Em julho de 1964, foi publicado na famosa revista semanal, "The New Yorker", um curioso conto escrito por John Cheever, denominado : "The Swimmer" ("O nadador").
Uma historieta introspectiva, quiçá dotada de elementos surrealistas, e sem muita margem para a criação cinematográfica em princípio, ficou esquecida por alguns anos, até que o diretor, Frank Perry resolveu filmá-la em 1968, para espanto de muita gente que não acreditava ser possível roteirizar um argumento aparentemente muito limitado para tal veículo.
Com a ajuda de sua esposa, Eleanor Perry, que assinou o roteiro, iniciou então as filmagens de "The Swimmer", com Burt Lancaster para atuar como protagonista.
Digo, iniciou, pois ao final da produção, quem assinou a direção foi um outro diretor, Sidney Pollack, já que Frank Perry brigou com os produtores por conta de posicionamentos criativos divergentes, durante as filmagens.
A história gira em torno de um homem de meia-idade, chamado Ned Merrill (Burt Lancaster), um publicitário aparentemente bem sucedido, com família estruturada e típico representante do "american-way-of-life". Ao que tudo indica, um homem bem comportado, pois a ação inicia-se com ele a trajar roupa de banho, e distante cerca de oito milhas de sua residência a suscitar um desconforto óbvio ao espectador mais conservador.
Essa estranheza já dá margem às primeiras interpretações metafóricas, visto não haver explicação plausível para a cena, a não ser o justificável calor do verão no estado de Connecticut. Então, o imponderável acontece, para garantir a dinâmica que permearia toda a ação, com Ned (Burt Lancaster), a resolver voltar para a sua casa, mediante a ação de mergulhos por todas as piscinas das casas de amigos seus, que estivessem pelo caminho.
Na primeira casa que visita, é recebido pelo casal, Westerhazy. Em conversa animada, fala sem rodeios que fora apaixonado por Helen Westerhazy (Diana Van Der Vlis), na juventude, mas nem ela, nem o marido, Donald Westerhazy (Tony Bickley), parecem abalar-se com tal revelação fora de propósito. E ao continuar a agir com naturalidade, perguntam sobre a esposa e as filhas de Ned, para que ao final da visita, indiquem outras piscinas de vizinhos amigos, para que ele prossiga em sua empreitada aquática.
Mas algo enigmático acontece, pois Ned sai da piscina e sem despedir-se do casal anfitrião, vai embora, a buscar a próxima piscina pelo caminho.
Na casa dos Graham, é igualmente bem recebido, por ser amigo do casal desde a adolescência. Encontra com Betty Graham (Kim Hunter - que nesse mesmo ano de 1968, protagonizaria : "The Planet of the Apes", como a chimpanzé, Dra. Zira), na piscina e logo a seguir, Howard Graham (Charles Drake) aparece para unir-se aos dois. Ned causa mais estranheza ainda, quando os Howard atendem a campainha (com a chegada dos Westerhazy), pois Ned Merrill sai do mergulho e mais uma vez parte sem despedidas.
Nesse ponto, já ficou claro três pontos desse roteiro, a conter uma abordagem psicanalítica :
1) A necessidade de Ned em realizar os mergulhos, tem o propósito de revisitar e ajustar contas com seu próprio passado;
2) A água é claramente o elemento da limpeza que Ned busca internamente e;
3) Ele sai das casas de forma abrupta por querer romper com quaisquer amarras com o seu passado.
A próxima piscina a ser visitada, causa-lhe um dissabor. Enquanto dava as braçadas na enorme piscina da mansão da família Hammar, Ned é duramente advertido pela Sra. Hammar (Cornelia Otis Skinner), uma idosa muito mal humorada. Ao indagar que era amigo de seu filho, ela retruca com veemência, ao dizer-lhe que ele não fora amigo o suficiente de seu filho, para visitá-lo no hospital. Uma acusação forte, que deixa Ned sem contra-argumentação.
Contudo, nem assim Ned parece ter desanimado em sua determinação e ainda com a tentativa em imputar remorso feita pela Sra. Hammar, a repercutir em seus tímpanos molhados pelo cloro das piscinas, chega à outra casa e encontra, Julie Ann Hooper (Janet Landgard), ex-babá de suas filhas, agora adultas, e esta agora na faixa dos vinte anos de idade.
Em sua companhia, entram na casa da família Bunker. Também fortuitamente, a ex-babá confessa que fora apaixonada por ele, no período em que cuidou de suas filhas. É óbvia a intenção confessional, mas não provoca a catarse, ao permanecer tudo apenas no campo das revelações efêmeras que não causam transformações profundas, pois são apenas fleumaticamente serenas, como a água das piscinas residenciais. Enid Bunker (Marilyn Langner) recebe os dois e ao contrário das outras casas, a residência dos Bunker, contém convidados naquele instante, e muitas dessas pessoas, são conhecidas de Ned Merrill.
Interessante observar outro elemento metafórico ao notar que essas pessoas falam e perguntam sobre a esposa e filhas de Ned, que de fato não aparecem nunca na ação do filme. Seriam arquétipos da personalidade de Ned Merrill ? Ned e Julie partem para uma nova piscina, mas no caminho desentendem-se, e Julie o deixa prosseguir sozinho. É clara a menção ao caráter fugaz das relações sociais. Pessoas entram e saem de nossas vidas o tempo todo.
Ned chega então à residência dos Hallorans. Aqui, o que causa estranheza é o fato do casal ser adepto do nudismo, mas nenhum constrangimento maior é detectado, a não ser o fato do casal, tratá-lo friamente, por conta de dívidas não saldadas por Ned. E a nudez significaria o que exatamente neste caso ? O despojamento moral num duplo sentido ? A vergonha seria não pela exposição dos corpos, mas pela falta de caráter ?
Na casa dos Gilmartins, ele encontra apenas o filho do casal, o garoto, Kevin Gilmartin Jr. (Michael Kearney). Seus pais divorciaram-se e a mãe acabara de viajar em Lua de Mel com o novo marido. A piscina está vazia, por motivo de segurança.
Piscina vazia ? Divórcio e padrasto à vista para o garoto ? Não seriam meras manifestações alegóricas do passado de Ned a atormentá-lo ? Mas ele não abate-se e ante um jogo lúdico, simula movimentos de nado com a companhia do garoto. O que vale é a ação, com ou sem água.
A próxima piscina é a de um espaço recreativo de um clube. Após o mergulho habitual, Ned envolve-se em uma bizarra confusão, ao brigar com o dono de um carrinho de cachorro-quente. A sua alegação fora a de que o carrinho pertencia-lhe e de fato, ele fora o seu dono no passado, mas por razões desconhecidas, o carrinho fora confiscado-lhe e arrematado em leilão pelo novo e legítimo dono. Sem dúvida, mais um resgate do passado.
Expulso do local e com as pessoas a formatar uma péssima impressão ao seu respeito, Ned vai à casa de Shirley Abbott (Janice Rule). Ela houvera sido sua amante anos atrás e nesse momento, trata por descarregar toda a sua frustração, ao acusá-lo de não ter tido coragem de assumir a relação, por ter medo da esposa. Diálogos ríspidos são travados dentro d'água, e Ned quase a seduz novamente, em uma das melhores cenas do filme, onde a água deixou dois sentimentos distintos sob seu balanço : amor e ódio.
Venceu o ódio, com Shirley a expulsá-lo sumariamente, enquanto destilou o seu veneno vingativo em forma de bravatas sexuais com outros homens, que alegou ter conseguido.
Cabisbaixo, a última piscina que encontra é a de um espaço público. Ali, é ainda mais hostilizado por várias pessoas. São pequenos comerciantes que cobram-lhe dívidas de pequena monta, para deixar transparecer que a sua situação financeira é muito pior do que imaginava-se. O homem com porte atlético e supostamente um publicitário bem sucedido, revelou-se na verdade um cidadão derrotado, em péssima situação financeira e atormentado pelos fantasmas do passado.
Começa uma chuva e assim, a última oportunidade de expiação pela água, leva-o ao esgotamento físico. A cena final mostra-o ao chegar a porta de sua casa, e a colocar-se quase em posição fetal, para ser banhado pela água da chuva. Um final emblemático para um filme cheio de metáforas psicanalíticas.
No Brasil, o filme recebeu o nome fantasia como : "O Enigma de uma Vida", mais uma vez a fugir completamente da proposta original. O mais correto teria sido batizá-lo pela tradução literal, ou seja, "O Nadador".
Apesar de possuir admiradores, não fez sucesso comercial algum na época de seu lançamento, e só é lembrado por cinéfilos mais antenados e colecionadores, nos dias atuais. Causou um certo frisson no entanto, durante os anos setenta, aqui no Brasil, por ser reprisado inúmeras vezes nas sessões das madrugadas promovidas pelas TV's brasileiras. Eu incluo-me no rol das pessoas que assistiram-no várias vezes nessa época, oportunidade que propiciou-me tornar-me seu fã.
Burt Lancaster foi o ator perfeito para interpretar, Ned Merrill, por ter o porte atlético, e a idade ideal do personagem. A ideia de começar o filme com autoconfiança total e encerrar aos frangalhos, certamente reforçou toda a trajetória introspectiva do personagem.
No geral, existe uma certa melancolia, reforçada pela fotografia pastel, e pela trilha sonora, deveras melancólica. Mas ao mesmo tempo, enxergo beleza nessa trajetória aquática de Ned Merrill, um homem que buscou na água, o acerto de contas com o seu passado.
Há muitos anos que não o vejo na grade da TV, mesmo dos canais a cabo, especialistas em filmes vintage. Se o leitor souber de uma exibição por aí, assista, pois vale a pena.
Ainda não assisti, me parece interessante... e tendo o seu aval deve ser bom mesmo. ótimo texto Luiz, abraço! :-)
ResponderExcluirKim, recomendo que assista, pois tenho certeza de que irá curtir.
ExcluirÉ um filme introspectivo, cheio de metáforas interessantes.
Obrigado por ler, comentar e elogiar !!
Luiz você é um ótimo contador de filmes, porque não me contou logo que a nossa ídala tava no filme??? Dra Zira eu nem lembrava....Mas a melhor parte que vc contou foi quando Ned chega ao casal adepto do nudismo e a vergonha não seria o nudismo mas a falta de caráter... é um tóin atrás do outro!!! Só não gostei da parte que as pessoas entram e saem das nossas vidas o tempo todo (mas é a verdade absoluta, nada é para sempre). Apesar de ter ficado mega agoniada assistindo esse filme deu vontade de assistir de novo porque verei com outros olhos. Afinal eu sou uma das notívagas que assisti na madrugada e também gostei da atuação do Burt Lancaster no 1900 do Bertolucci. Fora que ele foi um ator do tempo da minha mãe e foi com ela que aprendi ver filmes clássicos e PB. Como diz o nosso amigo William Kusdra vc está insuportavelmente DEZ!!!!
ResponderExcluirSil:
ResponderExcluirQue legal ouvir um baita elogio desses. Fico muito feliz por saber que curtiu a matéria e com isso lhe trouxe novo interesse pelo filme.
Sim, não poderia deixar de observar a presença da nossa Kim Hunter, eterna Dra. Zira. Não é um papel de grande destaque em The Swimmer, mas fiquei feliz quando achei na internet uma foto mostrando-a numa foto dupla, como ela mesma e caracterizada como a Zira.
Sim, curto muito a metáfora do Ned chegando na mansão do casal adepto do nudismo. Aquilo é sensacional, por desmascarar a hiprocrisia da sociedade burguesa.
Adorei a sua percepção de ser um "tóin" atrás do outro. Acho que é a proposta do conto original e consequentemente do filme.
De fato, pessoas entram e saem de nossas vidas, gostemos ou não. Eis outra metáfora.
Sim, gosto dos filmes europeus do Lancaster também. Il Gatopardo e 1900 são sensacionais.
E como sua mãe, sou fã incondicional do cinema das décadas de 10 a 70. Os PB dos anos 30, 40 e 50, são maravilhosos.
Sabe como me apaixonei por cinema ? Vendo filmes PB dessas décadas, na TV, nos anos sessenta. Eu tinha cinco anos de idade em 1965, mas já amava os filmes do Frank Capra e do John Ford, entre outros, mesmo sem ter a menor consciência disso...
Obrigado pelo elogio final. Fiquei até emocionado !
Beijo !
Puxa quem ficou emocionada com essa big resposta fui eu e to prestando muito mais atenção nas décadas de 60 e 70 graças a vc e é muito bom isso!!! Beijo
ResponderExcluirQue legal, Sil !
ExcluirEm termos de cinema, adoro as décadas anteriores, mas no cômputo geral, a "minha praia" é sessenta/setenta, pela música e estética filosófica contracultural.
Beijo e obrigado !!
E agora Luiz, como vou ver o filme? Você contou tudo... rsrs Bricadeirinha, eu já o vi e achei bem interessante. Ele mexe bem com nossas emoções. Rompe campos internos de modo peculiar. Bj
ResponderExcluirHa ha ha !!
ExcluirEu sei que cometo spoiller quando faço resenhas de filmes, mas brincadeiras à parte, faço de propósito, pois o foco da minha análise não é a surpresa do ineditismo.
Pelo contrário, gosto de lançar olhares diferentes, múltiplos se possível, que despertem o interesse do leitor pelo filme, mesmo já o tendo visto anteriormente.
Nesse caso, peço desculpas a quem não viu, mas realmente não foco na surpresa.
No caso de The Swimmer, o importante é justamente o que você observou no seu comentário, ou seja, o romper com campos internos de modo peculiar. Aliás, adorei sua frase.
Beijo, Lourdes !
Acabei de assistir a este filme e fiquei maravilhado, nunca tinha visto um filme do Burt Lancaster e acabei encontrando sua postagem nos resultados do Google, muito bom seu texto, parabéns, não tinha digerido ainda completamente as mensagens, o final é arrebatador.
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