terça-feira, 15 de agosto de 2023

Filme: Nowhere Boy (O Garoto de Liverpool) - Por Luiz Domingues

Eis aqui mais um filme a retratar a biografia de John Lennon e desta feita, a centrar as suas forças no período crítico de sua adolescência e início da juventude (entre 1955 a 1960), a envolver os seus múltiplos problemas familiares e o início de suas atividades musicais, incluso a semente primordial que gerou os Beatles.
 
O primeiro aspecto a ser realçado, é que não se trata do primeiro filme a enfocar esse ponto da biografia do Lennon (e dos Beatles por extensão), no entanto, surpreende pela abordagem que buscou a profundidade nos meandros que levaram John Lennon a desenvolver a sua personalidade e por conseguinte, como um elemento decisivo a moldar muito do trabalho futuro que os Beatles construiriam. Outro aspecto, tal aprofundamento na abordagem mostrou-se rico enquanto elemento para incrementar a história e consequentemente, a dramaturgia, portanto, o filme revela-se interessante por ter ganho tal substância dramática. 
Como expressão da verdade, no entanto, certamente que é preciso guardar muitas ressalvas, pois as inevitáveis licenças poéticas foram usadas para dar uma melhor fluidez cinematográfica, o que é uma fórmula do cinema e em via de regra, nenhuma cinebiografia (de qualquer personalidade, aliás, não apenas sobre astros da música), é 100 % fidedigna e nem mesmo comprometida com a necessidade de retratar a verdade, inteiramente. E nem sempre é por uma questão maledicente, mas simplesmente por conta do roteirista e/ou diretor (produtores e editores também influem), considerar que algumas modificações na narrativa são mais convenientes ao bom andamento do filme. Isso sem contar os vetos da parte de um escritor (e a maioria das cinebiografias ou “biopic” como falam os norte-americanos, são baseadas em livros biográficos), que publicou certas nuances, mas considera que determinados detalhes são irrelevantes para ser mencionadas em um filme que tende a condensar a obra, ou mesmo do próprio biografado (se ainda estiver vivo e a usufruir de sua plena faculdade mental, naturalmente) e/ou da parte dos seus familiares que desejam evitar certas revelações que possam denegrir o biografado.
Posto isso, este filme, além de realçar a questão da mãe de Lennon, Julia, também mergulhou fundo na relação dele, John Lennon, com os seus tios, responsáveis pela sua criação, como se fosse um filho deles e a sua reaproximação com a sua mãe de fato, na adolescência. 
 
Essa é a parte mais interessante desta dramaturgia, pois mostra aspectos que foram apenas mencionados levemente em outros filmes análogos ou nem mesmo citados. Por exemplo, a relação de Lennon com o seu tio, George Smith (interpretado por David Threlfall), que em outros filmes não é nem esboçada, pois este falecera com John ainda a possuir apenas quatorze anos de idade, nesta película tem um bom espaço, ao mostrar o quanto o tio George supriu parcialmente a figura paterna que o pai verdadeiro e ausente desde sempre, deixou de cumprir. 
Com a morte do tio, veio à tona a necessidade da sua tia, Mary Elizabeth “Mimi” Smith (interpretada pela boa atriz britânica, Kristin Scott Thomas), revelar a verdade sobre John não ter sido criado pelos pais, mas por ela e o seu marido. A licença poética fez com que essa conversa surgisse no cemitério, ainda a sofrer a perda do tio, para dar o devido efeito melodramático ao filme, ao configurar-se como um clichê, mas tudo bem, tal recurso piegas é suportável para o espectador.
Então, John Lennon (interpretado por Aaron Johnson), revolta-se com a história da rejeição. A sua mãe, Julia Lennon (interpretada por Anne-Marie Duff), alegara não ter condições de criar o filho, por ser muito jovem na ocasião e sobretudo pelo fato do pai da criança, Freddie Lennon (interpretado por Colin Tierney), não ter preocupado-se com o seu nascimento, em princípio. Quando John atingiu cerca de quatro anos de idade, houve uma súbita reaproximação de seu pai, mas este propôs levar o menino para morar consigo, na Nova Zelândia e obviamente que Julia recusou a ideia. Lennon, por sua vez, escolheu ficar com a mãe, mesmo a opinar com uma idade onde o discernimento fora inexistente de sua parte, é claro. Bem, daí em diante, Julia alegou não poder cuidar do menino e o deixou para ser criado pela sua irmã mais velha, Mimi e pelo cunhado, George.
Revoltado com essa constatação, Lennon deseja uma reaproximação com a mãe, Julia, e a procura. Ela vive com outro homem e tem duas filhas pequenas, meias-irmãs que Lennon mal sabia que possuía. É preciso abrir um parêntese aqui, para ressaltar que este filme baseou o seu roteiro em um livro escrito por Julia Baird (interpretada pela então atriz mirim, Angélica Jopling), que vem a ser uma das meias-irmãs de Lennon. Isso explica certamente a abordagem a dar a devida importância a uma narrativa que em outros filmes é obscurecida ou simplesmente ignorada, sobre a pessoa de Julia Lennon e ainda mais sobre as duas filhas que ela teve com outro homem e que são meias-irmãs de John.
E dentro dessa perspectiva diferente, é mostrado que Julia não criara John por falta de recursos, e que agora, melhor estabelecida, a viver com um homem e ter duas filhas, deseja restabelecer um convívio com ele. Em algum momento do filme, John chega a morar com Julia (e a sua segunda família), e dessa forma, uma parte interessante é abordada com maior atenção, ao tratar-se de uma importante nuance da sua biografia: foi Julia que o ensinou a tocar banjo, e que abriu o caminho, posteriormente para ele dominar o violão e partir para a guitarra. 
 
Tal detalhe é mencionado em todas as biografias publicadas e cinebiografias em paralelo a este filme, porém, sempre de uma forma apressada e às vezes até subliminar. Todavia, neste filme tal nuance é mostrada em várias cenas, inclusive em uma delas que chama a atenção ao acelerar a imagem de Julia e John a praticar aos instrumentos, para sugerir a passagem de alguns dias, quiçá, semanas ali sugeridas e demonstrar assim o quanto ele evoluiu rapidamente para tornar-se um músico. 
E sobre Julia em si, é interessante o enfoque a mostrar que ela possuía uma atitude libertária de certa forma, embora fique explícito que a pender para a um certo exagero histriônico, por ser jovem ainda e nesse ponto, porta-se muito mais como se fosse uma irmã mais velha, do que mãe de John. 
Na biografia oficial, insinua-se que esse tal espírito livre de Julia fora na verdade uma marca a apontar para uma outra faceta mais pesada, digamos, mas aqui, baseado no que a sua filha escreveu no livro, e  que deu origem ao filme (o livro de Julia Baird chama-se: “Imagine This: Grow up With My Brother, John Lennon”), ela foi retratada como alguém que gostava de aproveitar a vida livremente, sem precisar arcar com as responsabilidades da vida adulta. Tudo bem, não vou contestar a visão da irmã de Lennon sobre a sua própria mãe.
Situações protagonizadas pela conturbada vida escolar de John, são mostradas. Pequenas estripulias cometidas com os seus amigos bagunceiros; repreensão da parte dos professores e do diretor da escola, pelo fato de John manter consigo material pornográfico em meio ao seu material escolar etc. 
 
Mostra-se também a parte que mais importa aos fãs, que é o início primordial da formação do grupo: “The Quarrymen”, um rústico combo semiacústico a tentar reproduzir o Rock’n’ Roll norte-americano que os enlouquecia e mais a parecer-se com um grupo de “skiffle” (que foi um ritmo derivado do Rock, e mais rústico, muito praticado na Inglaterra, naquela época). 
Eis que um amigo de escola apresenta Paul McCartney à John, em meio a um ensaio do grupo que este pretendia montar. Lennon trata McCartney com bastante desconfiança e arrogância, inicialmente, mas rende-se à evidência que o garoto franzino e canhoto, tocava bem, aliás, bem melhor do que ele e também tinha um ótimo dote vocal. É bem verdade que a reprodução de uma passagem importante da biografia dos Beatles, quando essa banda preliminar apresentou-se pela primeira vez em uma feira de parque ao ar livre, em Liverpool, ficou perfeita, tendo em vista que não existe nenhuma filmagem, e apenas uma foto guardada dessa ocasião em que Lennon; McCartney e Harrison, na companhia de outros garotos não destacados, nem sonhavam em ser músicos profissionais, quanto mais famosos mundialmente. 
Mérito do filme, tal reprodução foi bastante caprichada, tendo em vista as parcas referências que a produção dispunha para poder compor a cena com tal fidedignidade.
 
Nesse ínterim, a Tia Mimi, que era austera e muito diferente de sua irmã, Julia, imbuída de sua autoridade moral por ter de fato criado o seu sobrinho, John, quis retomar as rédeas sobre a formação do rapaz e através de uma atitude dura, some com o violão do rapaz, para tentar sabotar a sua investida na música.
Uma cena bastante emblemática, porém claramente forçada para realçar a dramaticidade, mostra John embriagado a tentar entrar no "Cavern Club" e os seguranças da casa, não permitir isso. Bem, nem preciso explicar, eu creio, o que essa casa noturna localizada na cidade de Liverpool, representou para a carreira dos Beatles, não é? 
 
Emocionalmente transtornado, ele naturalmente ficara enlouquecido com a atitude de sua tia e sem recursos, procura a sua mãe, Julia, para pedir-lhe o dinheiro necessário para que ele pudesse resgatar o instrumento em uma loja de penhores. Ele resgata o violão e afronta a sua tia com bastante arrogância. Tia Mimi arrepende-se e compra uma guitarra de segunda mão para John, a seguir.
Mimi e Julia reconciliam-se e a vida esboçou ficar ótima para John, no âmbito familiar, mas uma tragédia aconteceu, quando Julia foi atropelada em uma rua de Liverpool. John ficou muito traumatizado com tal perda que para ele fora mais uma, entre outras tantas, na verdade. No velório de Julia, os amigos da banda vão prestar apoio, e John, muito revoltado, hostiliza-os, inclusive a agredir fisicamente, Paul McCartney (interpretado por Thomas Brodie-Sangster). Quando o filme foi lançado, McCartney declarou que isso nunca ocorreu na realidade, porém, considerou engraçado assistir um ator a interpretá-lo e ser socado. Mais uma licença poética forçada, mas ainda bem, Paul levou tal mentira no bom humor.
O então padrasto de John, entrega-lhe uma carta escrita por Julia, algo que eu não posso afirmar ter sido um fato verídico ou mais uma licença poética. The Quarrymen grava uma demo tape rudimentar e uma passagem de tempo já mostra John um pouco mais amadurecido e a comunicar que vai viajar para Hamburgo, na Alemanha, com a banda, agora a chamar-se: “The Beatles”, totalmente eletrificada, para cumprir uma temporada sob contrato. Ouve-se a canção, “Mother”, que Lennon lançaria em carreira solo em 1970, no background. Finito...
Filme bem produzido, tem essa qualidade de ter mostrado diversas nuances da adolescência de John, pouco ou jamais abordadas, tanto em filmes, quanto documentários. 
 
A parte musical é boa, igualmente. Existe no filme, o som do The Quarrymen, reproduzido por uma banda chamada: “Johnson and The Nowhere Boys”. 
 
A inclusão do áudio original da canção, “Mother”, foi importante para pontuar a intenção de se mostrar a relação de Lennon com a sua mãe (e esta canção diz tudo, literalmente). Tal cessão foi uma gentileza de Yoko Ono por tê-la liberado, visto que a questão dos direitos autorais/fonograma e edição, é sempre muito complicada. Penso que essa restrição é tão mesquinha que deveria ser abolida, ao menos em questões como essa, ou seja. ao alimentar o áudio de um filme que enaltece a personalidade do próprio artista. 
E outro mérito, na trilha sonora, a participação de grandes astros cinquentistas, revela-se sensacional. Elvis Presley, Chuck Berry, Gene Vincent, Eddie Cochran, Screamin’ Jay Hawkins, Big Mama Thornton, Bill Halley and His Comets, Jerry Lee Lewis, Buddy Holy, Little Richard, Fats Domino e tantos outros, enfim, uma seleção ao padrão de um “Dream Team”.
 
A atriz, Kristin Scott Thomas, teve um atuação muito boa ao interpretar a Tia Mimi. É um verniz a mais para qualificar o filme. Outros atores não citados anteriormente: Sam Bell (como George Harrison), Josh Botton (como Pete Shotton) e outros.
 
Citei o livro de Julia Baird, meia-irmã de John Lennon como inspiração básica para a composição deste filme, mas na prática isso não recebeu crédito oficial. Para todos os efeitos, teria sido uma livre criação de Matt Greenhalgh, através de seu roteiro. 
 
Foi dirigido por Sam-Taylor Wood, uma estreante na ocasião, mas que foi muito bem em sua primeira investida cinematográfica. Sam ficaria muito famosa anos depois, por dirigir o filme que transformou-se em um mega sucesso com teor erótico: “Fifty Shades of Grey” (“Cinquenta Tons de Cinza”).
O filme recebeu prêmios no âmbito britânico, fez um bom sucesso na bilheteria, passou com um certo alarde nos canais da TV a cabo e é benquisto entre os fãs dos Beatles e de John Lennon em específico. Está disponível em cópia DVD e para assistir-se na Internet, encontra-se disponível na íntegra, apenas no portal, Vimeo.
 
Esta resenha faz parte do livro "Luz, Câmera & Rock'n' Roll", através do seu volume II, a partir da página 310.

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