quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Filme: Walk Hard (The Dewey Cox Story) - Por Luiz Domingues

Eis aqui o caso de uma comédia que foi escrita para satirizar o Rock como um todo, mas também a esbarrar em muitos itens análogos e que de forma alguma pode melindrar alguém, visto ser uma abordagem sadia e acima de tudo, muito divertida em sua concepção. Em “Walk Hard - The Dewey Cox Story”, é traçado um paralelo muito amplo da história do Rock, com bastante ênfase também na Folk Music, na Black Music e no Pop de uma maneira geral.

A ideia central a sustentar-se como mote é a clara inspiração velada na biografia do astro Country-Rock, o polêmico, Johnny Cash. Porém, o grande mérito dessa produção foi ter abraçado inúmeras outras referências do Rock e de outras escolas paralelas e sobretudo por ter amarrado tantas ideias com o elemento do realismo fantástico, para tornar cada menção, uma piada sensacional.
Bem, a história do tal Dewey, inicia-se com um produtor a procurá-lo pelos bastidores de um show de Rock mediante grande proporção. Dá-se a entender preliminarmente que Dewey Cox é um astro da música e daí, inicia-se o flashback para que o espectador conheça a sua trajetória, desde a sua infância. O filme recua então para 1946, em uma pequena cidade interiorana norte-americana, onde Dewey vive tranquilamente na companhia de seus pais e o irmão, em uma fazenda. 
Em meio a uma vida silvestre como camponeses, os irmãos gostam de brincar com espadas e em uma luta que travam, a brincadeira sai dos limites quando Dewey corta o irmão a partir do seu tronco. Ora, a abordagem fantástica já começa aí, pois o irmão é decepado ao meio, mas continua a conversar calmamente e ainda consegue ser conduzido a um hospital onde submete-se a uma cirurgia em termos absurdos a sugerir a completa abordagem nonsense. Mas apesar dessa insinuação bizarra, o garoto vem a falecer, para constar um mínimo de realismo, digamos assim.

Dewey fica traumatizado por ter matado o irmão e perde o olfato por conta do dano psicológico adquirido. A seguir, ele toma contato com músicos negros que tocam um blues rústico e o menino demonstra um talento surpreendente para absorver a música, ao tocar e cantar blues como se fosse um veterano adepto do gênero. O filme salta para 1953, e aí já entra em cena a figura do ator, John C. Reilly, para interpretá-lo na vida adulta (Conner Rayburn, interpretou Dewey na infância).

Só que existe mais um detalhe para reforçar a estranheza, visto que Dewey é retratado como um adolescente nessa fase, mas o ator, Reilly não aparenta ser jovem o suficiente para viver o personagem nessa idade e isso só amplifica a bizarrice. Ao fazer parte de uma banda infanto-juvenil, Dewey, atua com a sua banda e o repertório é baseado em baladas tipicamente pré-Rock’n Roll, bem inspiradas no cancioneiro Pop norte-americano antigo.
Há uma passagem interessante com um confronto religioso a questionar a música como um suposto agente demoníaco, o que também retrata muito da conturbação causada pelo Rock em seus primórdios, mas claro, tudo é retratado de uma forma hilária. Dewey tem problemas com a família, também por conta de estar a empolgar-se com a música do “diabo” e tem que sair de sua casa. 
Ele consegue um emprego como faxineiro em uma boate frequentada por uma clientela eminentemente formada por pessoas negras, e em certa ocasião onde o guitarrista da banda fixa da casa, quebra o braço, ele oferece-se para substituí-lo e certamente é ironizado por ser branco e presumidamente não conseguir tocar no mesmo nível, mas ele comprova, ao vivo, que é tão bom quanto ou ainda melhor e dessa forma, assume o posto e torna-se o destaque da banda. Nessa altura dos acontecimentos, ele está casado e tem uma filha pequena, mas rapidamente a sua prole aumenta.

É então que cria o que viria a ser um grande sucesso seu, a canção, “Walk Hard”. Três judeus ortodoxos o abordam para convidá-lo a gravar. São executivos de uma gravadora. Começa então o seu sucesso. Ele agora apresenta-se em shows compartilhados com astros cinquentistas. É mostrada uma cena onde na coxia de um teatro, aguarda o show de Elvis Presley, depois de Big Bopper e Buddy Holly, para depois chegar a sua vez. Ele fica apavorado, pois não sente-se seguro o suficiente para tocar depois de três astros dessa grandeza, mas quando ele chega ao palco, canta o seu sucesso, “Walk Hard” e o público responde com grande entusiasmo.

Piadas muito engraçadas permeiam todas as cenas, logicamente e a profusão é tão grande e bem ajustada, que a previsibilidade do roteiro não tem como incomodar o espectador. Por exemplo, a intervenção do seu baterista, Sam MacPherson (interpretado pelo famoso comediante da TV norte-americana, Tim Meadows), que oferece-lhe sempre um tipo de droga popular em cada época retratada e isso faz todo o sentido não somente para a época, mas pelas reações tresloucadas que o personagem de Dewey apresenta em cada situação.

A música passa a mudar, do Rock cinquentista básico a transitar pelo Rockabilly, ele mergulha em uma fase Country-Rock e aí fica ainda mais clara a inspiração em Johnny Cash. Mas a sua personalidade amalgama-se com a personalidade de diversos outros artistas. Nesse aspecto, o personagem de Dewey Cox assemelha-se muito com a figura de Zelig, do Woody Allen. Dewey Cox é na prática, um camaleão ambulante que retrata em si, a personalidade de diversos artistas ao longo da história, ou seja, isso por si só já faz valer muito a pena assistir o filme, para identificar em cada atitude ou mesmo através das canções executadas, sobre quem está a ser mencionado. 

Uma fase Folk-Rock advém e a menção à Bob Dylan é explícita, inclusive com direito à simulação total de sua voz e sobretudo pelo teor das letras em tom de paródias a imitar e satirizar o senhor Zimmerman.

Chega-se em 1966 e vem a Era Hippie, com Dewey a aparentar estar absorvido pela contracultura, todo psicodélico e a agir sob tais parâmetros. Jerry Garcia, o guitarrista do Grateful Dead (interpretado por Adam Herschman), é seu amigo e em uma viagem à Índia, Dewey faz uma sessão de meditação transcendental com a presença dos Beatles e mediante a ingestão de uma dose de LSD, ele obtém uma alucinação sensacional em que sente-se inserido no desenho animado, “Yellow Submarine”. 

Outra cena incrível é uma clara referência à figura de Brian Wilson (baixista do Beach Boys), quando Dewey comanda uma gravação grandiosa e completamente louca, a contar com a presença de uma orquestra sinfônica, misturada a uma banda de Rock e a conter inúmeros hippies muito loucos, animais e uma mulher japonesa em pleno trabalho de parto a berrar e nesse caso, uma clara alusão à figura de Yoko Ono. Dewey está alucinado nessa fase psicodélica e aí misturou-se o Johnny Cash com Jim Morrison e mais uma série de Rock Stars alucinados e personas óbvias nos anais da história do Rock. Inclusive, para reforçar a ideia em torno da referência mais proeminente em torno de Johnny Cash, na presença de uma amante que canta, trata por deixar bem clara a inspiração em June Carter (através da personagem fictícia, Darlene, interpretada por Jenna Fischer).  

Na metade dos anos 1970, Dewey acalma-se e não foi para menos após tanta confusão com a sua esposa, por conta da presença de uma amante praticamente oficial em sua vida e em relação ao uso & abuso das drogas. Ele apresenta então um programa na TV e embarca em uma nova onda musical, a Disco Music. 
A pasteurização do seu som é visível, inclusive com o grande sucesso, “Walk Hard”, devidamente banalizado. As suas apresentações na TV são ridículas com essa roupagem, como por exemplo a cantar e patinar mediante uma coreografia constrangedora. Ele envelhece e através de um delírio, algo aliás recorrente em todo o filme, visto que ele sempre conversava com a fantasmagórica figura de seu irmão morto na infância, eis que resolve conversar com o seu pai para acertar a rusga familiar e sob um duelo com espadas, repete o ato cometido na sua infância, ao cortar o próprio pai pela metade. E logicamente, tal fato mórbido é tratado de uma forma surreal.

Mais velho, percebe que pode dar um passo diferente na carreira e lidera uma banda familiar com a presença de seus muitos filhos como componentes e assim excursiona com um ônibus a la “The Family Partridge” (“A Família Dó-Ré-Mi”) e isso é explícito, na medida em que toca-se o tema musical de abertura desse seriado, em uma menção direta na cena em questão.
Mais envelhecido ainda, já no adentrar dos anos 2000, é abordado por um rapper de origem judaica que usara o seu velho sucesso, “Walk Hard” devidamente “sampleado” para transformá-lo em um “Hip Hop” que estoura nas paradas de sucesso. Então, ele é convidado para fazer uma apresentação especial em um evento grandioso, onde será homenageado pelo conjunto da sua obra. Ele reúne a sua velha banda, onde todos são idosos igualmente, e uma piada hilária segue a tradição do personagem do baterista, Sam, quando nesse momento da vida, ele oferece-lhe uma nova droga moderna, chamada... “Viagra”, muito útil para a faixa etária que ambos ostentam.

Esse é o momento que a junção com o início do filme completa-se, pois o produtor que o procura pelos bastidores, finalmente o encontre e o conduz ao palco, junto aos companheiros de banda. Nesse show, aparecem figuras reais da música, tais como Jackson Browne, Jewel, Ghostface Killah, Eddie Vedder, Lyle Lovett e The Temptations. 
O empresário de Dewey tem um ataque cardíaco fulminante na plateia, para em seguida desprender-se do corpo e ao tornar-se um “espírito”, continuar a assistir o show junto a outros espíritos ali presentes, incluso os familiares de Dewey. Dewey Cox e a sua banda formada pelos velhos companheiros, todos idosos, apresenta-se com grande sucesso e o filme encerra-se, no entanto, mais uma piada boa ocorre, quando, morbidez a parte, anuncia-se que ele morreu três minutos após o encerramento do show, enquanto ainda agradecia as palmas provenientes do público. Bem, frames com ele a sentir a dor do infarto ainda no palco, são acrescentadas para incrementar a piada sarcástica.

Em suma, um filme com bastante humor negro, em tese, mas que por incrível que pareça, não agride os fãs da música, tampouco os artistas mencionados e pelo contrário, passa uma ideia de retrospectiva da história do Rock, desde a raiz remota do Blues, como uma homenagem, praticamente. 
A própria ideia do cartaz promocional do filme, mostra a intenção, a retratar o personagem, Dewey Cox, a simular o famoso ensaio sensual que Jim Morrison estabeleceu como um marco em sua trajetória pessoal e na carreira do The Doors, mediante a sua foto com o dorso nu e os braços abertos a evocar a figura do “Homem Vitruviano”, desenhada por Leonardo Da Vinci.

Sobre a trilha sonora do filme, as canções apresentadas são boas, escritas em sua maioria pela dupla, Dan Berne e Mike Viola. Outros compositores colaboraram em menor escala. 
No elenco, além dos já citados e dos músicos reais inclusos, destaque para: Raymond J. Barry (como Pa Cox, o pai de Dewey), Margo Martindale (como Ma Cox, a mãe de Dewey), Chris Parnell (como Theo), Mat Besser (como Dave), Chipp Hormess e Jonah Hill (ambos como Nate Cox, o irmão de Dewey, criança e mais adolescente como espírito, respectivamente), Kristen Wiig (como a esposa de Dewey, Edith Cox), Jack Black (como Paul McCartney na cena da meditação de Dewey com os Beatles), e muitos outros atores, inclusive com a participação de veteranos astros da TV, casos de Cheryl Ladd, Patrick Duffy e  Morgan Fairchild, como eles mesmos.
Foi escrito por Judd Apatow e Jake Kasdan e dirigido por Jake Kasdan. Com muito boa direção de arte, elenco recheado por comediantes tarimbados e um texto bem escrito, o filme teve uma boa recepção por parte da crítica especializada, na medida em que a mídia entendeu a proposta do filme em criar uma biografia de um astro fictício, porém, toda alinhavada por referências reais, inspiradas em diversas personalidades da história do Rock. Não teve no entanto, um grande apelo popular, com uma recepção aquém das expectativas de seus produtores, na bilheteria. Foi lançado em dezembro de 2007, aliás, uma época incomum para o lançamento de um filme, no padrão norte-americano ou europeu, em pleno inverno.

Assim que saiu de cartaz no circuito das salas de cinema, foi lançado imediatamente em versão DVD e Blue-Ray e seguiu a cadeia natural ao adentrar a TV a cabo e na TV aberta, a seguir. Não é possível assisti-lo na íntegra através do YouTube, no entanto, em portais alternativos como o OK.RU e Dailymotion, isso é facilitado.
Enfim, trata-se de uma comédia boa, quase com o poder didático para cobrir a história do Rock e da música em geral, mediante boa trilha e piadas inteligentes, encenadas por um elenco formado por comediantes experientes, portanto, vale a pena assistir.
Esta resenha foi elaborada para constar no livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" e se apresenta em seu volume II, a partir da página 215.

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