esvoaçante com os teclados e é inevitável não remeter ao Rock Progressivo em muitos trechos, em face do arranjo que aponta para tal desfecho.

A voz de Ana soa aguda e se casa com perfeição às belas intervenções da guitarra, com direito a um solo delicado e extremamente melódico.

No aspecto da letra, Ana propôs muitas imagens metafóricas interessantes e que no bojo, mostram o frescor da mata, das correntes naturais formadas pela cachoeiras, rios e dos minérios a denotar paz ante o esplendor da natureza. Eis um exemplo:

Céu a mente pega a estrada/Rumo à grande mata/Mata a sede com a chuva/É o sabor de amora/Que me cora a língua úmida 

Ouça abaixo a canção “Poente”:

Eis o link para escutar no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=WLgA5UEP2kw

Poente”, canção homônima ao título do álbum, vem a seguir. Com um efeito de ruído produzido pela passagem de um trem, a atmosfera inicial já denota o fator emocional que a artista quis imprimir em termos de memória afetiva forte. E a sua intenção primordial logra êxito, através de uma canção com forte identidade com as tradições do Rock Rural.

Impressiona a sobreposição de vozes logo no início e no decorrer da música, tal efeito se repete, ao mostrar não só uma bela ideia em termos de arranjo, mas também a realçar a bela voz de Ana em dose dupla, com afinação perfeita e doçura.

A canção em termos de estilo, lembra muito os trabalhos de Beto Guedes e o arranjo instrumental é tão rico que realmente o acabamento ficou excepcional.

Com cordas acústicas e guitarras a estabelecer lindos desenhos complementares, inclusive mediante o uso muito oportuno da caixa Leslie como efeito na guitarra ao final, realmente ficou de uma beleza incrível. Gostei muito da bateria, com uma batida muito bem escolhida como linha e também a se destacar as intervenções de teclados, pontuais e muito assertivas. Incluso um micro solo de piano, muito bonito.

Ao final, ouve-se o som do trem novamente e fica aquela sensação muito boa de que a cantora deu o seu recado com muita propriedade e partiu feliz a bordo para escrever uma nova história a seguir.

Ouça abaixo a música: “Fruto da Noite”:

Eis o link para escutar no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=49wGhyQSoQU

A terceira faixa se chama: “Fruto da Noite”. Trata-se de uma balada bastante delicada, rica em tessituras sutis. A intervenção inicial da flauta é bela e o apoio do piano elétrico a produzir aquela ressonância tão peculiar de sua natureza, pontua de forma magistral a melodia entoada por Ana.

Mais intimista, nesta canção, Ana traz a nuance da Bossa Nova como um adendo, mas a verve do Rock progressivo via Folk-Music está presente e neste caso, principalmente durante as partes em que ela faz uso dos vocalizes, há um sentido de floreio que realça a canção de uma forma muito agradável.

Gostei muito da linha de baixo e bateria, simples em linhas gerais, porém, com um senso de fluidez impecável. Os solos de piano e cordas, são muito belos.

Em alguns versos, Ana deixa explícita a sua intenção de provocar a sensação de flutuação para o ouvinte, ao proferir:

Me ensina como navegar/Me ensina se o acaso é fruto do mar

Ouça abaixo a música: “Despertar”:

Eis o link para escutar no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=GxiHyqc-upE

Logo a seguir, ouvimos a música “Despertar”. Faixa com mais identificação com a MPB a priori, na verdade, na medida em que avança, mostra uma inconfundível influência do Blues e do R’n’B na sua constituição e ante tantas influências boas, abriu campo para um instrumental bastante sofisticado e que deu respaldo, por conseguinte para que a interpretação de Ana fosse muito valorizada.

Gostei muito do violão, solo de guitarra e oportuno uso de percussão. Gostei muito do piano pontual e do sintetizador/strings ao estilo fantasmagórico em alguns trechos, como uma sombra enigmática ao fundo, muito bem calculado, além é claro, do belo solo de guitarra com um efeito delay bem escolhido.

Novamente Ana fez uso do recurso do vocalize em alguns trechos e isso ornou muito bem para a canção. O seu timbre natural de voz, agudo, se mostra muito bonito e no quesito da interpretação, ela mostra muita personalidade.

Ouça abaixo a música: “Passageiro do Tempo”:

Eis o link para escutar no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=vE8MsP2c0g8

Vem a próxima faixa, então, que é: “Passageiro do Tempo”, e essa canção tem um início etéreo, bastante interessante. Com andamento lento, apresenta uma boa influência do Blues e quando entra uma bela intervenção de saxofone, o apelo ao R’n’B se torna proeminente.

É muito criativo o uso dos teclados com efeitos psicodélicos intermitentes nas suas camadas mais baixas de mixagem, e do qual eu gostei muito. A melodia de voz toda bem desenhada denota ter havido um esforço de construção bastante feliz nesse sentido.

Advém uma parte mais acelerada e que leva a música para uma atmosfera mais Rock, e assim proporciona para Ana que ela solte a voz e brilhe.

Escute abaixo a música, “Nós”:

Eis o link para escutar no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=S8B44SNcyLY

Para encerrar o disco, a faixa “Nós” é bastante híbrida em sua formulação sonora. Isso porque ela se inicia a se insinuar como um estilo Soul Music pela sua vibração e “beat”, mas assim que a melodia começa, a música entra surpreendentemente em uma batida bem próxima do Samba por alguns instantes, até entrar em uma outra intenção próxima do Pop-Rock e do R’n’B.

No entanto, com tantas variantes, é preciso salientar que as respectivas transições estabelecidas entre estilos tão distintos, são feitas por uma costura muito bem organizada, nada é abrupto, isto é, trata-se de um arranjo muito bem organizado e funcional.

E neste caso, Ana se mostrou eclética a interpretar todas essas nuances com bastante desenvoltura, portanto, o arranjo não só enriqueceu a canção, como proporcionou à sua intérprete extrair o máximo das suas qualidades vocais.

Em suma, trata-se de um trabalho no qual Ana Gallian se mostra como uma compositora inspirada, cantora de muitos predicados, letrista sensível e que ao ter se amparado com músicos de primeira linha e tido o grande Edu Gomes como arranjador, produtor artístico e de áudio ao seu dispor, selou a qualidade do seu bom disco, “Poente”. Que venham outros, portanto!

O EP Poente foi gravado entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021

Técnico de áudio na captura, mixagem e masterização: Edu Gomes

Masterização: Daniel Lanchinho

Arranjos e produção musical: Edu Gomes

Ana Gallian: composições e letras de todas as canções, com exceção de “Fruto da Noite” e “Passageiro do Tempo”, em parceria com Cristina Perez

Capa (criação e lay-out) e foto: Fernando Dias

Apoio: Isidoro Hofacker Junior

Ana Gallian: Voz

Edu Gomes: Guitarra, violão, baixo e teclados

José Henrique "Zérik" Dias Ferreira: Bateria e percussão

Adriano Grineberg: Piano e teclados

Hugo Hori: Flauta e saxofone

Ana Gallian a soltar voz em meio à natureza. Foto: Fernando Dias

Para conhecer melhor o trabalho da artista, acesse:

Spotify:

https://open.spotify.com/album/5rVd4tU14oEFOEQXVgKDmu?fbclid=IwAR1C6WteF-BMzRauparP-yRZiEd3EPkFnuP1iWBATIkGRGmLEnaHlPlUVzA

YouTube:

https://www.youtube.com/channel/UCw23fNMb57g7A2lpWbDOwOA

Contato direto com a artista:

@anagallianoficial

2 comentários:

  1. Excelentes trabalhos tanto com a parceria da Ana Gallian com a Cristina Perez Duhá com a banda “Retina de Emily” bem como com sua banda atual, estimo sucessos contínuos para todos bem como ao Mestre Luiz Domingues!

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    1. Sensacional, Claudiomir!

      Fiquei contente por saber que leu a resenha com muito interesse e ainda mais por ter gostado do trabalho da Ana Gallian e de sua antiga banda, inclusive.

      Gratidão pelo seu prestígio!

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