Ken Russell,
como é bem sabido, foi o diretor mais Rocker do cinema britânico, mesmo ter sido ele em pessoa, um Rocker propriamente dito. E também ficou
marcado decisivamente por duas características, a citar-se: o seu estilo
cinematográfico absolutamente delirante, baseado no sentido de usar e abusar
dos devaneios oníricos e o seu apreço pela música em geral.
No campo da música,
o fato de eu ter mencionado que Russell tenha sido um cineasta Rocker por
excelência, não significa em essência que ele tenha tido o Rock como como uma hipótese sequer, no entanto, a minha intenção foi enfatizar a sua forma para contar uma
história cinematográfica, que nas entrelinhas, denotaria uma postura Rocker.
Russell sempre foi um entusiasta da música, o Rock incluso, no entanto, a sua
maior predileção sempre se pendeu em torno de dois pilares fundamentais: a música erudita
e a música folclórica, ou seja, a Folk Music.
O diretor de cinema britânico, Ken Russell, em cena de seu espetacular documentário: "In Search of the English Folk Song"
Como um
apaixonado pela música erudita e a nutrir um interesse pelo assunto como um
autêntico musicólogo para investigar as raízes mais longevas dessa escola
musical, Russell estudou a música Folk europeia de uma forma geral e em
específico, em relação à Inglaterra e Reino Unido como um todo, ao retroagir ao
som dos celtas, druidas e de outros povos que ali viveram no período
pré-cristão e ainda sob o domínio romano ou até antes disso.
Na primeira foto, cena do filme: "The Music Lovers" e na segunda, de "Mahler", ambos dirigidos por Ken Russell
Por amar a música
erudita, Russell trabalhou firme em transportar para as telas, a biografia de
compositores importantíssimos e foi o que ocorreu por exemplo em “The Music
Lovers”, filme lançado em 1970, a tratar da cinebiografia do extraordinário compositor
russo, Piotr Ilitch Tchaikovski. Obra espetacular por excelência, já mostrou
que Russell gostava de utilizar a farta presença das alegorias, dos delírios
oníricos simbólicos e sim, a conter muitos exageros cênicos, é bem verdade.
Pouco tempo depois, ele lançou, “Mahler”, a cinebiografia do hermético
compositor tcheco, Gustav Mahler, e esta foi ainda mais exagerada, inclusive a
enfatizar a questão judaica em conflito com o nazismo.
Cena do filme: "Tommy" com o vocalista do "The Who", Roger Daltrey, a interpretar o protagonista homônimo
Russell
mergulhou no Rock ao filmar a Ópera-Rock, “Tommy” obra do grupo britânico, The
Who e simultaneamente, decidiu filmar mais uma cinebiografia de um músico e
compositor da música erudita que muito admirava, desta feita a tratar-se do
pianista virtuose/compositor e maestro, Franz Liszt. Ao aproveitar bastante a
mesma estrutura com a qual filmara “Tommy”, Russell contou inclusive com a
presença de Roger Daltrey, o famoso vocalista do The Who, como ator
protagonista a viver o papel de Liszt. Ora, Roger era um cantor de Rock e não
um ator com técnica para tal, e a sua atuação em “Tommy” fora um risco em
termos cinematográficos e somente justificada pelo fato dele ser o cantor do
The Who e dessa forma a estar plenamente acostumado a interpretar as canções de
tal Ópera Rock nos shows regulares do The Who, desde 1969, quando esse álbum
foi lançado.
A aposta deu certo, no entanto, pois Roger mostrou desenvoltura e
atuou muito bem, muito acima inclusive do que se esperava em termos de desempenho
para um ator improvisado que não era profissional, na realidade e assim, foi
automático o voto de confiança. Porém, não foi apenas isso, visto que Russell
quis exatamente um Rocker famoso da vida real para passar a credibilidade que o
roteiro apresentou ao retratar Liszt de uma forma nada usual. Isso por que o
script que ele tinha mãos revelou-se perfeito para o seu estilo histriônico
habitual e com margem para poder exagerar ainda mais.
Qual foi a ideia? Bem, o
ponto de partida foi enfatizar um aspecto da biografia de Franz Liszt que foi
verdadeiro, sem dúvida, ao dar conta que por um fenômeno espontâneo ocorrido em
sua vida e reforçado pelo fato de que não existia o marketing do mundo
artístico em sua época e nem mesmo o conceito de Show business existia como o
conhecemos hoje em dia, durante o transcurso da primeira metade do século XIX.
Tal fenômeno deu-se no sentido que de uma forma completamente inesperada para
os padrões da época, Liszt, por mostrar-se como um pianista virtuose em sua
época, costumava atrair multidões em seus concertos e isso caracterizou a
organização de extensas turnês para dar vazão à sua fama adquirida e, como um
dado a mais e a revelar-se um fato inédito na história, há registros de que em
suas apresentações, havia histeria da parte de seus fãs, notadamente as
mulheres que o idolatravam. Na época, chegou-se a cunhar o termo “Lisztmomania”,
para comentar tal fato inusitado. Primeiramente é preciso enfatizar que no
ambiente de um recital de música clássica, ainda mais a tratar-se de uma
performance solo ao piano e reforçado também pela completa inexistência de um
equipamento de sonorização adequado para amplificar-se o som do instrumento a
atingir toda a sala de espetáculos, nessa época, o silêncio absoluto a ser
observado pela plateia fazia-se mister. Portanto, a existência de manifestações
de frenesi em seus recitais, é considerado por muitos estudiosos da história da
música, como a primeira reação a fomentar-se a figura de um ídolo Pop da música, ao atrair a atenção para
algo além da sua música em si.
Em suma,
Russell centrou os seus esforços para montar uma história a retratar Liszt em
sua época, o século XIX, sem transposição para a então atualidade do século XX,
contudo a conferir-lhe a aura de um Rock Star e nesse caso, Roger Daltrey
pareceu-lhe a escolha perfeita para o papel. Nesse aspecto, vê-se Liszt a atuar
para plateias frenéticas, formada por garotas em predomínio e com muitos
maneirismos do métier do Rock sessenta/setentista, incluso nos bastidores,
com camarins forrados por outros artistas tão famosos quanto Liszt no panorama
da música do século XIX, groupies insinuantes, aspirantes a artistas a pleitear
ajuda, empresários, seguranças truculentos e bajuladores em geral, ou seja, a parecer-se exatamente como o camarim de uma banda de Rock das décadas de sessenta e setenta no século vinte.
Retrato do verdadeiro Franz List a ilustrar a sua biografia no Wikipedia
Na vida real,
Liszt foi discreto e absolutamente comprometido com a sua música. Independente
dele ter sido um virtuose ao piano, o seu empenho foi no sentido para deixar uma marca
como compositor. Em sua vida pessoal, não há o registro oficial de que tenha
tido filhos e nem casado-se, mas ele teve pelo menos duas mulheres em sua vida,
o que denota ter havido relações afetivas, no entanto, na biografia oficial,
são arroladas como mulheres com as quais teve uma convivência, sem no entanto
configurar-se um namoro que fosse. É bem verdade que no caso da princesa,
russo-polaca, Carolyne Zu Sayn-Wittgesntein, houve uma tentativa de culminar em
casamento, mas o fato é que a nobre era casada e mesmo separada de seu marido,
precisava da aprovação do Papa para ter o seu casamento anulado e
posteriormente poder casar-se novamente. Por uma intervenção do Czar russo, uma
manobra foi feita para que documentos chegassem às mãos do Sumo Pontífice e
daí, o pedido de anulação, foi negado. Nesses termos, Liszt não casou-se e logo
a seguir, ele resolveu buscar a vida religiosa e assim tornou-se um abade.
No entanto,
no filme, Russell apresentou o seu Liszt como um Rocker excêntrico (a lembrar
Jerry Lee Lewis), e absolutamente devasso, ao manter muitas amantes, as moças
citadas em sua biografia, incluso (e toda a história do envolvimento com o Papa
foi encenada, só que de uma forma excêntrica, pode-se afirmar). Tudo isso ocorreu de uma forma bem exagerada a pintar a sua
imagem como um Casanova, portanto.
Há até o abuso absoluto nas alegorias
exibidas, vide a profusão de cenas a envolver elementos sexuais, incluso a
presença de falos por todos os lados e até gigantes em alguns casos, para
enfatizar o suposto apetite sexual desmesurado que Liszt teria. Mais delirante
ainda, mostra-se toda a construção da amizade entre ele, Liszt e o compositor
alemão, Richard Wagner, de uma forma a distorcer bastante a realidade.
De fato,
Wagner foi um protegido de Liszt, assim como houvera sido também os casos de
outros então jovens compositores tais como: Hector Berlioz, Camille
Saint-Saënz e Edvard Grieg entre outros. Entretanto, da maneira como foi
encenada no filme, Liszt aparece como um artista convencido ao extremo (pelo
menos em seu início), e em seus arroubos de estrelismo, ele destrata Richard Wagner, ao dirigir-se ao colega, então iniciante, como um jovem inconveniente que o perturba. Tanto foi assim, que na cena em que
prontifica-se para tocar uma composição de Wagner em seu recital, para
ajudá-lo, ele na verdade faz de tudo para ridicularizá-lo ao vivo, perante as
suas fãs. Ele toca o tema, "Rienzi" (um trecho da ópera, "Rienzi der lezte der
tribunen", de Richard Wagner), mas intercalado com a famosa peça infantil,
“Chopstick Waltz” (que no Brasil é conhecido como “Bife”, um prosaico exercício
usado para principiantes no aprendizado do piano), e certamente foi uma forma
para humilhar, Wagner, que deixa o teatro inteiramente indignado com a atitude da
parte de Liszt.
A namorar a
ex-esposa do Conde D’Agoult, Marie D’Agoult, é mostrada uma vida doméstica a
conter filhos, três e que Liszt não teve, na realidade. A mais velha, chamada,
Cosima, mostra-se ardilosa e demonstra claramente odiar o pai, tanto que quando
Liszt anuncia que vai viajar à Rússia, a convite da princesa, Carolyn, há uma
briga com Marie e nesse ínterim, Cosima deixa nas entrelinhas que odeia Liszt,
pelo diálogo travado e logo a seguir explicita tal sentimento ao manipular um
boneco feito à imagem de Liszt, com a clara intenção em praticar com tal brinquedo,
o ritual macabro do Vodu.
A relação de
Liszt com a princesa russa é mostrada de uma forma lisérgica, a lembrar muito
os recursos que Russell usara em profusão no filme, “Tommy” e quero crer, a
carregar ainda mais no erotismo, com mais insinuações sobre a volúpia sexual do
compositor e até a envolver um tom pesado quando insinuou-se o decepamento de
seu pênis, retratado como um membro descomunal para enfatizar a sua volúpia.
Uma vez em
Dresden, na Alemanha, Wagner está empenhado em lutar em uma revolução local,
mas Liszt está alheio ao conflito e apenas tenta compor, a ignorar as bombas e
soldados a lutar por todos os lados. Wagner pede dinheiro à Liszt para fugir do
conflito e em seguida, droga-o para vampirizá-lo, e certamente daí, a amizade entre
os dois compositores fica definitivamente rompida (trata-se da referência
histórica sobre a revolta de março de 1848, talvez o estopim mais primordial
para a formação do nazismo, muitas décadas após).
Eis que o
Papa entra em cena de uma maneira bem alternativa, digamos, e primeiro promete
ajudar o casal, mas depois nega a permissão para que eles se casem, Em seguida,
o Papa afirma que excomungará Liszt, se este não ajudá-lo. Ele deseja que Liszt
vá à Alemanha com a missão em exorcizar Wagner, que tornara-se um emissário do
Diabo. Pior ainda, Wagner tornara-se de fato um vampiro e cientista maluco ao
estilo do Dr. Frankenstein, comandava uma seita de fanáticos a promover a ideia
da supremacia racial e a revelar-se um duro golpe para Liszt, pois também seduzira
a sua filha, Cosima, que seria agora a sua esposa e colaboradora de suas ideias
abomináveis.
Liszt vai até lá e vê o castelo assombrado a conter tudo o que o
Papa alertara existir. É interessante nesse ponto, como Russell homenageou o
terror clássico ao usar clichês desse gênero a mostrar a pequena vila que cerca
o castelo com moradores a viver uma vida supostamente normal, mas ao ser
indagados por um forasteiro sobre o castelo, a mostrar-se apavorados com a
simples menção da existência do castelo, como se não morassem tão próximos e não vivessem sob o perigo iminente. Uma
vez ali dentro do castelo, Wagner o recebe bem, como um velho amigo, mas logo
Liszt nota a loucura macabra ali existente.
Surge o laboratório onde Wagner
trabalha na criação de um Ser que seria o protótipo do Super Homem germânico
perfeito, na figura do Deus Thor, da mitologia nórdica e um ícone da supremacia
ariana. Wagner apresenta-se em meio a um grupo de crianças uniformizadas como a
imitar as vestimentas do Superman dos quadrinhos da DC Comics, mas a dar a
entender ser a juventude hitlerista e delirante, hipnotizada e certamente a
citar o filósofo, Friedrich Nietzsche em torno de sua tese sobre o Super Homem,
contida no seu livro: "Also Sprach Zarathustra".
Wagner mostra-se como o próprio
Hitler, completamente obcecado pelo seu delírio em torno da supremacia ariana como
referência. Bem, o Deus Thor é revivido, mas mostra-se um perfeito idiota, mais
interessado em embebedar-se. Uma luta terrível é travada, quando a lembrar a
figura do professor Van Helsing, Liszt enfrenta Wagner, com este a representar
o Conde Drácula. Cosima usa enfim o boneco de vodu com a imagem de Liszt e o
tortura mediante agulhadas. “A Cavalgada das Valquírias” ecoa como trilha, um
clichê óbvio para associar a música de Wagner ao nazismo.
Enfim, a
luta chega ao clímax, com o castelo em ruínas, e Liszt a agonizar em meio a um
piano em chamas. O ritual nazista intensifica-se com o surgimento de Wagner,
doravante a assumir o corpo do monstro de Frankenstein, mediante a observação das
feições faciais de Adolf Hitler (devidamente trajado com o uniforme da SS e com
direito ao uso da suástica, logicamente). Ele lidera o seu exército formado por
jovens fanáticos e uniformizados como Superman e mediante uma metralhadora com
o formato de uma guitarra futurista, sai a metralhar os judeus pelas ruas e
nesse quesito, Russell não poupou e usou mesmo a referência explícita desse
suplício do holocausto.
Liszt, ao sugerir-se estar em uma espécie de vida "post-mortem" aparece a tocar harpa, apoiado com uma pequena orquestra de cordas formada
pelas mulheres que amou na vida, incluso a sua filha, Cosima, que aparece e a
mostrar-se doce, nesse ponto a história. É sugerido que estejam no céu, a viver
uma vida após a morte, mas mesmo assim, no céu de Ken Russell, as pilastras ao
estilo grego que sustentam o solo sob as nuvens, são pênis estilizados. Liszt
aparece a seguir como se estivesse a comandar uma nave espacial, que contém o
formato de um órgão de tubos e cada mulher ocupa um tubo. Essa nave toma
posição de ataque e sob um mergulho rasante, ataca a metralhar e liquidar
Wagner/Frankenstein/Hitler. Fim do nazismo, ou melhor, do filme...
Bem, trata-se
de um roteiro absolutamente delirante, descolado da verdade exposta na
biografia de Franz Liszt, mas a seguir tópicos reais para apoiar-se. Mais
delirante ainda foi a estética usada por Russell, com o filme a parecer uma
viagem proporcionada pela ingestão de um ácido lisérgico, literalmente. Nesse aspecto, é divertida a abordagem
completamente nonsense a abusar das alegorias, mas é claro que os fãs da música
erudita e sobretudo de Franz Liszt execram tal abordagem. Aliás, eu conheço
pessoas que por ser fãs do universo erudito, mas alheias à história do cinema,
assistiram os vários filmes de Ken Russell a tratar de cinebiografias de
artistas desse campo, e ficaram horrorizadas. “Mahler” e “Lisztomania”,
sobretudo, são considerados por tais pessoas, inclusive, como abominações.
Entendo tal ponto de vista, certamente, mas Ken Russell era isso aí, portanto,
uma pessoa pouco preparada para entender tal universo mais livre, realmente
tende a considerar ofensiva a proposta do diretor. Quem conhece Ken Russell, na
verdade sabe bem o quanto ele amava a música erudita, à sua maneira.
Tal filme
contém referências sutis ao filme anterior, de Russell, “Tommy”, embora em
tese, não tenha nada, absolutamente a ver com a obra do The Who. Vê-se por
exemplo, quando Liszt está a visitar o palácio da princesa Carolyn, várias
imagens com santos católicos em painéis e um deles é o retrato do guitarrista
do The Who, Pete Townshend. Ringo Starr faz o papel de um monge e
posteriormente do próprio Papa, a usar botas de cowboy e em sua estola papal,
ao invés das imagens de Jesus Cristo, santos & anjos, vê-se estrelas do
cinema dos anos vinte e trinta do século XX. Rick Wakeman, o super tecladista
do grupo orientado pelo Rock Progressivo, "Yes", além de assinar a trilha sonora e tocar brilhantemente as partes de
piano e órgão em que Liszt aparece a tocar, caracterizou o Deus do Trovão,
Thor. A sua vestimenta foi feita igual à da estilização do Super Herói da
Marvel, Thor, para reforçar o caráter Pop. Ainda bem, a cena em que atua é
rápida e ele apenas limita-se a acordar, levanta-se de uma maca, urinar em uma lareira, soltar
alguns grunhidos, beber chopp e arrota. Ou seja, como ator, não permitiu-se o
desafio de ser testado, mas pelo pouco que fez, caricato ao extremo, deu para
perceber que a sua vocação era mesmo para tocar teclados.
A trilha
sonora é magnífica, certamente, a conter vários temas mais famosos de Liszt,
alguns tocados com o rigor do arranjo original previsto em partitura e outros a
observar arranjo moderno ao sabor do Rock setentista. Em alguns momentos, o
Prog-Rock apresentado é muito bom e o tema final avança de um arranjo mais
tradicional para um R’n’B sensacional. Inclusive a conter uma linha de baixo a
chamar atenção e quando lê-se a ficha técnica do álbum que contém a trilha
sonora desse filme, fica esclarecida a questão, pois foi o genial, Jack Bruce,
quem gravou o baixo.
Temas como:
“Liebstraum” (Love’s Dream), Hungarian Rhapsody Nº 14”, “Orpheus Song”, “Hell”,
“Excelsior Song”, Funerailles”e “Piece at Last”, são escutadas e note-se que
todas as canções contém títulos alternativos em inglês para facilitar o
entendimento mediante o seu álbum com a trilha sonora, mas logicamente a tratar-se
de composições a conter títulos originais em alemão e não necessariamente
tocados na íntegra, mas apenas a observar-se um enxerto de cada obra para
adaptar-se ao padrão Pop e caber assim no disco e no filme. Há também a menção
para as canções “Master Race” e “Rape; Pillage & Clap”, também adaptações de
obras de Richard Wagner (e a seguir o mesmo raciocínio anterior).
Uma cena
engraçada a retratar bastidores, mostra o camarim de um show de Liszt, com a
presença de muitos compositores contemporâneos dele e que realmente estiveram
em seu rol de amizades, como participantes da festa, mas a revelar
subliminarmente as características de cada um. Chopin por exemplo, é mostrado
fragilizado a tossir, pois morrera precocemente na vida real, vítima da
tuberculose e a sua namorada que era um “Drag King”, chamada como, George Sand
(na realidade, chamada como: Amandine Aurore Lucile Dupin), uma escritora que
utilizava uma identidade masculina para impor-se como artista. O compositor,
Hector Berlioz, apresenta-se bem efeminado e Gioachino Rossini, o grande compositor de óperas, como um comilão
contumaz, para reforçar o estereótipo do italiano bonachão. Felix Mendelssohn é retratado como um velho, e uma piada é feita
sobre a presença de Johann Strauss II, o “Rei da valsa”, a gerar a clássica
confusão com a figura de seu pai, igualmente compositor, Johann Strauss. Eu
posso imaginar o quanto Ken Russell divertiu-se em inserir e dirigir essa cena
no filme, tamanha era a sua paixão pela música erudita.
Outra cena
muito bonita dá-se quando o tema “Liebstraum” (Love Dream), é encenado como se
fosse um vídeoclip desconectado do filme e a simular a cena de um filme de
Charles Chaplin, chamado: “The Gold Rush” (“A Busca do Ouro”), lançado em
1925, onde as personagens de Carlitos (interpretado por Charles Chaplin) e Georgia (interpretada por Gloria Hale),
atuam em uma cabana construída sob a neve. É de uma beleza comovente tal cena,
pois teve a proeza de homenagear Liszt e Chaplin, dois gênios em campos e
épocas diferentes na história da arte, simultaneamente. O fato desse belíssimo
tema composto por Liszt ter no filme uma roupagem Rock, com a melodia entoada,
mediante letra, pode chocar muitos fãs puristas do universo da música clássica,
mas se analisado sem preconceito, ficou notório conter uma beleza ímpar e a
mostrar-se perfeitamente palatável aos ouvidos mais acostumados à música Pop.
A crítica,
de uma forma até surpreendente, dada a loucura habitual perpetrada por Ken
Russell em seus filmes, não foi impiedosa. “Lisztomania” até alguns elogios
recebeu, apesar das inúmeras alegorias exageradas, distorções na história e as
muitas insinuações sobre a música de Wagner atrelar-se ao nazismo. Um crítico
chegou a dizer: “é a obra de um gênio demente”, ou seja, uma opinião ambígua.
Sobre o
elenco, como já disse, Roger Daltrey interpretou Franz Liszt e segundo consta
na história, mais relaxado após concluir a sua atuação em “Tommy”, ele não
relutou em atuar e a sua única preocupação foi em relação ao admitir não
possuir nenhum trejeito para sequer simular tocar piano. Mas Russell e
sobretudo Rick Wakeman, deram-lhe respaldo e não há em sua atuação ao fingir
tocar piano, nada que o desabone e no caso de Liszt, na vida real este fora um
virtuose, dono de uma técnica sobre-humana.
Os demais
atores foram: Sara Kestelman (como a princesa Carolyn), Paul Nicholas, (como
Richard Wagner) e este ator participara de “Tommy” e na vida real era/é
também um bom cantor, O baterista dos Beatles, Ringo Starr (como o Papa), o
tecladista do Yes, Rick Wakeman (como o Deus Thor), John Justin (como o Conde D’Agoult),
Fiona Lewis (como Marie D’Algout), Veronica Quilliman (como Cosima Wagner),
Nell Campbell (como Olga Janina), Murray Melvin (como Hector Berlioz), Andrew
Faulds (como Johann Strauss II); Keneth Colley (como Frédéric Chopin), Andy
Reilly (como Hans Von Büllow, este também um grande compositor e maestro que
foi muito amigo de Liszt na vida real), e outros atores de apoio.
As letras
escritas para adaptar-se à versão Pop de certos temas, foram escritas por
Jonathan Benson, Roger Daltrey e pelo próprio, Ken Russell. Sobre os músicos, além
de Rick Wakeman, Roger Daltrey e Jack Bruce, a banda de Rick Wakeman que o
acompanhava em sua carreira solo, fora do Yes, atuou, e tratou-se da: English
Rock Ensemble.
Foi escrito e dirigido por Ken Russell e lançado
em outubro de 1975. Por conta das muitas cenas a envolver insinuações sexuais
(logo no começo do filme, Liszt está na cama com Marie D’Algout e o ritmo da
prática sexual do casal é regido por um metrônomo, por exemplo), a exibição em
canais de TV aberta ainda ao final dos anos setenta, foi prejudicada. Demorou
para a censura afrouxar e ainda assim, o filme foi liberado para exibições às
madrugadas, somente. Foi lançado em formato VHS nos anos oitenta e muitos anos
depois, ganhou a sua versão em DVD. Na Internet, é difícil encontrar uma cópia
na íntegra, mas apenas fragmentos do filme.
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume III, com a leitura disponibilizada a partir da página 326.