Filme: Tommy - Parte 2 - Por Luiz Domingues
Para falar sobre o filme em si, obviamente que chama a atenção a quantidade de cenas impactantes e a observar inúmeros significados implícitos. Por exemplo, a cena em que a mãe de Tommy, deixa-se levar por um delírio hedonista, foi uma referência ao próprio, The Who. Mediante um verdadeiro aquário composto por feijões a sair de um aparelho de TV, ela lambuza-se languidamente, a evocar o LP: "The Who Sells Out", lançado em 1967 (antes mesmo do "Tommy", portanto, na discografia do The Who), disco esse em que Roger Daltrey aparece na capa, retratado dentro de uma banheira, mergulhado em feijões.
Em outra cena, onde a mãe de Tommy, Nora Walker (interpretada por Ann Margret), quebra o espelho, a atriz norte-americana cortou-se verdadeiramente por conta da ação filmada no set. A filmagem foi interrompida e Ann foi levada às pressas para um hospital de Londres, onde teve que submeter-se a vinte e sete pontos nas mãos. E por falar em mais acidentes no set de filmagem, Roger Daltrey quase afogou-se na cena em que mergulha no mar, após a quebra do espelho. Uma equipe de mergulhadores contratados para a segurança do ator & cantor, teve trabalho para resgatá-lo.
Na cena de incêndio ocorrida no cais do porto, realmente o fogo alastrou-se e Ken Russell teve problemas com as autoridades em Southsea. E Roger Daltrey sofreu queimaduras reais, infelizmente.
Ann-Margret foi indicada ao Oscar de 1976, por esse trabalho e não venceu este prêmio, mas ganhou o "Globo de Ouro", outro prêmio importante no mundo do cinema. Jack Nicholson faz um pequeno papel, como um psiquiatra que tenta curar Tommy. Nessa sequência o método de cura usado, lembrou o "tratamento Ludovico" que fora mencionado por Stanley Kubrick, em : "A Laranja Mecânica".
Oliver Reed, interpretou o padrasto (Frank Hobbs), além de Robert Powell, também um outro ator britânico, que defendeu a personagem do pai de Tommy, Capitão Walker. Ambos os atores citados, tiveram as suas respectivas carreiras iniciadas na lendária produtora britânica, especializada em filmes de terror & ficção científica, Hammer.
Oliver Reed já era consagrado e Powell ficaria bem famoso logo a seguir (em 1977), por viver o personagem, Jesus Cristo, no filme do diretor italiano, Franco Zeffirelli, aliás, uma das melhores versões da Paixão de Cristo, de todos os tempos.
É claro, a cena da disputa entre Tommy e um campeão de Pinball (interpretado por Elton John), é espetacular. Mesmo não sendo um ator de ofício, toda a fantasia gerada na cena, combinou muito com o estilo exagerado de Elton em apresentar-se e por isso, ele desempenhou o seu papel com muita tranquilidade, em meio a uma fantasia estrambótica, não muito diferente das que ele costumava usar como figurino em seus shows nos anos setenta.
O The Who, mas sem Roger Daltrey que encenava Tommy a jogar Pinball no palco, aparece a tocar também, na cena, como se fosse a banda de apoio de Elton, que canta, logicamente, a canção, Pinball Wizard".
O guitarrista, Eric Clapton e o vocalista, Arthur Brown, aparecem na cena onde Tommy é levado a buscar uma cura milagrosa em um a igreja, onde a Deusa a ser venerada é Marilyn Monroe e novamente, Pete Townshend e John Entwistle, guitarrista e baixista do The Who, participam.
A filha de Ken Russell, Victoria Russell, interpretou a ninfeta "Sally Simpson". O próprio, Ken Russell, aparece em uma cena onde diversos paraplégicos cadeirantes pedem ajuda ao Tommy transformado em Guru. É rápida a tomada e ele está sentado em uma cadeira de rodas e a usar um tapa-olho.
Paul Nicholas, outro ator britânico (Nicholas mantinha carreira como cantor Pop, igualmente, com relativo sucesso, aliás), que despontara nos anos setenta, fez o papel do primo sádico, de Tommy, Kevin.
No filme posterior de Ken Russell, "Lisztomania", Nicholas interpretaria o papel do compositor erudito alemão, Richard Wagner.
E o baterista do The Who, Keith Moon, interpretou um tarado tio "Ernie", que abusa do sobrinho, Tommy. Moon não era ator, mas o seu comportamento completamente enlouquecido no cotidiano, fez com ele sentisse-se bem à vontade para interpretar de uma forma perturbadora, digamos assim e convenhamos, ele já havia participado de outros filmes a interpretar lunáticos, como por exemplo, "200 Motels", que inclusive, também consta com a sua resenha disponível no arquivo deste Blog.
A mencionar a música clássica, aliás, fanático pelo universo erudito, Russell introduz rápidas referências em Tommy. Trechos subliminares de obras de compositores tais como: Mahler, Delius e Bartok, são sutilmente introduzidos ao longo da película.
Tina Turner oferece-nos um show de vocalização Soul, além da sua sensualidade quase ameaçadora que imprime à personagem da "Rainha do Ácido". Nos anais dessa produção, consta a informação que Mick Jagger, o cantor dos Rolling Stones, fora convidado anteriormente para interpretar tal personagem, mas o acerto ficara dificultado, pois ele teria exigido cantar mais que uma música e inclusive a introduzir canções de sua autoria, a quebrar a ideia do libreto do The Who e claro que isso foi vetado e assim, optou-se pela contratação de Tina Turner.
O filme foi um sucesso retumbante em termos de público. Rockers do mundo todo que idolatravam esse álbum do The Who, esperaram ansiosamente pela sua versão sob carga dramatúrgica, através do no cinema, portanto, foi um resultado mais do que previsto. A crítica, no entanto, dividiu-se. Alguns gostaram e outros reclamaram das cenas exageradamente alegóricas, ao tachar Ken Russell como um cineasta, histriônico.
De fato, trata-se de uma colagem lisérgica, praticamente um delírio. Contudo, fora absolutamente proposital e dessa forma, esperar por uma outra resolução, teria sido inadequado, creio eu, diante da profusão de imagens provocadas pela música do The Who. Nesse caso, o exagero fez-se mister e para contrariar o dito popular, "mais foi mais", como uma necessidade premente.
Algumas colocações foram até engraçadas pelo pedantismo expresso por certos críticos, como por exemplo quando um deles escreveu: "Uma pictorização decepcionante e estúpida da boa música do "The Who". Entretanto, muitos foram elogiosos a destacar-se: -"Pode ser o filme mais super produzido já realizado... é a última palavra da arte Pop".
No Brasil, o filme estreou em março de 1976. O meu primeiro contato com tal produção houvera sido ainda em 1975, quando eu tive a oportunidade de ler uma reportagem na Revista Pop, produzida pela editora Abril Cultural, a cobrir bastidores das filmagens (aliás, essa foi uma prática salutar da revista, que perpetrou tal medida com vários outros filmes interessantes dos anos setenta, ainda em fase de produção, ao despertar dessa forma, a curiosidade dos leitores e geralmente a tratar-se de produções com cunho contracultural em geral e geralmente envolvidos com o Rock, diretamente).
Em janeiro de 1976, a propaganda oficial da estreia brasileira esteve estampada na contracapa da Revista: "Rock, a História e a Glória" e daí, eis que eu iniciei a contagem regressiva para o grande dia da estreia nas telas brasileiras.
Fui então com amigos assistir pela primeira vez, no sábado inicial da exibição em São Paulo, no Cine Gazeta da Av. Paulista. Extasiados pela profusão de imagens lisérgicas e emolduradas pela música maravilhosa do The Who, ficamos ali por três sessões seguidas. Saímos entorpecidos pela experiência proposta por Ken Russell e na esquina da Av. Paulista com a Alameda Joaquim Eugênio de Lima, havia um "Flipperama" (para quem conhece São Paulo, hoje em dia ali funciona um café), com dúzias de máquinas de Pinball, disponibilizadas aos seus clientes.
Compramos fichas e totalmente cegos, surdos & mudos, após a carga lisérgica criada pelo The Who e transposta à tela por por Ken Russell, jogamos as bolinhas naquelas engenhocas e... bem, em meu caso eu não encontrei a mesma iluminação do Tommy a jogar e parei na primeira ficha perdida. Mas o impacto do filme... enfim, eis que até hoje emociona-me muito a saga do garoto cego, surdo & mudo, que encontra a sua verdade dentro de si. Tal chave é uma grande lição de vida e pouco importa se Pete Townshend e seus colegas, e nem mesmo a figura criativa e carismática de Ken Russell soubessem disso, deliberadamente. A esmo ou de forma proposital, a grande chave está ali, disponível para quem tiver olhos para enxergar; ouvidos para escutar e boca para falar. Portanto, cabe palmas para o The Who e palmas para Ken Russell!
Ainda sobre o elenco, Roger Daltrey, o vocalista do The Who, mostrou um desempenho muito acima do esperado para um não ator de ofício, ao interpretar a personagem, "Tommy". Tanto foi assim, que Ken Russell convidou-o para que estrelasse o seu próximo filme, "Lisztomania", uma cinebiografia do compositor e pianista erudito do século dezenove, Franz Liszt. É bem verdade que essa escolha de Russell provavelmente foi baseada no fato de que o roteiro de "Lisztmania" previa retratar a vida de Franz Liszt a usar uma licença poética gigantesca, por sugerir que ele teria sido o primeiro Pop Star da história da música, em pleno século dezenove, mas a portar-se como se estivesse a viver nos anos setenta do século vinte, ou seja, a presença de Roger Daltrey como um Rock Star da vida real, seria perfeita para o papel. Entretanto, é claro que o convite não lograria êxito, caso o seu desempenho em "Tommy", não tivesse sido bom. Tanto foi assim, que Daltrey recebeu nomeação ao Globo de Ouro como ator revelação e mesmo que não o tenha vencido, a indicação pode ser comemorada como um grande triunfo em sua biografia pessoal.
Em termos de bilheteria, o filme arrecadou mais de dez vezes o orçamento gasto, portanto, para os padrões setentistas, foi considerado um êxito extraordinário do cinema britânico.
Em termos de trilha sonora, foi alardeado à época que esse filme contaria com um com um novo sistema de áudio, absolutamente inédito até então, apresentado como "quintafônico". A ideia seria trazer um avanço ao sistema quadrafônico, que já era usado por algumas produções cinematográficas e estava a popularizar-se nessa época, pois a indústria de aparelhos de som estava a oferecer a novidade do som Hi-Fi caseiro, sob tecnologia quadrafônica para a venda ao público em geral. Tanto foi assim, que se tornou um sonho de consumo de muitos jovens Rockers, durante a metade/fim dos anos setenta, possuir aparelhos com tal potência sonora e distribuídos em quatro canais, onde teoricamente o efeito do tradicional sistema "stereo", fosse duplicado. Portanto, ouvir os discos do Rock Progressivo, a conter arranjos muito sofisticados, seria um deleite, com tanta informação sonora distribuída em quatro caixas, isoladamente a destacar minúcias gravadas em estúdio por seus artistas prediletos.
Portanto, quando surgiu a ideia de um sistema que fosse além da possibilidade dos quatro canais, a sugerir o aperfeiçoamento da tecnologia, é claro que chamou a atenção de todos. No entanto, tal sistema de áudio distribuído em cinco fases, não prosperou, mesmo por que, se o som quadrafônico mal era percebido em salas de cinema equipadas para funcionar em sistema stereo e em muitos casos, até em mono, foi óbvio que investir em tal tecnologia tornou-se algo inviável. Dessa maneira, bem rapidamente o filme foi relançado para funcionar no sistema tradicional, para evitar problemas e o alarde sobre ser dotado de sistema "quintafônico" ou "pentafônico", logo tornou-se descartado.
Sobre a parte musical, é preciso salientar que muitas mudanças foram feitas. Incluso a troca da posição das músicas em relação à ordem original do LP de 1969. Trocas de nomes de canções também ocorreram e uma delas foi inevitável, visto que a canção original, chamada "1921", teve que mudar para "1951", mas outras canções também passaram por modificações. E acrescente a isso, alguns trechos de letras para também acompanhar a opção em mudar-se a ação temporal da trama. Em relação ao som, também há mudanças significativas. O som original do The Who, no LP "Tommy", de 1969, é bastante rústico e na trilha sonora do filme, os arranjos ficaram mais robustos, com a inclusão de muitos teclados, naipe de metais, dobros de guitarras, violões e vozes de apoio. Gosto das duas versões, particularmente, embora tenda a considerar a versão clássica do The Who, mais crua, como mais genuína, logicamente.
Após o êxito obtido nas salas de cinema, "Tommy" ganhou muitas exibições na TV, em canais abertos e idem na TV a cabo. Ganhou versão teatral, nos anos noventa, com direito a vídeo e disco de uma trilha sonora específica, também. Foi lançado em versão VHS, relançado em DVD e Blu-Ray (a trilha sonora do filme também vendeu muito na época, em LP duplo e posterior relançamento em CD), e em termos de internet, na atualidade (2012), este filme é encontrado em muitos portais onde a inscrição via login, é obrigatória. No youtube, encontra-se fragmentos, apenas.
Resenha publicada inicialmente no Blog do Juma, e republicado no Site/Blog Orra Meu, ambos em 2012. Posteriormente, esta resenha foi revista, ampliada e unificada, para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" e está disponível em seu volume I, a partir da página 190.
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