terça-feira, 30 de julho de 2024

Filme: Electric Apricot: Quest For Festeroo - Por Luiz Domingues

O conceito de um pseudodocumentário, ou “Mockumentary” como falam os norte-americanos, significa na prática um híbrido cinematográfico. É uma falso documentário, portanto, ao confundir-se com um filme regular a conter dramaturgia e certamente por pautar-se pelo humor. Há dois exemplos clássicos nessa categoria, em termos de Rock Movies, a citar: “This is Spinal Tap” e “The Rutles” , que são, ambos, hilários. Pois esta obra, “Electric Apricot: Quest for Festeroo” é mais um mockumentary a revelar-se muito engraçado por explorar os maneirismos inerentes aos bastidores de uma banda de Rock. 
 
Neste caso em específico, o retrato é o de uma banda underground, “Electric Apricot” (“Damasco Elétrico”, em português), feita por um suposto documentarista (que na verdade seria um estudante de cinema, iniciante), e cabe uma análise. Ocorre que tal banda é fictícia, porém em termos, pois foi formada por músicos reais e segundo ponto, apesar de não ser uma prioridade para os seus componentes, ela reuniu-se algumas vezes, sazonalmente na vida real, para eventuais apresentações.
Sobre a construção das personagens e do espectro da banda, é interessante notar que a intenção foi situar a ambientação em meio a um tipo de mentalidade bem típica dos primeiros anos de anos doo novo milênio, a abrigar uma fusão de influências e algumas até antagônicas entre si, de uma forma surpreendente. 
 
Isso por que a base dessa banda e por conseguinte de seus membros, é marcada pelo apreço à estética vintage, no entanto, percebe-se aquele caráter híbrido, à mercê da predisposição em evocar-se com força os signos do movimento Hippie da década de sessenta, no entanto com uma intenção de buscar adaptá-la aos tempos modernos e por conseguinte, a incorporar elementos contemporâneos. Quem pensa dessa forma, geralmente argumenta que não é saudável manter uma postura saudosista e atrelada ao passado, portanto, a enfatizar que a oxigenação é necessária. 
O outro lado dessa moeda é que o suposto ecletismo proposto para arejar a estética, nem sempre é feito com a devida propriedade e ao incorporar-se qualquer nova ideia que pareça estar coadunada com os antigos valores, sem um maior apuro, corre-se o risco de conspurcá-lo, ao ponto de tornar tal nova configuração, algo muito equivocado. Não se chega a esse ponto no desenrolar da história, mas as personagens e a banda em si, demonstram estar nesse limiar, embora penda-se mais para o apreço ao conceito “vintage” genuíno, isto é, ainda bem para o meu gosto pessoal. 
 
Bem, outro aspecto a ser comentado e nesse sentido, mais a reparar na parte cinematográfica do que a musical, reside no fato da película ser absolutamente tosca em vários quesitos, e isso é obviamente algo proposital. Nesse aspecto, a fotografia mostra muitas variantes, a luz é precária em várias cenas e sobretudo a edição, estabelece cortes amadorísticos para reforçar a ideia de ser um documentário precário.
Ainda a falar sobre a edição, os cortes bruscos, sem nenhum acabamento, denota tal intenção humorística e em certas casos, há até a demarcação abrupta de uma cena para a outra, a simular uma filmagem caseira, feita com uma única antiquada câmera VHS caseira, e assim editar-se cada cena mediante a junção pura e simples de uma cena filmada, uma logo após a outra, sem passar o "copião" bruto por uma ilha de edição, por mais simples que fosse.
 
Visto pelo lado musical, é bom salientar que o mote adotado para a “Electric Apricot” é retratar a banda como uma típica “Jam-Band”. Esse conceito, que nasceu nos anos sessenta (em linhas gerais, visto que tal conceito na verdade, remete aos anos trinta do século passado), a denotar um tipo de trabalho que oferece margem para uma generosa dose de improviso na execução ao vivo de uma banda.
O grande "Grateful Dead", ícone do Rock norte-americano sessentista e amplamente citado nesse filme
 
Em termos de Rock, tal conceito foi principalmente propagado pelo grande, “Grateful Dead”, uma das maiores bandas do Rock norte-americano nos anos sessenta e que ao longo dos anos, ganhou uma aura muito especial, a tornar-se uma das mais cultuadas de todos os tempos. 
 
Em tese, a “Electric Apricot” apresenta-se no filme como uma Jam-Band, a seguir tal tradição e tanto foi assim, que explicita-se inclusive ao ponto em dar  vazão a um tipo de idolatria explícita em favor do falecido e saudoso guitarrista do Grateful Dead, Jerry Garcia, da parte do guitarrista do Electric Apricot, o que aliás, repercute com ótimas piadas ao longo do filme.
 
Muito bem, feitas as considerações iniciais, o comentário sobre o desenrolar da história é bem simples, pois a opção foi pelo tipo de abordagem ao estilo de um documentário tradicional. Portanto, em meio a falsa noção da dramaturgia ali presente, os conflitos e as partes engraçadas são retratadas como uma retratação da vida real das personagens e nesses termos, a pensar no cotidiano de uma banda de Rock a atuar no patamar underground da música, portanto, a suscitar todo o tipo de situação que qualquer grupo de Rock passa normalmente e nessas circunstâncias, e assim denotar a baixa estatura desse grupo dentro do conceito do show business, é evidente que a precariedade generalizada gera piadas e muitas delas, são ótimas.
Nesses termos, o desenrolar é bem simples, a mostrar o cotidiano dos componentes em meio a ensaios e apresentações em pequenas casas noturnas, em um primeiro instante. Posteriormente a mostrar a gravação em estúdio do material e os esforços para a banda participar de um festival com maior porte, o “Festeroo”, que é anunciado no título do próprio filme. Somente isso, não há nada a mais, no entanto, é através dessa simplicidade que um conjunto de situações muito engraçadas acontece e eis aí um grande mérito desse “Mockumentary”, pois as piadas são múltiplas a satirizar o Rock em múltiplos aspectos. 
Nesse campo, há uma riqueza no repertório de galhofas geradas, pois as menções ao Rock vintage e também a citar tempos mais modernos, mostra-se muito interessante. É também centrado na questão cultural como um todo, a esbarrar certamente nos aspectos contraculturais, no que tange às lembranças sessenta-setentistas e a incluir a visão então moderna, advinda dos anos noventa, a dar conta que “raves” de música eletrônica seriam celebrações psicodélicas a resgatar valores sessentistas, o que é um conceito bastante discutível em meu entender, mas que eu sei que é defendido por neo-hippies, ou seja, algo bem próximo do que as personagens que formam o Electric Apricot no filme, representam como representação da mentalidade e modus operandi desses artistas.
 
Sobre o som do Electric Apricot, além das características de uma Jam Band a la Grateful Dead, há uma interessante amálgama de estilos vintage a serem observados. É certamente um som que tem bastante influência do Country-Rock, Blues-Rock e do Folk em uma primeira instância. Passa tranquilamente pelo Acid Rock e igualmente pela psicodelia sessentista e esbarra no Hard-Rock; Southern Rock e também em experimentalismos, portanto, é rico em estilos variados. 
Ao longo do filme, para reforçar as piadas, a banda toca e canta mal propositalmente em vários trechos, entretanto há lampejos de uma execução boa, até agradável, em outros, visto que trata-se de um grupo formado por músicos verdadeiros e com bom nível técnico.
 
Um outro mérito do filme, uma série de músicos reais aparece a interagir diretamente com o pessoal do Electric Apricot e também a prestar depoimentos, para reforçar a ideia em tratar-se de um documentário real. 
 
É um luxo portanto, ver na tela artistas como Bob Weir (do Grateful Dead), Warren Haynes, Matt Abts, Mike Gordon, e outros, além de atores de ofício como Seth Green (interpreta um assistente de estúdio), Sam Maccarone (encarna o bartender que fala mal de Jerry Garcia), Matt Stone (interpreta outro técnico de estúdio), entre outros e também pela presença do Hippie-Mor, "Wavy Gravy", uma emblemática personalidade que é conhecida do imaginário norte-americano, desde a sua aparição performática no documentário oficial sobre o Festival de Woodstock em 1969.
Na inexistência de uma história dramatúrgica propriamente dita, é mais fácil arrolar algumas cenas em específico: A fixação do guitarrista, Steven Allan Gordon (interpretado por Bryan Kehoe), que é conhecido pelo apelido, “Gordo” (“gordo” por conta de “Gordon” e também para fazer menção à palavra existente nos idiomas espanhol e português, em alusão ao fato dele ser uma pessoa obesa), pelo guitarrista do Grateful Dead, Jerry Garcia permeia o filme inteiro. 
 
Em uma específica cena onde ele é alertado pelos companheiros que um garçom de uma casa noturna onde haviam tocado, falava acintosamente mal de Garcia, faz com que ele volte ao salão e sem dizer absolutamente nada, esmurre e nocauteie o caluniador incauto. Em seus depoimentos, “Gordo” mostra-se um alienado em potencial, apenas a falar sobre o Grateful Dead/Jerry Garcia, guitarras e lançar odes à maconha, inclusive em cena em que ele exalta a plantação hidropônica de tal erva.
 
O empresário da banda a perder a chave do seu carro velho e pedir apoio em uma estrada, é um retrato da precariedade em que esta banda opera. Isso fica patente igualmente nos shows realizados em casas noturnas inexpressivas. O som da banda fica muito ruim em algumas cenas em que mostra-se shows ao vivo, com distorções oriundas de um equipamento de quinta categoria, algo bastante atípico até para o padrão underground dos Estados Unidos, mas como piada, é claro que funciona muito bem. Depoimentos bizarros de pessoas comuns são muito engraçados. Uma “tortilla” com a face de Jerry Garcia, recomendada pelo “Gordo” parece uma piada das “Organizações Tabajara”, a criação do pessoal da “Casseta & Planeta”, adaptada ao universo do Rock.
O baixista da banda, Steven Hampton Trouzdale, também conhecido pelo apelido, “Aiwass” (interpretado por Adam Gates), fala coisas desconexas enquanto mostra a sua residência bizarra, instalada em cima de uma árvore e também toca uma espécie de “baixolão” com uma ressonância ridícula e que não afina adequadamente. 
 
E o tecladista, Herschell Tambor Brillstien, sem apelido (interpretado por Jonathan Korty), é o membro mais esotérico do grupo. Ele a fazer Hatha Yoga, cantarolar mantras e entrar em estado meditativo em ambientes e situações inusitadas, é hilário. 
E finalmente, para apresentar os protagonistas, a figura do baterista, Lapland Miclovich, apelidado como “Lapdog”, é interpretado por Les Claypool. Figura exótica, é o “professor Pardal” da banda, a criar artefatos esquisitos e até com teor erótico para fumar-se maconha. Les Claypool é o baixista e vocalista da banda, Primus, na vida real e foi o idealizador do documentário e o seu próprio diretor, ou seja, o mentor dessa loucura toda.
 
Nos shows, a banda toca longas versões bem ao estilo de uma Jam-Band e é hilária a cena em que finalmente dão fim à uma canção, mas o seu final é prolongado às raias do exagero. A banda resolve gravar e os trabalhos iniciam-se dentro do padrão normal da metodologia tradicional de gravação. Ou seja, com a morosidade inicial para equalizar o som da bateria e essa particularidade que todo músico enfrenta é retratada de uma forma engraçada. 
 
O baixista chega ao estúdio com uma nova namorada que é absolutamente mal-humorada e permanece ao seu lado até em momentos inoportunos, como o ato da gravação e em discussões travadas por motivações técnicas entre os músicos e os técnicos envolvidos no processo, eis que a taciturna namorada só comunica-se com ele mediante cochichos a denotar estar a emitir opiniões descabidas. Bem, é óbvio que a alusão à figura de Yoko Ono é total.
 
E mais uma ironia, a personagem da namorada, chama-se, Mai Pang (interpretada por Gabby La La), portanto é uma referência à secretária de John Lennon, May Pang, que aliás foi sua namorada por um breve período entre 1973 e 1974, quando ele e Yoko estiveram separados. 
Sean Lennon e Les Claypool, membros da banda: "The Claypool Lennon Delirium", na vida real
 
E há por registrar-se que o diretor do filme (e intérprete do baterista, Lapland), teve uma banda na vida real com o filho de Lennon & Yoko, Sean Lennon, chamada: “The Claypool Lennon Delirium”. Há também a presença da fotógrafa loura, interpretada por Sirena Irwin e ouso dizer por dedução, é possível que tenha sido uma alusão à Linda Eastman McCartney.
 
Ainda nesse processo de gravação, os diálogos travados são hilários. E também as expressões faciais, principalmente em momentos de audição do material gravado em cada etapa, e quem for músico, haverá de lembrar-se de ter vivido tal tipo de situação, certamente. O técnico de som faz um depoimento sobre uma pintura a conter a imagem de elementais da natureza e isso dá a medida da piada sobre o apreço do Hippies ou Neo-Hippies pelo esoterismo, misticismo, ufologia & afins. 
 
As conversas entre os técnicos assistentes a divagar sobre o posicionamento de microfones para captar as peças da bateria, também são muito engraçadas, pela maneira como foi retratada, a satirizar  o delírio que geralmente observa-se  em ouvir-se opiniões supostamente gabaritadas, como se todo mundo nesse meio, fosse  expert em engenharia acústica e acredite, isso acontece muito entre técnicos de gravação.. 
 
E o delírio vai além, com o baixista a falar sobre as maravilhas da culinária vegetariana e o acidente improvável com o tecladista zen, que ao mudar o posicionamento do instrumento, corta a sua mão de uma maneira absurda. Tem também a cena do produtor a despedir o assistente de estúdio, de uma forma humilhante para o rapaz, mas com um tom de humorismo televisivo. 
Os componentes da banda brigam no estúdio. Um clássico dentro da história de todo grupo de Rock, eu diria, com raras, talvez inexistentes exceções observadas. Surge a presença de um “terapeuta” de grupo de Rock, ao estilo de um terapeuta de casais. São hilárias as cenas a mostrar as sessões de terapia, uma verdadeira “DR” (discussão da relação), bisonha. O terapeuta irrita-se em uma cena a seguir e abandona a banda, mas volta e protagoniza cenas ridículas, como por exemplo, uma em que o baterista toca um instrumento de percussão e ele dança completamente desengonçado. O cigarro de maconha que o tecladista fuma sozinho, é descomunal e lembra bem o tipo de artefato semelhante visto em filmes da dupla freak, "Cheech & Chong”.
 
Bem, o grande momento do filme ocorre quando a banda dirige-se ao festival “Festeroo”. Tal festival existe de fato, mas é bem menor do que aparenta ser no filme. O guitarrista, “Gordo” enlouquece de vez, ao achar estar a falar com o espírito de Jerry Garcia e absorto nas drogas & bebida, some da presença dos demais, ao ser encontrado muitas horas depois, desacordado e inteiramente nu, deitado em um matagal. O astral neo-hippie da plateia é bem agradável, mas a tal pluralidade do conceito psicodélico pós anos noventa, que permeia o ambiente, paira no ar, haja vista a presença da música eletrônica em ritmo de “rave”, entre as atrações. 
 
O Govt Mule, banda derivada do histórico, The Allman Brothers Band, vai tocar e os membros do Electric Apricot conversam com Wayne Haynes e Matt Abts, mas “Gordo” passa do ponto e Wayne fica confuso com as falas do guitarrista do Electric Apricot. O folclórico, "Wavy Gravy" está ali presente com a sua animação hippie habitual, para garantir a loucura generalizada e com direito a falas (desconexas, como seria por esperar-se de sua pessoa).
Chega a hora da banda subir ao palco. O show começa com um certo nervosismo, visto que “Gordo” estava atrasado e os outros três iniciaram a apresentação sem a presença do seu guitarrista, que entra no palco transtornado, a denotar estar sob o efeito da lisergia, ainda. No entanto, o som viajante da banda cativa os hippies ali presentes (apesar dos vocais desafinados em alguns momentos), incluso com muitos veteranos, certamente egressos de Woodstock. Ao final, "Gordo" está eufórico com a história de ter conversado com Jerry Garcia, em seu delírio pessoal, logicamente.
 
Sucesso e missão cumprida, a banda entra em seu motor home e parte. No caminho, uma batida policial no meio da noite, realizada em uma estrada deserta, surpreende-os. No início, o policial conversa com o motorista daquele instante, que fora o baterista, Lapdog. Uma abordagem educada, para começar, mas o tom sobe ao perceber que aquele carro está lotado por músicos doidos que não falam nada compreensível naquela altura da madrugada. 
 
Corte brusco e vê-se o policial a correr atrás do guitarrista, “Gordo” para algemá-lo de uma forma ridícula. O filme encerra com uma tarja a explicar que aquela batida fora uma armação de alguém do festival que avisara a polícia. E que o cão farejador achara a maconha escondida em uma alto-falante de uma caixa do equipamento da banda. 
 
E também acrescenta que “Gordo” criara um site para enaltecer a figura de Jerry Garcia. O documentarista que aparece ao final, mostra uma descoberta misteriosa. Em uma foto ampliada e extraída durante o festival, a figura de Jerry Garcia estava presente perto do ônibus da banda. Ora, será que “Gordo” teve razão e não foi apenas um delírio de sua parte? Uma piada boa, gerada a evocar o estilo de Rod Serling, eu diria, em termos de um mistério paranormal não explicado.
Enfim, trata-se de uma sátira divertida, com piadas a utilizar diferentes ícones da cultura Rocker, Pop e Contracultural, portanto, altamente recomendável para os apreciadores desses ícones citados.
 
Ainda a citar mais atores profissionais ou participantes especiais do filme: Jason McHugh (como Smilin’ Don Kleinfeld, como o empresário), Diam Bachar (como Skip Holmes, o técnico assistente e despedido do estúdio de gravação) e Lawrence Brooke, como o narrador da história e seu suposto documentarista, entre outros.
 
A trilha sonora, além do som do Electric Apricot, contém material do Grateful Dead, Bob Weir, Govt Mule e mais alguns artistas. 
 
Escrito e dirigido por Les Claypool, foi lançado em 2007, diretamente em um circuito de festivais alternativos. Em 2008, ganhou a sua versão em DVD. Que eu saiba, se passou em canais de TV a cabo, foi bem pouco e na Internet, está disponível para ser assistido na íntegra e gratuitamente, no YouTube, no entanto é preciso estabelecer o login, pois quem o postou alegou que é necessário ser maior de idade para poder assisti-lo, devido ao palavreado usado e certamente por conta das menções às drogas. 
 
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz: Câmera & Rock'n' Roll, em seu volume III e está disponível para a leitura a partir da página 233.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Filme: Taking Woodstock (Aconteceu em Woodstock) - Por Luiz Domingues

 

Eis aqui um filme que surpreende por trazer uma visão sobre os bastidores da realização do Festival de Woodstock, com uma certa leveza dramatúrgica; e também a conter uma certa guarida com a realidade, embora com licenças poéticas, muitas, aliás, e a respingar em boa música na trilha, embora o festival em si, seja apenas insinuado por menções rápidas, sem a intenção em mostrar o palco e os artistas que ali atuaram na realidade. Que o festival tem uma importância macro na história, não apenas do Rock, mas a revelar ser um marco da contracultura dos anos sessenta, isso é ponto pacífico. Tirante o próprio documentário oficial, que é icônico por si só, muitos outros documentários foram produzidos ao longo dos anos para repercutir o que aconteceu em Woodstock; destacar a performance dos artistas que ali apresentaram-se e debater a importância do festival no bojo do movimento Hippie etc.

No entanto, foi através dessa película lançada em 2009, ou seja, exatamente quarenta anos após o lançamento do festival, que uma visão diferente foi proporcionada aos estudiosos sobre o assunto; adeptos e simpatizantes da contracultura, além do público em geral, formado por Rockers; Hippies & Freaks, simpatizantes do festival e dos artistas que dele participaram. Com uma abordagem amena, porém a deixar nas entrelinhas muitos pontos importantes, este filme teve o respaldo do livro homônimo, escrito por Elliot Tiber, com colaboração de Tom Monte. 

Elliot foi em tese, o agente para que o festival acontecesse na localidade de Woodstock, por um golpe fortuito dos acontecimentos, ao dar a dica, para o produtor, Michael Lang que até então enfrentava dificuldades para definir um local para o Festival, e dentro dessa indefinição, arrola-se o boicote da parte de vários governantes municipais, nada simpáticos à ideia de suas respectivas cidades receberem um festival de Rock e por consequência, atrair uma infinidade de hippies a formar a sua plateia.
Bem, o livro de Elliot Tiber, intitulado: “Taking Woodstock: “A True Story of a Riot, a Concert and a Life”, foi publicado em 2007 e narra a história sobre como Elliot proporcionou à Michael Lang a ideia e mais do que isso, ao fazer a intermediação para que Michael Lang fechasse então o aluguel da fazenda de um camponês local (em White Lake), e daí em diante a história oficial é bem conhecida. Cabe no entanto, deixar claro que o próprio livro de Elliot foi contestado, inclusive por Michael Lang, em diversos pontos, ao acusá-lo em ter distorcido muitos detalhes a respeito de tais acontecimentos e enaltecido muito a sua própria pessoa, ao exagerar na porcentagem de mérito que Elliot teve nessa intermediação. Palavra contra palavra, portanto, um dia uma versão fidedigna à verdade será estabelecida e controvérsias a parte, a questão é que a base primordial da história é real e trata-se de uma trama marcada pelo improviso, e diante do que o festival tornou-se, foi como muitos Rockers supersticiosos costumam dizer: um arranjo diretamente estabelecido pelos “Deuses do Rock”. 
Ainda a falar sobre o livro, a narrativa é mais abrangente ao mostrar com maiores detalhes a trajetória pregressa do seu autor, e a dar ênfase ao seu lado militante da causa gay em Nova York, quando este fora participante dos atos que deflagraram os acontecimentos ocorridos no Stonewall Inn, e que mobilizou a comunidade gay em torno das suas reivindicações na sociedade. No filme, essa questão é obscurecida e a ênfase é dada ao retratar-se a participação dele, Elliot no desenrolar dos bastidores do festival de Woodstock, tão somente.

Portanto, ao falar sobre o roteiro deste filme, em seu início, mostra-se a pacata localidade de Bethel, uma minúscula cidade interiorana dos Estados Unidos, distante cerca de 150 km de Nova York. Em um motel decadente, vive um casal de idosos que o administra com muitas dificuldades. A senhora Sonia Teicheberg (interpretada por Imelda Staunton), tem um gênio irascível e não demonstra nenhum pudor em explorar e maltratar os pouquíssimos hóspedes que ali aventuram-se em usar as mal cuidadas instalações do local. O seu marido é um homem bem mais razoável (Jake Teishberg, interpretado por Henry Goodman), mas doente, não tem forças para enfrentar as loucuras perpetradas pela esposa, na péssima administração do estabelecimento, resignado com o fato de que a sua vida mostra-se com os dias contados. Um dos filhos do casal, Elliot Teicheberg, mais conhecido como Elliot Tiber (interpretado por Demetri Martin), mora em Nova York, mas passa os finais de semana no motel da família, chamado, “El Monaco” e ajuda a movimentar rendas extras para salvar o estabelecimento da completa ruína. 

Como ele atuava como um ativista cultural em Nova York, está acostumado a lidar com arte e artistas e por exemplo, aluga um galpão em anexo ao motel, para uma trupe de teatro poder ensaiar e também dedica-se aos acontecimentos culturais da municipalidade ao chefiar o conselho cultural formado por moradores da cidade e nesses termos, Elliot já mantinha uma certa experiência em produzir modestos festivais musicais, geralmente orientados pelo Jazz ou música erudita. No entanto, ele já não sabe o que fazer para ajudar os seus pais a quitar as dívidas bancárias e mostra-se ainda mais desanimado ao observar os desmandos da parte de sua mãe e da apatia apresentada pelo seu pai.

Um amigo de Elliot é recém egresso da guerra do Vietnã, conflito esse onde ele teve baixa por conta de ferimentos recebidos no front. Esse rapaz, Billy (interpretado por Emile Hirsch), está bastante transtornado por conta de transtornos psicológicos adquiridos por causa da guerra, ao comportar-se muitas vezes como se estivesse a reviver o pânico observado no front, em meio ao lodo das florestas vietnamitas cercadas por inimigos e com o solo minado, todavia, no decorrer do filme, descobre-se que ele finge na maior parte do tempo estar transtornado, como uma forma para exercer um puro deboche ou por conveniência mesmo, ao buscar assim angariar a comiseração local.

Eis que o noticiário da TV mescla notícias sobre a guerra do Vietnã, a corrida espacial (a nave Apolo XI de fato, pousou na Lua em 20 de julho de 1969, com o astronauta, Neil Armstrong a tornar-se o primeiro Ser humano a caminhar em tal satélite, e com tudo devidamente transmitido ao vivo para o mundo inteiro, pela TV). E também fala-se bastante sobre a preocupação das autoridades com a crescente presença dos Hippies pelas ruas da América e por conseguinte, o fomento aos festivais com bandas de Rock, a incentivar a multiplicação do fenômeno. Poucas cenas adiante, Elliot vê a notícia que o prefeito da cidade de Walkill, ali próxima, vetara a organização de um grande festival de Rock naquela localidade.
Como Elliot era presidente da Câmara do Comércio local e mediante uma assembleia com a presença dos outros membros, ele investira a quantia de um dólar, e assim ganhara a permissão para organizar mais uma vez o modesto festival local, uma ideia ocorreu-lhe: portanto, não teve dúvidas em ligar para o produtor musical, Michael Lang (interpretado por Jonathan Groff), em Nova York e deu-lhe a ideia de usar a área do seu motel para a realização do festival que Lang estava a tentar fechar em outras cidades vizinhas e ainda não conseguira firmar um contrato. 
É engraçada a cena em que a comitiva de Lang chega ao motel, El Monaco, para uma inspeção, com vários automóveis e o próprio Lang a chegar mediante o uso de um helicóptero, a assustar os pais de Elliot. Decididos, a turma da inspeção examina rapidamente o local e desanima-se, por ele ser minúsculo ante a sua projeção, fator esse que Elliot desconhecia, pois imaginara ser um festival com pequena proporção e não algo monstruoso como Lang planejava efetuar. 
No entanto, Elliot aventa outra possibilidade, quando menciona uma propriedade rural pertencente a um amigo seu, o fazendeiro, Max Yasgur (interpretado por Eugene Levy). Lang e a sua equipe (a destacar-se a sua assistente pessoal, a jovem hippie, Tisha, interpretada por Mammie Gummer), deslocam-se até a propriedade de Yasgur, e em princípio consideram-na inadequada por conta de sua topografia. Elliot força a barra e propõe um mutirão com homens a usar tratores para estabelecer uma terraplanagem, mas a ideia é rechaçada de pronto. No entanto, Yasgur, que interessou-se pelo negócio, também insiste e ao pedir uma quantia que acha muito alta, mas aos olhos dos organizadores, mostra-se ao contrário, irrisória (cinco mil dólares), faz com que Lang aceite realizar o festival ali mesmo, a despeito de algumas dificuldades de ordem estrutural, por conta dos declives ali apresentados. Nesse ínterim, Elliot rapidamente oferece o motel de sua família para ser a base da produção do festival e assim, fecha um aluguel que praticamente salvará a propriedade da família do confisco perpetrado pelo não pagamento da hipoteca ao banco local. 
Apesar dessa solução encontrada por pura sorte para solucionar o dilema da família, a mãe de Elliot fica possessa por saber que hospedará um banda formado por Hippies, todavia é engraçado, pois ela muda de ideia repentinamente quando o filho joga um pacote sobre a mesa e ela descobre em seu interior, vários maços de notas de dólares, pois Lang pagara antecipadamente pelo aluguel e em espécie. O valor não apenas resolveria a dívida bancária, mas ainda sobraria bastante.
Uma cena tipifica bem a mentalidade do cidadão norte-americano médio, ao mostrar Elliot a adentrar em uma lanchonete onde conhece todo mundo, do dono aos clientes, desde a infância e a ser hostilizado por todos. O motivo : a população tomara conhecimento que Elliot autorizara a realização do festival e ninguém ali estava feliz por saber que cerca de cinquenta mil hippies invadiriam a cidade. Ledo engano nesse projeção, pois essa cifra multiplicar-se-ia por dez, no computo geral da vida real. Um dos mais exaltados dentro da lanchonete, é Dan (interpretado por Jeffrey Dean Morgan), irmão do veterano da guerra, Billy, aquele rapaz que tornara-se um hippie cabeludo e a fingir ser um traumatizado pelo conflito.

Tisha, a secretária de Lang, deixa vazar a informação de que já estavam vendidos mais de cem mil ingressos e tal informação chegara ao fazendeiro, Yasgur. Astuto, ele pede uma nova reunião com Lang e os seus assessores e nessa nova conversação, firma ter repensado o valor do aluguel da fazenda e agora reivindicava a soma de setenta e cinco mil dólares. Bem, isso gera um desconforto óbvio, pois Lang afirma que essa soma seria suficiente para comprar definitivamente a fazenda, mas Yasgur retruca ao dizer que cem mil pessoas ali na sua propriedade a urinar, defecar e tomar banho, seria um impacto tremendo para a sua propriedade. Enfim, ambos tiveram razão em seus depoimentos, mas mesmo com essa pedida mais alta e astronômica em relação ao primeiro combinado, ainda assim tal cifra coube no orçamento do festival e o acordo foi selado, enfim.

À medida que os preparativos para o festival avançam, situações ocorrem, algumas engraçadas, até. Fiscais a serviço de órgãos governamentais e que raramente apareciam, é claro que surgem e estabelecem exigências e sem as quais, ameaçam o motel da família de Elliot, mediante multas pesadas. A população começa a hostilizar os membros da organização do festival, mas à medida que os primeiros hippies chegavam à localidade, muitos mudam de ideia ao ver os seus negócios movimentar um lucro incomum, dada a crescente demanda.

Uma observação muito interessante precisa ser feita neste ponto, pois o filme resgatou uma tradição antiga, e muito usada no documentário oficial do festival, ao usar o recurso da tela dividida em duas; três ou até quatro partes para mostrar a mesma ação simultânea sob vários ângulos ou ações diferentes. Foi uma homenagem, não tenho dúvida.
A chegada dos freaks é mostrada com uma fidedignidade muito boa no quesito da recriação de época, via direção de arte, figurinos/maquiagem/acessórios etc. Menções aos ônibus psicodélicos com freaks vindo de comunidades diversas, é total e com direito à menção ao nome de Timothy Leary. A mãe de Elliot está enlouquecida com a possibilidade em lucrar mais, e em meio à sua sanha desenfreada, ela divide o quarto em biombos para abrigar mais hóspedes, ou seja, deve ter sido a precursora do conceito do hostel. Pior ainda, cogita cobrar por fora para ceder sabonetes e toalhas aos hóspedes. 
Outra cena que parece engraçada, mas revela uma verdade que existe no mundo inteiro, eis que dois mafiosos chegam ao motel e oferecem o famoso serviço de “proteção privada”, mediante a cobrança de uma “módica” quantia de dez mil dólares mensais. O pai de Elliot, mesmo a mostrar-se debilitado pela doença que o minava, os coloca para fora aos pontapés, mas é bem sabido que não assim que lida-se com mafiosos. Eis que surge a figura de Vetty Von Wilma (interpretada por Liev Schreiber), que vem a ser um travesti, mas que trabalha como segurança. Ex-fusileiro naval e experiente em ações de segurança, embora vestida como se fosse uma mulher loura e sensual, “Vilma” é prontamente contratada por Elliot, talvez pelo fato dele ser gay e ter a certeza que se precisasse, Vilma deixaria a sua feminilidade de lado e agiria com força viril.

Uma coletiva de imprensa é convocada e Elliot é convidado a participar por ter sido a autoridade local a permitir a sua realização ali. No entanto, ele fuma maconha antes da entrevista e desacostumado com o artefato, descontrola-se e afirma uma bobagem impensada, ao anunciar que devido à procura, a organização havia decidido liberar a cobrança de ingressos. Com tal declaração a repercutir na televisão, as mais de cem mil pessoas esperadas, multiplicaram-se, ao chegar-se na casa de quinhentas mil. A pergunta que fica: foi por conta dessa falha de comunicação que o festival ganhou tal dimensão? Parece uma licença poética muito grande do filme e consequentemente do livro, que foi escrito pelo próprio Elliot real, portanto, fica também sob suspeita essa colocação.

Na praça pública da cidade, o festival prosaico que Elliot costumava organizar, acontece, com uma banda de Rock local formada por adolescentes, e muito ruim. O pessoal do grupo teatral que costumava ensaiar em um galpão ao lado do motel El Monaco, apresenta-se e em dado instante, os atores, rapazes e moças, despem-se e chocam as famílias ali presentes. Os atores, tomaram tal atitude certamente empolgados com a presença de muitos hippies na cidade. 

Eis que ouve-se os acordes da magnífica canção, “Wooden Ships” de Crosby; Stills & Nash e o festival está para começar. As estradas estão completamente congestionadas e na TV, intercaladas com cenas da guerra do Vietnã, o noticiário repercute o caos no trânsito, com milhares de jovens a tentar chegar ao festival.

Um sucessão de cenas rápidas, mostra-se significativa nos contrastes. Jovens empolgados e pessoas conservadoras a reagir com repulsa e reacionarismo, são mostradas. O festival inicia-se e o travesti/segurança, Vilma, diz à Elliot que ele deveria ir ao festival para aproveitar, nem que fosse um pouco. Elliot não é nenhum “freak”, propriamente dito, mas acata a sugestão e desloca-se até a fazenda, para assistir um pouco. 
 
Essa parte do filme é tratada quase como uma experiência onírica, ao mostrar a euforia generalizada dos freaks e a tomada de consciência de Elliot sobre a dimensão e sobretudo, a vibração emitida pela comunhão de ideais ali demonstrada. Outro mérito deste filme, muitas cenas oriundas do documentário, foram recriadas de uma forma muito sutil e bonita, certamente, mas vista por outro ângulo, que é o ponto de vista da personagem de Elliot. A bondade surpreendente de um policial que mostra-se solícito e compreensivo ao ponto de apoiar os freaks, e até exagera-se na brincadeira ao imputar-lhe a fala, quando ele afirma que está até a estranhar a sua docilidade naqueles dias e que certamente isso deveria ser atribuído ao fato que ele estava com o seu estado mental alterado devido a estar a respirar, mesmo que involuntariamente a maconha que exalava pelo ar. Fez sentido.
Mesmo as cenas que mostram o produtor, Michael Lang nos preparativos do festival a cavalgar em seus deslocamentos, são perfeitas, pois isso é visto no documentário real sobre Woodstock. E muito mais cenas, como a das freiras flagradas em meio à multidão de Hippies na estrada, que é mostrada no documentário; jovens a usar telefones públicos para falar com os pais e tranquiliza-los sobre estar “tudo bem” consigo; o senhor humilde, funcionário da limpeza a limpar banheiros químicos e declarar ter um filho a lutar no Vietnã e outro ali a apreciar o festival e que sentia orgulho de ambos, enfim, uma linda homenagem ao festival e ao seu documentário oficial.

Não é mostrado o palco, apenas vê-se alguns relances sobre ele, bem longe e ouve-se o som de Arlo Guthrie e Richie Havens. Elliot chega perto de uma Kombi psicodélica e conversa com um casal de hippies que o convida a entrar no carro, após todos ingerir doses de LSD. Ali dentro, com uma decoração que é uma tenda hippie multicolorida, o ácido faz efeito e Elliot tem alucinações louquíssimas. Ele sai da van e vê o palco do festival, muito longe dali e ele pulsa, literalmente, certamente graças ao efeito alucinógeno proporcionado pela droga, mas há o lado metafórico, pois é lógico que a vibração do festival provocara aquela comunhão a promover uma pulsação única, como se fosse de fato, um corpo só. Essa cena provoca lágrimas, pois é muito bonita a exemplificar o maior tesouro gerado por Woodstock: a sua alta vibração. O casal de hippies que compartilhou tal experiência com Elliot, foi interpretado pelos atores, Paul Dano e Kelli Garner, mas as suas personagens não tiverem os seus nomes especificados.

Elliot entra na vibração e ao encontrar-se com o seu amigo de infância, Billy, ambos entram na brincadeira de deslizar na lama gerada pela chuva intensa que caíra, junto e dezenas de freaks. De fato, os gritos e a batucada indígena a clamar pela não concretização da chuva, não houvera sensibilizado os Deuses do Rock e a chuva aconteceu e foi forte na vida real. Ouve-se o som da The Band e Country Joe McDonald, mas como sempre neste filme, a não recriar as cenas de palco com os artistas, como uma opção em tratar apenas dos bastidores do festival e servir assim fielmente ao roteiro adaptado do livro.

Elliot volta para a sua casa, ou seja o motel El Monaco e está diferente. Vilma, a travesti percebe que a experiência em ter vivido o festival, repercutira no interior do rapaz. Uma cena engraçada, Vilma coloca maconha em um bolo que prepara e os pais de Elliot ficaram enlouquecidos. Elliot os vê sob uma euforia desmesurada por conta da perda de controle total. Certamente que ele nunca vira a sua mãe em estado de alegria, pois ela sempre vivera sob um mau humor crônico. Em meio aos acordes da linda canção, “Cant Find My Way Home”, do Blind Faith, sobre o festival em si, (que fique claro, essa banda, magnífica, por sinal, não participou do evento, portanto, apenas usou-se essa música para emoldurar a cena), praticamente só mostra-se daqui em diante os hippies, que prontificaram-se a colaborar com a limpeza posterior ao seu término e um depoimento rápido de Michael Lang a dizer que agora a vida voltava à realidade, ou seja, a luta diária par ganhar-se dinheiro, o que é emblemático enquanto mensagem subliminar. E mais um dado, ele diz que já estava empenhado no próximo festival que seria realizado em um autódromo na Califórnia e que teria como maior atração, os Rolling Stones. Ou seja, mencionou-se o Festival de Altamont e que infelizmente não foi realizado com o mesmo astral de Woodstock e pelo contrário, até morte protagonizou em meio à plateia.
E o final do filme reserva espaço para a dramaturgia focar mais na questão pessoal de Elliot e sua família. O seu pai comunica-lhe que estava a morrer, desenganado pelos médicos e ainda ocorre uma grande decepção com a sua mãe, quando após ela ter adormecido, exausta após a euforia que teve por conta em ter ingerido bolo com maconha em sua composição, ela descuidara-se e deixara um compartimento secreto aberto, a revelar que escondia uma quantia absurda de dinheiro em espécie e assim, faz com que Elliot e o seu pai descubram que ela nunca pagara as prestações da hipoteca do Motel, para economizar e por consequência, nunca houvera acontecido o risco real da perda do estabelecimento por falta de dinheiro, mas por uma falcatrua de sua parte. Em suma, uma atitude nada fraternal, nada hippie, nada a ver com o espírito do festival de Woodstock. Fim do filme e em meio aos caracteres, ouve-se no som de Jefferson Airplane e Richie Havens: “Volunteers of America” e “Freedom” calam fundo no velho coração psicodélico, woodstockeano.

Para encerrar, é um filme muito bem produzido, que revela-se singelo, certamente ao mostrar o aspecto subliminar do festival, com direito à citações e bonitas homenagens. Contém uma boa direção de arte, atores talentosos, trilha sonora muito boa e agrada não apenas quem tem a exata noção da importância contracultural do festival de Woodstock, mas é capaz de agradar um público abrangente, exatamente pela sua leveza, apesar das menções às drogas e sexo livre e que certamente pode chocar em outro contexto.

Ainda a citar alguns atores: Adam Pally (a interpretar um dos coprodutores do festival, Artie Kornfeld), Dan Flogler (como Devon, o diretor da trupe de teatro), Skylar Astin (como John P. Roberts, o patrocinador do festival), Katherine Paterston (como Penny) e outros.

Roteiro de James Schamus e direção de Ang Lee. Foi lançado em agosto de 2009, alguns dias após o aniversário de quarenta anos da realização do festival.

A recepção do público foi fraca. O filme redundou em fracasso nas bilheterias das salas de cinema, infelizmente. Talvez por ter sido lançado em uma época já dominada por filmes estrondosos sobre Super-Heróis, a docilidade hippie não tenha feito sentido e deixo claro que sou fã dos heróis dos quadrinhos, sobretudo do Universo Marvel, portanto, não se trata de uma queixa de minha parte sobre tais ícones da literatura dos Comics, em si. A crítica também queixou-se e por motivos diferentes. Alguns reclamaram sobre o filme ter omitido quase que inteiramente o fato de Elliot ter sido um militante gay e sem fazer menção alguma aos acontecimentos de Stonewall, onde ele fora um dos artífices, aliás, fato ocorrido pouco tempo antes da realização de Woodstock, na vida real. 
 
De fato, no filme, há uma menção discreta, quando em meio a uma festa hippie ainda antes do festival, ele beija um rapaz, mas segundos antes, Elliot beijara uma garota, também, a denotar que estava ali em um embalo motivado pela ingestão de bebida alcoólica e não exatamente por ser um gay assumido. Outra observação é sobre a inexistência de cenas do festival em si, com a recriação dos artistas no palco. Ora, este crítico realmente não entendeu a proposta do filme. E outros reclamaram de algumas cenas a tentar recriar o clima libertário da época, por considerá-las forçadas, tolas ou até a transformar o filme em um pastiche sobre o movimento Hippie. 

Tal filme teve um sucesso relativo nas salas de cinema brasileiras, foi lançado em formato DVD/Blue Ray com direitos a extras e também com a inclusão de comentários do diretor, Ang Lee. Passou rapidamente pela cadeia da TV a cabo, mas se atingiu a TV aberta, foi muito rapidamente e não prosperou com muitas reprises. Na internet está disponível no YouTube, apenas em trechos. Para assisti-lo na íntegra, somente em versão paga. É uma taxa módica, mas ela existe, portanto a caracterizar algo nada fraternal, nada Hippie...

Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume III, e está disponibilizada para a leitura a partir da página 211.