sábado, 2 de junho de 2012

Filme: Alice's Restaurant (Deixem-nos Viver) - Por Luiz Domingues

É preciso iniciar esta resenha a comentar sobre o seu estranho título, pois em primeira instância, qualquer pessoa que toma conhecimento dessa expressão, "o restaurante da Alice", simplesmente não consegue entender a sua conotação e sobretudo a intenção por trás da história que motivou a sua criação, se não conhecer o contexto pelo qual a música que inspirou a realização deste filme foi criada, e mais do que isso, conhecer a biografia do artista que a idealizou, o cantor/instrumentista e compositor, Arlo Guthrie.

Pois bem, Arlo Guthrie tornou-se um artista respeitável ao longo da sua carreira recheada por bons discos, influenciou muitos artistas, é um ícone hippie da contracultura, interagiu com inúmeros outros de seus pares contemporâneos, com desenvoltura, foi participante com sucesso do festival de Woodstock em 1969 e também, é reconhecido por manter um posicionamento ativo em questões a envolver a perspectiva sociocultural e política nos Estados Unidos, certamente.
Arlo Guthrie, o Hippie-Mor, e continuador, de certa forma, do legado de seu pai, Woody Guthrie

Ele mantém a sua trajetória artística construída com personalidade e muito valor, a ser admirado pelos seus méritos pessoais como artista e pessoa, entretanto, há um traço familiar seu, que talvez tenha auxiliado-o em prol das suas conquistas e falo isso sem nenhuma conotação de demérito para sugerir que tenha havido um favorecimento indevido, mas pelo contrário, como algo positivo a delinear uma herança em termos de talento artístico e formação pessoal como cidadão consciente, por conta de seu DNA, pois Arlo é filho de um mito da música Folk norte-americana, Woody Guthrie.

O grande menestrel Folk norte-americano dos anos 1930/1940, Woody Gutrie

Woody, para contextualizar, representa mais que um grande nome da música Folk que atuou com força nas décadas de trinta, quarenta & cinquenta, principalmente, quando trabalhou com muita força, mas por que foi sobretudo um artista engajado, empenhado em fazer da sua música, um ponto de resistência em favor dos trabalhadores mais humildes, notadamente durante os difíceis anos em que a grande depressão pós queda da Bolsa de Valores de Nova York (em 1929), deixou o país, e o mundo por conseguinte, em uma recessão sem precedentes e claro, quem mais sofreu foi a população humilde que ficou literalmente à mingua.

Pois Woody construiu a sua fama como artista folk a usar a sua música para protestar contra tal situação, portanto a tornar-se um menestrel Folk a dar esperança por dias melhores aos que mais sofreram. Não foi à toa, portanto, que Woody  tenha sido um exemplo para Bob Dylan e outros tantos astros da Folk Music em geral que advieram, ao ter produzido o seu cancioneiro com alto teor político, a tratar-se de uma vertente que recebeu o rótulo como: "Protest Song" ("canção de protesto").

Entretanto, mesmo sendo filho de um artista veneradíssimo, não só pelo trabalho artístico, mas também por ter sido um exemplo de lutador em prol da causa operária/camponesa, principalmente nas décadas de 1930 e 1940 (no auge da grande depressão diga-se de passagem), não deitou-se em berço esplêndido e assim trator de trilhar o seu próprio caminho na música, sem usufruir da fama de seu pai, embora as comparações e insinuações fossem inevitáveis nesse sentido.
Em 1965, Arlo já estava embebecido pela contracultura e emergente movimento Hippie, quando criou uma canção chamada: "Alice's Restaurant", a narrar uma longa história sobre um sujeito que recusa-se a servir o exército para lutar na Guerra do Vietnã, e que foi morar em uma comunidade Hippie, a envolver-se com uma turma que controla um restaurante e a seguir, a envolver-se em um bizarro imbróglio com a polícia. No entanto, a questão não foi tão simplória assim, pois muito dessa história foi baseada em fatos reais e com o próprio, Arlo como o protagonista.

Ocorre que ele de fato já estava bem envolvido com a música e a transitar entre ambientes formados por pessoas fortemente motivadas pelas questões contraculturais, a misturar diversas influências culturais em sua linguagem, e certamente, com a Folk Music de raiz e com a Protest Song em proeminência, além de que nesta altura, já estava bem encaminhada uma derivação a misturar-se com a psicodelia em franca expansão, como uma vertente moderna a gerar o estilo Folk-Rock. Em síntese, Arlo teve o ambiente propício para alavancar a sua carreira doravante, a configurar-se como alguém muito além de ser o herdeiro de Woody Guthrie que carregava o DNA talentoso do seu pai, mas também por ser um continuador de sua militância sociocultural & política e muito mais do que isso, a enxergar no movimento Hippie, um avanço natural da ideia da fraternidade, ou seja, algo para tornar-se acima da polarização esquerda/direita simplesmente, e avançar de uma maneira supra política ideológica nesses termos.

Sobre o episódio em que Arlo passou em sua vida e motivou a criação da música, "Alice's Restaurant Massacre", ocorreu que em 1965, Arlo recebeu  a carta de convocação do exército, para ser fatalmente enviado ao Vietnã, para lutar. Nessa época, ele estava a cursar a faculdade em Montana, mas em passagem por Stockbridge, Massachuttses, quando bem no dia do "thanksgiving" (feriado de "ação de graças" e tratar-se de um dia muito comemorado na cultura norte-americana), ele, com a ajuda de amigos, Ray e Alice Brock (ela era bibliotecária e posteriormente abriu de fato o tal restaurante citado na música, instalado em uma antiga igreja), e tal material foi jogado a esmo em um aterro sanitário improvisado.

No entanto, a polícia flagrou a tal infração e em julgamento, Arlo e os seus amigos foram multados e obrigados a recolher o lixo indevidamente jogado naquele lugar, para despejá-lo em um local adequado. Até aí, sinceramente, não há nada de transgressor de uma parte ou outra a configurar-se como um equívoco da parte de Arlo e a ação policial e posterior decisão judicial não pode ser reconhecida como algo fora de propósito a denotar opressão ou que tais, pois certamente que foi uma decisão correta em termos de zeladoria pública.
No entanto, por conta desse detalhe em ter sido julgado e condenado em uma ação judicial, Arlo ficou com tal mácula em sua ficha pessoal como cidadão e assim, foi dispensado da convocação do exército. Naturalmente que tal confusão gerada despertou-lhe a reflexão sobre os parâmetros hipócritas que regem a sociedade, sobre o que é certo & errado, sob diversas graduações a provocar o questionamento inevitável. De fato, sem esmiuçar para não alongar-me, mas essa reflexão é cabível e muito importante, pois o que é mais amoral: jogar lixo em local inadequado ou matar pessoas inocentes em prol de interesses versados pela geopolítica estabelecida por outrem? 

A constar e isso também é um dado importante, a música gerada por tal acontecimento, teve essa base real de fatos ocorridos na vida pessoal de Arlo para moldar-se a obra. No entanto o próprio, Arlo, declarou que usou de licença poética para escrever a sua letra e no filme, quando a música foi adaptada para a dramaturgia, ainda mais, algumas distorções foram cometidas.
Quando surgiu tal música, em 1967, esta fez um grande sucesso (apesar da sua metragem gigantesca com mais de dezoito minutos de duração, um escândalo para a época), e algum tempo depois, motivou a realização deste filme que eu comento, a retratar essa história com o próprio, Arlo Guthrie, a atuar como o ator protagonista dessa aventura hippie. E assim, o filme foi lançado em 1969, a aproveitar o embalo "Woodstockeano" em voga e a reboque, a aproveitar também a popularidade grande que Arlo Guthrie já conquistara, aliás ele mesmo a confirmar-se com um participante do próprio mítico festival e com direito a participação no documentário oficial do mesmo, quando este foi lançado tempos depois (de fato, o filme "Alice's Restaurant" foi lançado apenas dois dias após a realização do festival, 19 em agosto de 1969).

Sobre "Alice's Restaurant", o filme segue a história cantada na canção. Arlo faz o papel de si próprio e vive o dilema em querer ser um músico e ser rejeitado no conservatório musical pelo preconceito com o seu visual Hippie. Para piorar as coisas em sua vida, é convocado a alistar-se no exército. Ao encarar tudo com uma boa dose de sarcasmo, Arlo vai parar em uma comunidade Hippie, localizada no estado de Massachusetts, e ao encontrar uma amiga, Alice (interpretada por Pat Quinn), esta resolve abrir o "Restaurante da Alice", que dá nome ao filme e à canção. Na comunidade em que vivem, abriga-se  viciados em drogas e daí saem alguns conflitos paralelos e inventados para dar substância dramática ao filme, ao abrir campo para questionamentos sobre a liberdade do movimento hippie, em detrimento de libertinagens advindas por parte de incautos.
Em outra ocasião, mais à frente na narrativa, Arlo e amigos resolvem despejar o lixo acumulado do restaurante no aterro sanitário da pequena cidade, mas como ele estava fechado por conta do feriado de "Thanksgiving" (Dia de Ação de Graças), os hippies resolvem despejar em um outro terreno qualquer e são surpreendidos então pela polícia, que os prende. Esse episódio de fato ocorreu na vida real de Arlo e o policial que o prendeu foi convidado a interpretar a si próprio no filme e aceitou fazer tal aparição! O Oficial "Obie", foi interpretado por ele mesmo, Willian Obenhay.

Aliás, a sua reação na vida real foi muita engraçada quando um jornalista perguntou-lhe sobre o motivo pelo qual aceitara tão insólito convite, sendo ele um policial e sem nenhum traquejo para ser ator, ao que "Obie" respondeu-lhe: -"Pois já que serei ridicularizado, prefiro ser eu mesmo a mostrar o rosto que um ator a interpretar-me". Na prática, a sua atuação é até singela e angariou simpatia da parte de muitas pessoas.



Dali em diante, há uma sucessão de cenas inventadas a visar uma sustentação dramática à história. O conflito final ocorre com uma certa dose de exagero para provocar um ponto de tensão , a envolver a questão de uma personagem (Shelly, interpretado por Michael McClanathan), ter sido descoberto como responsável pela manutenção de um estoque de heroína nas dependências do local. 
  










Execrado, ele morre em decorrência do abuso do consumo de drogas pesadas e ocorre a seguir o casamento de Alice e Ray Brock (este, interpretado por James Broderick). Mas a melancolia generalizou-se apesar disso, pois Ray sentiu-se culpado pela morte de Shelly e dessa forma, propõe a venda da velha igreja onde funcionava o restaurante de Alice, com a ideia de montar uma comunidade hippie em alguma localidade rural. Alice fica desolada, sentada nos degraus da porta de seu restaurante, ainda vestida como noiva, The End.

Perguntado sobre por qual razão o filme teve esse desfecho tão melancólico, se a canção que o inspirara não sugeria isso, o diretor, Arthur Penn comentou que o casamento hippie parcialmente frustrado quis representar o final da esperança hippie em construir-se um mundo melhor. Neste caso, o diretor optou por ser realista, visto que muito provavelmente o sonho esvaíra-se juntamente com o festival de Woodstock e dessa forma, a sua percepção foi certeira, infelizmente, devo acrescentar.
Para comentar algumas cenas em especial, digo que a parte com a apresentar-se na junta militar é hilária. Por obviamente envolver o preconceito conservador em relação ao modo de vida Hippie, e em especial e gritante destaque para a estupefação dos militares com o uso da longa  cabeleira do rapaz. Lembra um pouco a cena do personagem, Claude Bukowski em "Hair", mas aqui, o diretor Arthur Penn deu vazão ao sarcasmo de Arlo, conforme está descrito nos versos da canção que inspirou o filme.

                           O grande diretor, Arthur Penn

Arthur Penn foi (faleceu em 2010), um diretor respeitado em Hollywood e com carreira profícua, portanto, sabia bem o que estava a fazer, apesar de certos críticos ter desprezado esse "Hippie Rock Movie" no calor dos anos sessenta. A fotografia é muito bonita, a trilha espetacular, e o momento sessentista arranca emoção. E há também uma dose de singeleza na história, apesar do humor mais corrosivo da parte de Arlo. Recomendo a cena onde Arlo Guthrie visita o pai, Woody Guthrie, no hospital onde este esteve internado e junto à Pete Seeger ( a representar ele mesmo), cena em que tocam e cantam, a homenagear o velho, Woody.Nesta cena em específico, Woody, que na verdade havia falecido em 1967, foi interpretado pelo ator, Joseph Boley. E também a cena da Kombi psicodélica a despejar o lixo indevidamente, em um terreno não autorizado, por mostrar toda a ingenuidade dos hippies em realmente não discernir tratar-se de um ato errado.
E a respeito das licenças poéticas, o casamento hippie ao final, por exemplo, não existiu na vida real. A questão da hostilidade que Arlo Guthrie sofreu com a intolerância da parte de conservadores que não suportavam o seu cabelo longo, isso de fato ocorreu em uma pequena cidade do estado de Montana, mas no filme, há bastante exagero para dramatizar em demasia a história.

Muitos anos depois do lançamento da obra, já no avançar dos anos 2000, a verdadeira, Alice Brock, tardiamente reclamou que a sua imagem ficara arranhada com a sugestão proposta de que teria dormido com Arlo e especialmente, sobre a questão de ter tolerado a presença de viciados em drogas. Ora, ela participou do filme como figurante em cenas onde os hippies usufruem do restaurante e nada reclamou ali, no calor da filmagem em 1969, e nem mesmo pelos muitos anos posteriores, portanto, causa espécie tal declaração tardia de sua parte. E curioso, Arlo adquiriu o verdadeiro espaço onde esteve instalado o restaurante da Alice (anteriormente fora uma igreja nesse local), e ali construiu um memorial. 

Trata-se de um bom filme, a descrever poeticamente a mensagem contida na letra da canção homônima e apresenta uma trilha sonora excelente. Contém também uma boa fotografia do momento sessentista, e claro, traz em seu bojo, boas reflexões a cerca dos ideais propostos pelo movimento Hippie. Como um filme, propriamente dito, a diversão é garantida.

Mais alguns atores a ser citados: Geoff "Outlaw" (como Roger Crowther, Tina Chen (como Mari Chan), Kathleen Dabney (como Karin), James Hannon (como o juiz), Seth Allen (evangelista), Monroe Arnold (como Bluegrass), Vinnette Carroll (como o balconista), Sylvia Davis (como Marjorie Guthrie, a mãe de Arlo), Simm Landres (como o soldado Jacob), Eulalie Noble (como Ruth), Louis Beachner (como Dean), shelley Plimpton (como Rennie) e outros.
Roteiro de Vernable Herndon e Arthur Penn. Produção por Joseph Manduke e Hillard Elkins. Dirigido por Arthur Penn. Foi lançado em 19 de agosto de 1969. A trilha sonora, além da canção título, conteve mais canções de Wood Guthrie, uma de Joni Mitchell (não interpretada por ela, mas por Tigger Outlaw), a duas canções Folk, uma composta no século XIX, por Edvard Grieg ("Peer Gynt"), e a outra, a tratar-se de "Boiling Cabbage Down", cantada pelo ator, James Broderick e outros atores em coro.
Bem no embalo da euforia gerada pelo recém encerrado festival de Woodstock: com a fama de Arlo Guthrie já bem construída e a somar-se com a curiosidade em torno de um filme ter sido produzido por uma canção que já apresentara-se como sucesso em um passado recente, o filme teve um desempenho bom nas salas de cinema e normalmente distribuído em outros países, logo a seguir. Some-se aos demais fatores que tornou tal filme atraente, a assinatura de Arthur Penn, um diretor bastante respeitável e que atingira, já nos anos sessenta, o patamar em que os seus fãs esperavam com bastante expectativa pelo seu próximo filme. Quando um diretor chega em tal ponto, é um indício de consagração inquestionável.

Em termos de reação da crítica, apesar da costumeira má vontade para analisar filmes com identidade contracultural, houve boas opiniões a respeito. No Newsweek, por exemplo, foi publicada a seguinte opinião: -"O melhor de vários notáveis filmes novos, que parecem questionar muitas das suposições tradicionais do establishment norte-americano.
"Alice's Resataurant" foi nomeado para alguns prêmios importantes, inclusive o Oscar para a categoria de diretor, para Arthur Penn, mas recebeu apenas o terceiro lugar como comédia em 1970, no Laurel Awards. Tudo bem, ser nomeado já é uma grande honraria, penso eu.

Cabe ainda comentar que eu sempre considero as escolhas feitas pelos programadores de cinema brasileiros, muito infelizes ao traduzir títulos de filmes estrangeiros para o nosso idioma, português. Isso pelo motivo de que geralmente o raciocínio da parte dessas pessoas não é traduzir literalmente os títulos originais, mas buscar soluções que eles pensam ser mirabolantes para que o público nacional entenda o mote da história.

Geralmente as escolhas feitas a buscar tal determinação, são horríveis, a gerar títulos absurdos, completamente fora do contexto da obra. Neste caso, no entanto, creio que por pura sorte, apesar da opção mais uma vez em usar algo completamente diferente e que tenha sido adotada por uma questão meramente ocasional. Tudo bem que a história da música e do filme, foi montada em torno do "restaurante da Alice", entretanto, "Deixem-nos Viver", tem mais a ver com o espírito do enredo, visto que é um libelo pela liberdade, bem ao gosto da mentalidade hippie, tão difundida ao longo dos anos sessenta.

O filme atingiu a TV nos anos setenta e ganhou muitas reprises em canais de TV a cabo, geralmente relacionado para compor mostras temáticas sobre os filmes contraculturais da década de sessenta. A primeira cópia em formato DVD, saiu em 2001 e logicamente depois de muitos anos do lançamento em fita VHS. Em 2015, uma nova versão com extras, acrescido da sua versão em Blu-Ray, foi lançada. Na Internet, tal filme é encontrado com muita felicidade, em vários portais, inclusive no mais popular de todos, o Youtube.



Matéria publicada inicialmente no Blog do Juma, em 2012. Posteriormente, esta resenha foi revista e ampliada para ser incorporada ao livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", em seu volume I, a partir da página 234.

2 comentários:

  1. Vi esse filme no cinema em Porto Alegre na década de 70. Vou procurá-lo para revê-lo. Valeu!
    Abs.
    Jorge

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    1. Jorge, que legal essa lembrança de sua parte !!

      Suponho que deva ter sido entre 1970 e 1971, provavelmente.

      Vale a pena reassisti-lo.

      Abraço !!

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