domingo, 30 de julho de 2023

Filme: Expresso Bongo - Por Luiz Domingues

Elvis Presley entrara para a indústria do cinema ainda no início de seu auge como cantor e as suas sistemáticas aparições em filmes, em paralelo à carreira musical, tratou por amplificar a sua fama. Espetacular estratégia concebida sob o ponto de vista do marketing, inspirou certamente imitações ao redor do mundo, com cantores populares, desde que razoavelmente bem apessoados, a protagonizar filmes e nessa premissa, pouco importou se tais cantores improvisados como atores, detivessem uma mínima condição para a dramaturgia. Em alguns casos, conter tal credibilidade foi possível, caso do próprio Elvis, que atuou relutantemente como ator no início, mas melhorou com a prática e se não pode ser considerado um bom ator, na acepção do termo, ao menos não portou-se de uma forma constrangedora como muitos outros cantores que seguiram a cartilha apenas para tentar buscar em seu vácuo, um resultado semelhante em termos de popularidade alavancada, para poder vender mais discos e construir assim uma agenda bem preenchida com shows.
Foi o caso de Cliff Richard, igualmente. Cantor Pop britânico surgido na cena artística ao final dos anos cinquenta, ele foi lançado como ator igualmente ao protagonizar uma série de filmes e certamente a seguir a fórmula, ipsis litteris, que Elvis adotara na América do Norte, este com a devida mão pesada de seu empresário, o obstinado “Colonel” Tom Parker. 
 
No caso de Cliff, os seus dotes vocais não eram tão bons quanto os de Elvis, e nem mesmo a sua aparência haveria por credenciá-lo a aspirar tornar-se um galã, na mesma proporção naturalmente, porém mesmo assim, ele foi orientado a seguir tal estratégia e bem produzido, tornou-se um produto palatável a ser apresentado ao grande público e a produzir os seus efeitos desejados, com a popularização do artista em si, e a angariar um forte fã-clube adolescente e predominantemente feminino. Então, Cliff Richard foi um embuste total ? Não, absolutamente. Tanto que a sua carreira foi bem além dos filmes e do repertório mais adocicado de seu início de trajetória e já no avançar dos anos sessenta, Cliff foi bem mais substancial como artista musical.
Bem, “Expresso Bongo”, lançado em 1961 (Cliff já havia atuado em “Serious Charge”, anteriormente em 1959), mostra uma história bem alinhavada pelo fato de tal roteiro ter sido encenado anteriormente como um musical no teatro. Amparada por tal experiência pregressa coroada por um sucesso expressivo, chegou com força nas telas de cinema e de fato, foi bastante elogiado à época. A história é simples, mas tem um mérito até surpreendente em face do caráter popular que a obra certamente ostenta: mostrar, ainda que bem timidamente, as manobras que ocorrem nos bastidores da indústria fonográfica e no show business para construir (ou destruir, conforme os interesses em pauta), a carreira de um artista.
Dessa forma, Cliff Richard interpreta um cantor em ascensão, chamado: Bert Rudge. Ele atua em pequenos shows, acompanhado da espetacular banda britânica, “The Shadows”, o que aliás ocorria na vida real. Então o cantor é abordado por um rapaz que apresenta-se como um empresário, denominado: Johnny Jackson (que foi interpretado pelo bom ator lituano, mas criado na África do Sul e britânico por extensão, Laurence Harvey). 
Johnny propõe um tipo de contrato bastante capcioso, no entanto, como Bert não tem uma melhor opção em vista, aceita o gerenciamento de Johnny. Como uma primeira medida, Johnny já interfere diretamente na imagem do artista, ao propor-lhe a mudança de nome artístico. Doravante, Bert passa a apresentar-se como “Bongo Herbert”, por ser mais sonoro, como alegou o seu empresário. 
Concomitantemente, o filme aborda a vida pessoal de Johnny, que namora uma atriz burlesca, que na verdade é uma stipper. Trata-se de Maisie King (interpretada por Sylvia Syms). A moça quer evoluir e ser lavada a sério como atriz e cantora e Johnny enxerga em Bongo, a oportunidade para ganhara dinheiro e assim poder atender as reivindicações de sua namorada. Torna-se muito interessante a inclusão dessa personagem, pois muitas cenas são ambientadas em tal cabaré onde atua e nesse caso, é muito surpreendente o teor de tais cenas, visto que são exibidas sketchs do espetáculo onde ala atua com muitas colegas e ali, o aspecto do Teatro Vaudeville bem ousado, é mostrado sem parcimônia e cabe uma reflexão. 
É impressionante o teor das cenas e que são várias, aliás, a mostrar mulheres jovens, belas e praticamente seminuas a usar um estilo de lingerie minúscula e sexy, a protagonizar piadas sob alto teor erótico e até em alguns casos a insinuar práticas sexuais bizarras a envolver o conceito do sadomasoquismo, ou seja, algo impressionante para um filme comercial; produção britânica e em 1961! 
Tal fato chamou muito a atenção da imprensa e da opinião pública por conseguinte, mas por incrível que pareça, apesar da estupefação, não gerou protestos ou sugestão de boicote à obra, o que seria uma reação normal da sociedade conservadora da época, ainda mais no Reino Unido.
Outro aspecto: por ser derivado de um musical teatral, é claro que a música tem o seu protagonismo. E nesses termos, as canções que são apresentadas, tem o aspecto orquestral, na maior parte do tempo. São boas canções, não resta dúvida, todavia, é preciso alertar ao leitor, que a roupagem é bem antiquada, até para os padrões da época. O personagem de Bongo Herbert, in natura a apresentar-se com o The Shadows, soa muito mais Rocker, principalmente pelo amparo excelente da banda, mas o empresário trata por moldá-lo como uma cantor Pop bem pasteurizado, para agradar uma faixa etária mais envelhecida e assim aparar as arestas Rockers que poderiam chocar as pessoas conservadoras sentadas na sala de estar dos Lares britânicos para assistir em família, as atrações da BBC, após o jantar.
Johnny, apesar de ser um canalha contumaz, tem o mérito de ser impetuoso. Mesmo ao levarmos em consideração que no fundo ele só quer usar Bongo Herbert como um produto a ser explorado e cujo bagaço será descartado a seguir. Nessas condições, o fato é que ele vai com tudo para cima de uma gravadora a fim de levar o seu artista para fazer parte do elenco. Mayer (interpretado pelo ator britânico, Meier Tzelniker), é o maioral da gravadora e não aceita rapidamente a pressão de Johnny a oferecer o seu artista, Bongo Herbert, para fazer parte do elenco da companhia. Ele até vai assistir o artista em ação, sob um convite de Johnny, mas idoso e bem conservador, não comove-se ao ver a reação dos jovens entusiasmados com a performance de Bongo e a sua banda, que aliás, é um dos pontos altos do filme, pois o The Shadows era de fato, sensacional.
Mayer, é obcecado por uma cantora norte-americana e que viria à Inglaterra em breve para shows, sob a sua promoção. Johnny é astuto e rapidamente arma uma situação inusitada a forçar tal cantora a citar o seu protegido, Bongo, como um exemplo de artista jovem e promissor e mais que isso, Johnny usa a sua própria artimanha para alavancar a presença de Bongo no show da cantora norte-americana, Dixie Collins (interpretada por Yolande Donlan). Isso ocorre de fato, apesar do ceticismo do executivo, Mayer, em relação ao bom desempenho de Bongo em um show dessa magnitude, mas isso logra êxito. É sugerido que Bongo cante uma balada bastante ingênua, com alto teor religioso para agradar uma plateia tão conservadora. E foi o que aconteceu, com Bongo a apresentar-se bem engomado para cumprir tal tarefa a contento. Até um coral com meninos vestidos como coroinhas de igreja, aparece em cena para dar suporte ao cantor jovem.
Dixie é uma mulher de meia idade e bastante afetada por sentir-se uma estrela com mentalidade hollywoodiana, contudo, apesar de sentir um pouco de inveja da juventude e sobretudo por intuir que o rapaz vai alcançar o sucesso entre os jovens, inevitavelmente, o apresentou com bastante galhardia em cena e não o trata mal no camarim, no pós show. Aliás, a verdadeira motivação foi que ela interessou-se pelo rapaz e assim que ocorre uma deixa, Dixie o convida para um drink, no pós show, em seu quarto de hotel. Bongo, muito tímido e respeitoso, alega que precisa dar assistência à sua mãe. De fato, no início do filme, algumas cenas mostram que Bongo era oriundo de uma família simples e estava a ser pressionado pela sua mãe para arrumar um emprego mais formal e não sonhar com a música. Nesse preâmbulo, o empresário, Johnny, interviera na situação familiar de Bongo, no sentido de manter o jovem cantor sem a pressão que o atrapalharia, em tese.
Bem rapidamente, Dixie seduz Bongo, que cede aos encantos da bela dama balzaquiana. No entanto, Dixie não é inescrupulosa e pelo contrário, mais que o interesse sexual que nutre pelo rapaz, ela deseja realmente ajudar Bongo a ascender na carreira e assim, torna-se um desafeto de Johnny Jackson. Alguns fatos ocorrem para justificar tal conflito e isso culmina em um ardil que Dixie usa para Bongo rescindir o seu contrato com Johnny e assim ficar livre para buscar melhores oportunidades de gerenciamento de carreira, certamente amparado pela cantora madura, que planeja levá-lo aos Estados Unidos. Johnny absorve a derrota e sem meios para lutar contra, faz as malas com a namorada e vai embora de Londres para um futuro incerto. E fim de filme, aliás...
Cabe acrescentar que a fotografia em preto e branco, é muito bonita, a oferecer uma matiz com brilho intenso. A música é de ótima qualidade, mesmo nos números musicais com vestimenta mais antiquada. É também digno de nota que muitas cenas foram filmadas em locação de rua, portanto é muito interessante ver as ruas do bairro londrino do Soho, em 1959, a borbulhar de vida, com casas de shows e comércio intenso, através de cenas noturnas, e a apresentar uma diversidade muito grande de sotaques, inclusive estrangeiros. Outro ponto que é muito interessante, mesmo ao tratar-se de um musical, este não segue a fórmula norte-americana a conduzir um filme desse gênero, visto que os diálogos normais são maioria no roteiro e as partes cantadas, mínimas. Em um regular musical norte-americano, costumava ser o contrário, com os personagens a trocar poucas palavras normalmente e a cantar o tempo todo para estabelecer a conversação, mas aqui nessa produção britânica, tal recurso foi usado com muita parcimônia.
Outros atores que participaram e não foram citados anteriormente: Ambrosine Phillpotts (como Lady Rosemary), Eric Pohlmann (como Leon); Hermione Baddley (como Penelope), Reginald Beckwith (como o reverendo Tobias Craven), além da presença de um ator que interpretou a si mesmo, caso de Gilbert Harding, pois este foi também um famoso jornalista/radialista e apresentador de programa na TV, portanto, muito atuou no meio musical inglês.
Foi escrito por Julian Mankowitz e Julian More. A música ficou a cargo de Robert Farnon e a coreografia sensual das meninas do cabaré, foi assinada por Kenneth MacMillan. Val Guest dirigiu este filme e cabe dizer que tal diretor britânico já mostrava-se muito experiente quando dirigiu esta obra. Diretor eclético, acumulou gêneros os mais diversos em sua filmografia, do terror ao Sci-Fi, a passar por filmes de aventuras, romances; policiais e tramas a envolver espionagem geopolítica. Foi o diretor de “The Quatermass X-periment”, um clássico do cinema Sci-Fi nos anos cinquenta, “Cassino Royale”, “The Day The Earth Caught Fire” e “When Dinosaurs Ruled The World”, nos anos 1960, e muitos outros.
Bem, “Expresso Bongo” fez sucesso nas telas de cinema, principalmente no Reino Unido. Cliff Richard estava apenas a começar subir na carreira musical e ainda atuaria como ator em mais alguns filmes e encontra-se na ativa até os dias atuais e diga-se de passagem, com muita atividade. The Shadows entrou para a história como uma das principais bandas instrumentais da chamada vertente da Surf Music, uma variante do Rock’n’Roll primordial cinquentista.
O ator, Laurence Harvey seguiu a sua carreira com brilhantismo a filmar filmes muito importantes também no cinema norteamericano (“The Manchurian Candidate”; “Dial Butterfly-8”; “Room at The Top” e ”The Alamo” entre muitos outros), até falecer precocemente em 1973. 
 
A atriz, Yolande Donlan era norte-americana de nascença, mas trabalhou no cinema britânico a maior parte de sua carreira e deixou-nos em 2014. E quanto à  Sylvia Syms, ainda está viva em 2019, ainda bem, e segundo apurei, na ativa, a trabalhar em especiais da TV britânica.
O filme motivou o lançamento de um EP na época, com a sua trilha sonora e passou na TV sob muitas reprises nos anos sessenta. Com o advento da TV a cabo, passou em canais orientados a exibir filmes vintage ou pelo aspecto musical e também em eventuais pacotes temáticos a retratar a figura de Cliff Richard. Foi lançado em VHS nos anos oitenta e em DVD, está disponível nos dias atuais.Na Internet, atualmente em 2022, em termos de YouTube é difícil  achá-lo em versão integral, mas apenas sob fragmentos. Há uma cópia  no entanto no portal, UK.RU, e só não afirmar se em caráter permanente, ao considerar a questão dos direitos autorais.

Talvez alguns estudiosos não o considerem como um Rock Movie, verdadeiramente, pois no cômputo final ele só resvala no tema, mas por ter Cliff Richard como protagonista e acompanhado pelo The Shadows, acho que pode tranquilamente estar inserido nesse contexto e além do mais, quando Cliff & The Shadows atuam, os jovens vibram e a discussão acalorada entre os velhos “squares” (“quadrados”), ocorre sobre tal música ser “barulhenta”, portanto, está no espírito do Rock.

Esta resenha foi escrita para compor o livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" e está disponível para a leitura através do seu volume III, a partir da página 79

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