Carlos Hugo Christensen, foi um cineasta argentino que radicou-se no Brasil ao final dos anos cinquenta e aqui montou uma bela carreira, na verdade a dar continuidade ao bom trabalho que realizara em seu país natal, anteriormente.
Em 1964, ao basear-se em um conto escrito por Aníbal Machado, eis que ele realizou para as telas de cinema, "Viagem aos Seios de Duília", um filme que capturou algo além da sensibilidade expressa no conto, ao buscar no retrato de um homem amargurado, um estrato pungente sobre a questão do tempo perdido. O homem em questão, é José Maria (interpretado por Rodolfo Mayer). Ele é um funcionário público austero e a viver os seus últimos dias na repartição federal, a um passo da aposentadoria compulsória.
Sua vida resumiu-se em cumprir as suas obrigações profissionais e manter-se modestamente, sem maiores ambições pessoais. Solteiro, vive aparentemente sob resignação em respeito de sua solidão contumaz, sem contudo que isso significasse uma misoginia assumida. Durante os anos que passaram-se, ele nutrira aqui e ali, vontade de em aproximar-se de uma mulher e ter enfim uma companheira que abrisse-lhe a oportunidade para constituir a sua própria família e possuir assim, um estilo de vida igual ao de seus colegas de repartição, todavia, algo internamente segurava-o ao passado longínquo de sua adolescência vivida em um remoto rincão do interior do país.
Uma festa é improvisada durante o seu último dia de trabalho na repartição, contudo, os seus vínculos ali construídos mostravam-se meramente formais e não houve portanto, uma grande comoção de sua parte, tampouco dos seus colegas. Durante trinta e seis anos, José Maria apenas costumava chegar; bater o ponto; trabalhar o período do seu expediente; dizer : "até amanhã" e sair, ao consumar uma rotina mecânica, entediante. Um pequeno gesto de afago moral, da parte de uma colega de trabalho, pareceu ter outro significado, todavia.
Adélia (Natália Timberg), entrega-lhe um presente de despedida, que sob um vislumbre efêmero, soa-lhe como uma espécie de abertura para uma aproximação, entretanto, fora apenas um ato de coleguismo profissional e José Maria vai para a sua casa inteiramente frustrado, mais uma vez. Sem a rotina de trabalho, José Maria entra rapidamente em uma fase a demonstrar desespero em torno de seu vazio existencial. Ficar o dia inteiro trajado com pijamas dentro de casa, trouxera-lhe a perspectiva de confrontar o enorme vazio de sua vida, agora sem subterfúgios. José Maria passa por momentos angustiantes doravante, sem a distração que o trabalho burocrático proporcionava-lhe. Agora ele é uma peça fora da engrenagem, sem utilidade alguma para o sistema e só resta-lhe esperar a morte sentado, em sua modesta residência.
Então, ele toma uma atitude mais incisiva, quando percebe que definhará, caso não lute e assim, aceita o convite de um colega para visitar um "Night-Club", que naquela época era popularmente chamado como : "inferninho". Sem nenhum traquejo para frequentar tais lugares, ele apenas atrapalha as paqueras do colega, pois nem sabe lidar com as mulheres, ainda mais ao tratar-se de mulheres muito mais jovens e assim, ele sente-se um defasado senhor fora de moda. Pois, o que fazer para dar um sentido à vida, doravante ? Foi quando mediante uma epifania, José começou a lembrar-se de um tempo onde teve um amor quase correspondido, ou pelo menos ele interpretara dessa forma.
Em suas remotas lembranças, havia uma garota por quem apaixonara-se. Ambos eram muito jovens e infelizmente as suas juras de amor que estabeleceram, esbarraram no fato concreto de que não tinham independência financeira, tampouco maturidade o suficiente para assumir uma relação estável. Porém, fora um sentimento puro, verdadeiro e muito intenso. Tão forte, que criou uma raiz, ao perdurar sob um longo hiato criado pela separação inevitável. Ele não teve outra alternativa na ocasião, ao ter que deixar a distante cidade onde vivia e nesses termos, batalhar pela sua subsistência no Rio de Janeiro.
E preocupado em manter-se, seu sonho foi esmagado pela realidade, ao embotar-se. Por ter sido obrigado a viver sob tal rotina que o limitou, envelheceu e aceitou com amargura o fato de que a tal moça, chamada, Duília, fora apenas uma paixão juvenil. Todavia, a vida passou, e José Maria nunca conseguiu relacionar-se com outra mulher ao ponto em que, agora, estava aposentado e a viver em uma casa suburbana e vazia. Eis que sob um ímpeto incomum aos seus padrões recatados, ele toma enfim a decisão de lutar pelo seu amor juvenil.
Uma imagem nunca saíra-lhe da sua mente nesses anos todos : Duília, sob um rompante ato a denotar amor e certamente a revelar-se algo impensável para o início do século XX, em uma pequenina cidade interiorana, mostrara-lhe os seios desnudos. Em seu imaginário, essa fora a vivência mais erótica de sua vida e agora ele daria tudo para resgatar esse amor.
Como estaria Duília ? Poderia estar viúva, quem sabe ? Ou até mesmo ter ficado solteira como ele e nesses termos, essa seria a oportunidade para ser feliz, enfim. Em sua mente, esse pensamento começou a ficar obsessivo. Duília e a sua beleza infanto-juvenil; as juras de amor; o contato físico pudico daquela época e a explosão erótica, ante a visão de seus seios nus. Por martelar pesadamente em sua imaginação, essa imagem forneceu-lhe o ímpeto que jamais tivera em toda a sua vida subserviente : nada o impede em ir à sua cidade natal e procurar por Duília ! Nessa parte do filme, é incrível a condução de Carlos Hugo Christensen. A viagem é retratada como uma saga épica, porque o é assim para José Maria, embora seja ao espectador, uma viagem triste; morosa e plena de dificuldades.
Nessa ambiguidade, Christensen comove-nos, pois José Maria faz um esforço inimaginável para poder chegar. Ao usar vários meios de transporte, pois não havia acesso direto para um lugar tão longe do Rio de Janeiro, José Maria pulsa junto com as adversidades, sob um rítmo que faz com que acreditemos que ele finalmente encontrou a força dentro de si. Sensacional também é a trilha sonora incidental, onde nesse percurso sofrido, o barulho do vento que sopra-lhe, parece verbalizar o nome : "Duília", literalmente.
Uma genial ideia de Christensen, que parece evocar algo fantasmagórico, talvez um "banshee" irlandês no meio da terra vermelha, em pleno interior do Brasil. Finalmente, José Maria chega à Pouso Triste, a remota cidade. Nada mudou naquele lugar, parado no tempo e no espaço. O coração pulsa cada vez mais rápido; a garganta asfixia-se, o suor umedece-lhe as têmporas... e então, o encontro acontece... José Maria encontra-se com Duília, mas o encontro é um momento constrangedor para ambos.
Foi-se o viço da juventude, mas muito pior que os sinais do tempo que ambos ostentam em seus semblantes, é a constatação de que quarenta anos constituiu a aniquilação do sentimento de outrora. Em um vislumbre da realidade, desmoronou-se a expectativa de José Maria, ao deparar-se com o fato de que aquele momento pueril vivido há quarenta anos atrás, jamais repetir-se-ia.
Vidas separadas e construídas sob outros parâmetros, tratou por fazer daquele fugaz momento sensual do passado, apenas a lembrança de uma chama, com a durabilidade efêmera semelhante a de um palito de fósforo aceso. Um diálogo formal sobre o casamento de Duília (interpretada por Licia Magna, quando mais velha), a comentar sobre filhos e netos, encerrou melancolicamente para José Maria, a sua última esperança em ser feliz. Mesmo assim, eis que sob a expectativa de um ato impensado, dá-se a entender que Duília vai ceder, mas fora apenas um ímpeto, imediatamente sufocado pelo recato.
Segue-se planos oníricos, a evocar lembranças do passado e o elo com a tormenta da realidade, tratou por nunca deixar acontecer de fato, ou seja, a consumação da paixão. Frustração... uma vida desperdiçada e irremediavelmente perdida para a melancolia atroz. A única perspectiva doravante, será a sobrevivência burocrática, até onde o fluxo da vida determinar que José Maria tome a última xícara de café de sua existência, em sua cozinha simplória e vazia. É triste, sem dúvida, mas como obra de arte é dilacerante, para arrancar das entranhas do personagem, facetas do ser humano que não gostamos, mas que existem, infelizmente.
Rodolfo Mayer era na ocasião dessa produção, um ator veterano, egresso do teatro e das radionovelas, com poucas, mas boas participações nos primórdios do cinema brasileiro, desde a década de trinta. Com o advento da TV, atuou bastante em novelas, principalmente nos anos sessenta e setenta, quando ficou mais famoso, naturalmente. Nesse filme, ele teve atuação excelente, ao elaborar com a sua bagagem, uma dramaticidade exemplar. Mesmo com um escritor do quilate de Orígenes Lessa, sendo responsável pelos diálogos (o que foi um luxo para a produção desse filme), Mayer não apoiou-se somente no bom script que tinha em mãos, tampouco na segurança de Carlos Hugo Christensen, como diretor. Mayer, na verdade, foi além e compôs o personagem, "José Maria", com uma expressão física que diz muito ao espectador da obra. É infelizmente uma obra circunscrita a um fechado mundo de fãs e talvez seja difícil para achar-se na Internet, mas já foi exibido com regularidade no Canal Brasil, anos atrás (nada contra a grade atual - 2013 - cheia de programas, mas confesso que gostava mais quando essa emissora exibia predominantemente filmes clássicos e obscuros, da cinematografia brasileira). Recomendo essa obra do grande diretor, Carlos Hugo Christensen, pois enxergo em sua constituição, uma das mais contundentes experiências do cinema brasileiro, em exprimir sentimentos viscerais.
Oi, Luiz
ResponderExcluirAssisti ao filme há muitos anos.
Que belo artigo você fez sobre o filme. É isso mesmo!
Também concordo que o Canal Brasil deveria passar mais os filmes clássicos brasileiros.
Parabéns!
Oi, Janete !
ExcluirAgradeço muito a sua leitura e participação, postando um comentário.
Muito bacana saber que apreciou o artigo. Eu considero esse filme, um dos mais impressionantes sobre a amargura humana, diante da perda de uma vida.
Verdade, entendo que a famíla Farias teve que adotar nova estratégia para o Canal Brasil se tornar sustentável, financeiramente, mas tenho saudade do tempo em que só passava filmes em sua grade.
Abraço e muito obrigado !!
Onrigada Luiz por compartilhar seus links. Esse filme deve ser apaixonante e muito triste. Fiquei curiosa para assisti-lo. Vendo as fotos e lendo a matéria, me lembrei de um filme que muito me marcou.("O VENTO LEVOU"). Acho que era esse o nome do filme.
ResponderExcluirAprendi mais um pouco do nosso cinema.
abraço!
Eu é que lhe agradeço, Bete, por estar sempre lendo e opinando.
ExcluirO filme que enfoquei, é excepcional e vale muito a pena ser visto com bastante atenção. É triste, mas traz uma mensagem forte sobre aproveitarmos cada segundo da vida, para não nos amargurarmos na velhice,com arrependimentos por termos sido omissos na juventude.
Obrigado por ler, comentar e elogiar !
Que filme lindo! Que texto maravilhoso!
ResponderExcluirFiquei muito feliz por sua manifestação de agrado ao filme e à resenha !
ExcluirVisite sempre o Blog, tenho outras resenhas de filmes brasileiros e internacionais, também.
Grande abraço !!
Acabei de assistir o filme no Canal Brasil (11/03/2017). Adorei o filme, gostei também de ver. a passagem se Jose Maria por Curvelo, minha cidade natal. O que minha intriga é Pouso Triste, é um local real? e qual cidade seria hoje?
ResponderExcluirQue maravilha que o Canal Brasil promoveu mais uma recente (março de 2017), exibição desse grande filme. Ao que consta, a cidade de "Pouso Triste" é fictícia. Em pesquisa no Google, só há referências à tal cidade por conta do filme / livro e registra-se a existência uma fazenda, também com esse nome e igualmente localizada em Minas. Bacana o personagem passar por Curvelo, sua cidade natal, uma lembrança a mais em sua percepção, nessa obra.
ExcluirMuito grato por visitar-me novamente !!
Abraço !!
Filme exibido agora há pouco no Cine Brasil, sabia, claro, tratar-se de obra interessante de nossa literatura e com direção de um diretor pouco prestigiado mas competente, o C. H. Christensen. Gostei. A acrescentar ao belo comentário o quanto a história acentua a diferença comportamental em poucas décadas. Nos dias de hoje, seria impensável um desfecho no qual os personagens se sentissem tão pouco à vontade com a passagem do tempo e tão represados em seus desejos. No entanto, o comum na ocasião era exatamente o que foi mostrado, mais ainda pela influência dos costumes do interior do Brasil. Enfim, um fiel retrato do comportamento humano num certo tempo e num certo espaço. Eu também recomendo.
ResponderExcluirOlá, José Carlos !
ExcluirAntes de mais nada, estou muito feliz por sua visita e postagem de comentário em meu Blog. Sobre o filme, o comentário que você acrescentou foi ótimo. De fato, é notório o choque de diferenças comportamentais que observamos numa obra com tantas décadas de defasagem em relação a esta atualidade. Verdade absoluta, naquela época, as pessoas tendiam a envelhecer precocemente por uma série de motivos culturais que extrapolavam em muito o envelhecimento corpóreo. A atitude mental das pessoas favorecia esse tipo de marginalização, fazendo com que as pessoas em geral sentissem-se inativas precocemente, e o filme expressa isso claramente. O filme desnuda bem como a dita terceira idade era marginalizada e antecipada, privando as pessoas de uma vida social mais intensa e até da vida emotiva, sexual etc etc. De fato, um retrato de como a sociedade brasileira e em geral eu diria, enxergava a vida útil das pessoas, ou seja, muito mais curta do que hoje em dia.
Foi um prazer receber sua visita e ótimo comentário !! Volte sempre, por favor !!
Grande abraço !!