quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Filme: Riot on The Sunset Strip (Os Transviados de Sunset Strip) - Por Luiz Domingues

Entre 1965 e 1966, a famosa: “Sunset Strip”, da cidade de Los Angeles, na Califórnia, tornara-se mais que um boulevard frequentado por artistas de cinema e a exibir lojas e restaurantes caros a atrair a atenção de turistas vindos do mundo inteiro, graças ao glamour hollywoodiano, no entanto, tornara-se igualmente um ponto de encontro para os emergentes hippies, adeptos da contracultura em geral, Rockers, freaks, Beatnicks e libertários em geral, por conta inicialmente de diversas casas noturnas a pulsar com música ao vivo (Whisky a Go-Go, entre as mais famosas), notadamente bandas de Rock. 
Entretanto, o volume gerado por essa movimentação frenética, assustou as autoridades, motivadas pela inevitável reclamação dos implicantes de plantão em torno de grupos tais como: liga de senhoras em prol da moralidade nos costumes, políticos conservadores, associações de comerciantes e que tais, ao ponto de tais grupos sociais exercerem pressão sobre a prefeitura da cidade, em conjunto com a força policial, para que agissem e dessa forma, um decreto foi baixado a instituir um “toque de recolher”. 

Portanto, depois das 22 horas, ficou proibido circular por ali e qualquer pessoa ficou sujeita ao enquadramento policial, se violasse tal norma autoritária. Ora, justo no país que arvorava-se em ser a terra da liberdade e das oportunidades? Justamente na segunda metade dos anos sessenta, em plena Califórnia e sobretudo, a interferir diretamente com uma juventude que buscava o sentido libertário da vida, em todos os sentidos? Pois evidentemente que isso não poderia resultar em algo positivo e assim, em novembro de 1966, um protesto dos jovens contra tal medida de exceção foi reprimido com truculência e daí veio a expressão: “Riot on the Sunset Strip”.
Dessa forma, tal acontecimento motivou a criação de um filme sobre tal conflito e na verdade, abriu a oportunidade para que outros explorassem o tema, a retratar os hippies e o seu sentimento de liberdade, versus a reação da sociedade conservadora e tudo permeado por conceitos pró e contra, naturalmente. 

No caso de “Riot on the Sunset Strip” (no Brasil, também conhecido como “Os Transviados de Sunset Strip”), a abordagem pareceu pender para a visão conservadora, portanto contra o movimento hippie, em uma primeira análise superficial, no entanto, o filme não deixa tal posição acintosamente declarada e dá margem para outra interpretação mais amena, em alguns aspectos, além de ter um mérito concreto, no tocante ao ter mostrado três bandas de Rock emergentes, sensacionais em ação, e sendo assim, nos dias atuais, décadas após o seu lançamento, veio a tornar-se um filme com tal legado implícito e de certa forma, sim, também é um documento contracultural, mesmo que os seus produtores o tenham concebido com intenção contrária, isto é, em desagrado ao movimento. 
Uma primeira observação importante, é sobre ter sido filmado e lançado sob toque de caixa, para aproveitar o calor dos acontecimentos, portanto, sem distanciamento histórico mínimo o suficiente para ter-se uma visão mais abrangente, tornou qualquer tomada de posição, pró ou contra, precipitada. 
Nesses termos, se a intenção foi depor contra os hippies, pura e simplesmente, tirante a obviedade em torno do malefício decorrente do abuso das drogas por alguns indivíduos, não pode denegrir o movimento como um todo, mas claramente ser atribuído como uma escolha individual de foro íntimo, tal qual o uso de bebidas alcoólicas, tão nocivas quanto e não apenas legalizadas, quanto incentivadas pela sociedade, vide o massacre midiático perpetrado por publicitários nesse sentido a incentivar o consumo. 

Portanto, se esse foi (é) o maior perigo, torna-se cruel ter que lidar com a hipocrisia conservadora que demoniza algo que execra por motivos escusos e valoriza outro elemento, em gritante contradição, algo tão nocivo quanto, mas que certamente aufere-lhe dividendos, portanto, algo escuso, igualmente. 
Bem, esta é a resenha de um filme e não uma matéria sobre saúde pública, mas fica a observação para entender melhor o seu contexto para a época, ao falarmos sobre a ação desenvolvida pela película, em meio ao ano de 1967. 
O segundo aspecto, foi decorrente do primeiro, no sentido de que a pressa em filmar e lançar, foi também acompanhada pela falta de recursos. Com um orçamento baixo, não foi possível haver um maior capricho na produção em geral. Portanto, ao considerar tal fator, creio que o resultado até surpreende, positivamente, no sentido de que apesar da simplicidade espartana com a qual essa produção lidou, o resultado ficou digno.
Mais contracultural do que propriamente um Rock Movie, certamente, “Riot on the Sunset Strip”, cabe melhor em outro livro, focado em tal tipo de abordagem, no entanto, dada a quantidade de cenas geradas em uma casa noturna (Pandora’s Box), a mostrar bandas de Rock verdadeiras em ação, penso que entra bem neste rol que selecionei para constar neste livro.
Sobre o roteiro, a opção foi pela simplicidade e considere-se tudo o que eu já alertei anteriormente, portanto, teria sido impossível recorrer-se a um texto mais sofisticado com nuances mais profundas, a conter uma devida exploração melhor das personagens etc. 
Nesses termos, a história narra a efervescência da Sunset Strip entre os jovens, alguns mergulhados na contracultura e outros a sentir-se atraídos por tal ideário, porém sem ainda compreendê-lo inteiramente e esse é o ponto que certamente deve ter apavorado as autoridades e a sociedade conservadora da época, aliás, até hoje, visto que mais de cinco décadas depois, ainda há uma incompreensão generalizada sobre tal movimento. 
Bem, a ação transcorre em torno de alguns personagens jovens que aproximam-se dessa cena e portanto, ficam à mercê de seus perigos, ao caracterizar o aspecto conservador da visão da produção e direção do filme, certamente.
Mostra-se então a efervescência na Sunset, com hippies a caminhar por todos os cantos e a reação de estupefação das pessoas “normais”, absolutamente apavoradas com a presença dos cabeludos, e certamente a interpretar a existência de tal horda formada por “freaks” (e entenda o termo, “Freak” pelo seu sentido pejorativo a designar alguém “esquisito” ou até pior, como uma “aberração”), como um sinal apocalíptico do “fim dos tempos”. 

A narração inicial é estabelecida com aquele ar solene do telejornalismo de outrora e claramente a expressar a contrariedade em relação aos jovens ali exibidos por sua atitude e escolha. Então vem a parte dramatúrgica com jovens ‘saudáveis”, oriundos de boas famílias a mostrar-se em um ambiente universitário, mas claramente entusiasmados pelos acontecimentos da Sunset Strip.
A personagem principal é Andrea “Andy” Dollier (interpretada por Mimsy Farmer, que aliás, foi protagonista mais tarde do cultuado filme, “More”, que ficou famoso pela trilha sonora assinada pelo Pink Floyd e também trabalhou em mais filmes de arte europeus, inclusive com o sensacional diretor italiano, Dario Argento). 
Andy é uma bela garota que em uma primeira instância, mostra-se renitente para mergulhar de cabeça como os seus colegas que já frequentam sem temor aquele ambiente e insistem para que ela avance, igualmente nesse sentido. 
Bem, até aí, trata-se de um comportamento humano normal e principalmente registrado na adolescência, quando os pais sempre temem a influências das ditas “más companhias” sobre os seus pimpolhos. 
Ela vai junto, mas com reservas e aí, entra em cena a casa noturna: Pandoras’ Box, a apresentar bandas de Rock, com muito som psicodélico e Garage Rock sessentista entre outras vertentes, todas sensacionais. O clima é de euforia total, com aquela sensação caleidoscópica em termos de difusão de cores pelas paredes a gerar a loucura máxima, permeada por preceitos surrealistas, certamente a evocar as famosas “trips” proporcionadas pela ação das drogas mediante psicoativos a gerar efeito lisérgico/alucinógeno. 
Observa-se a presença de três bandas em cenas diferentes e intercaladas ao longo do filme, que são: The Enemys, The Standells e a Chocolate Watchband. Outro aspecto a reforçar a ideia de ser algo pernicioso à sociedade, dá-se em relação as cenas em que são mostradas prisões em massa de hippies e seguidas por pais furiosos a comparecer em delegacias de polícia para buscar os seus filhos, certamente a corroborar o sentimento temerário da parte da sociedade conservadora em relação ao movimento. Pois antes de estigmatizar as pessoas, a contrapartida em relação ao fato de que muitas prisões foram feitas arbitrariamente, somente por conta do sujeito ser cabeludo e assim ser considerado um pária da sociedade e/ou “vagabundo”, ocorreu em profusão na história. 
Bem, fato real à parte, na dramaturgia, uma dessas prisões coletivas enquadra a personagem, Andrea “Andy” e os seus amigos. O ponto de conflito instaura-se quando ela mais do que constrangida em estar ali detida, dá a entender que existe algo ainda pior para envergonhá-la e isso fica patente ao espectador quando ela evita dar o seu nome, pois na verdade, o tenente daquela chefatura é o seu próprio pai. Dramalhão portanto, a lembrar Soap Opera norte-americana ou mesmo filmes e seriados que passavam na TV com tal sentido, como por exemplo: “O Vale das Bonecas”. 
Enfim, foi o caminho que o roteiro achou para causar mais comoção em torno do contraste. E para piorar, o policial em questão, Walt Lorimer (interpretado pelo veterano ator, Aldo Ray), faz o tipo de policial linha dura e intolerante, mas em seu íntimo, pelo contrário, ainda que veladamente, demonstra ter uma docilidade humanitária até surpreendente, portanto, a intenção deve ter sido fazer com que o público adulto nutrisse mais empatia ainda pela autoridade que também é um pai “bonzinho” e que está prestes a decepcionar-se com a sua própria filha, que foi envolver-se com hippies drogados.
Nesse ínterim, um conselho formado por pessoas proeminentes da sociedade, organiza-se para pressionar as autoridades a tomar providências e assim coibir a aglomeração de hippies na Sunset Strip, e se possível fechar as casas noturnas e até demoli-las (houve uma tentativa de conluio com a especulação imobiliária nesse sentido, na história real dos conflitos), como a invocar as lembranças bíblicas sobre Sodoma & Gomorra, certamente, portanto a seguir fatos então recentemente ocorridos na vida real e os jovens reagem com protestos. 
O tenente, no entanto, mostra-se aberto ao diálogo e negocia com as lideranças dos hippies, para que a ocupação nas ruas não redunde em confusão e os ânimos apaziguem-se. 
O contraponto interessante dá-se em torno da garota ser vítima de um trauma por ter os pais separados e sobretudo por viver com a sua mãe, Margie (interpretada por Hortense Petra), que é uma alcoólatra patética. Andrea “Andy” assiste o seu pai a dar pronunciamento na TV, a falar sobre as confusões com os hippies e os plano para acabar com aquela baderna (“riot”, afinal de contas) e sente-se ainda mais perdida em meio à falta de diálogo com os seus pais.
Ela volta então com os seus amigos e amigas ao Pandora’s Box e assiste mais shows de Rock, quando naquela euforia proposta pela loucura total, aceita ir com eles para outro local, assim que surgiu a ideia de invadir-se uma mansão desocupada e organizar uma festa particular, entre eles mesmos. Isso ocorre e evidentemente que em meio à música bem alta que colocam na vitrola, bebidas e drogas, a euforia sai de controle ao resultar em uma orgia. 
A princípio, Andy, ao contrário de suas amigas mais entusiasmadas, não pretende entregar-se aos prazeres sem limites, mas alguns rapazes colocam LSD na bebida dela e assim, ela entra em uma viagem psicodélica intensa. É óbvio que eu não faço apologia às drogas, mas preciso deixar claro que a cena é bem impressionante, apesar da total falta de recursos do filme, principalmente pela atuação individual de Mimsy Farmer, como atriz, ao interpretar, Andrea “Andy” Dollier, sob a ação de uma droga alucinógena, ao ponto dessa cena ser considerada antológica por vários meios, não apenas uma opinião formada entre os cinéfilos contraculturais e/ou entusiastas de cinema não comercial em geral, pois realmente a dança sob transe que ela encenou, foi algo espetacular e realmente passa a ideia de que o efeito da droga fazia com que a personagem experimentasse uma sensação incontrolável em termos de prazer corpóreo. 
No entanto, o lado mau disso e devo admitir, também realista, foi que ao perceber que a moça estava fora de si, os rapazes que a drogaram à revelia, consumam a sua segunda intenção com tal ato cometido, assim que ela foi levada a um quarto da mansão, é estuprada por esses dois canalhas, e também por vários outros rapazes, igualmente inescrupulosos. Concomitante a isso, a polícia já estava alertada sobre a festa promovida pelos hippies e cercou a mansão. 
Muitos conseguiram escapar, entretanto, a protagonista, estava ainda muito fora de si, e para piorar as coisas, quando um policial subiu ao quarto e reconheceu a moça, preferiu ser discreto e chamar o tenente, seu pai e deixar que ele lidasse com a situação. Bem, dramalhão instaurado, como eu já havia previsto, seguiu-se à reação do pai, uma explosão nervosa da moça, ao proferir palavras duras em momento de desabafo entre pai e filha por questões familiares, a denotar a falta de atenção que ela ressentia-se desde da separação de seus pais, a questão da mãe alcoólatra etc.

Um jornalista, um daqueles típicos que vimos muitas vezes em filmes policiais norte-americanos dos anos trinta a cinquenta e que costumavam fazer plantão em delegacias à cata de furos de reportagem com crimes a envolver pessoas famosas, desconfia que há algo errado e vai atrás para investigar e buscar saber a situação do tenente que surpreendera a sua própria filha ali, drogada e abusada sexualmente. A moça vai para o hospital, afinal de contas, drogara-se e fora estuprada muitas vezes e no hospital, o tenente Walt perde a compostura e agride alguns amigos dela, ao responsabilizá-los pela influência negativa que exerceram para que ela chegasse em tal ponto. A situação fica ainda pior para os hippies, é claro, com a opinião pública a pressionar as autoridades etc. 
Uma resolução adocicada ocorre repentinamente, quando vemos Andy recuperada, ainda no hospital e vestida como uma boa moça, como se fosse uma personagem de um seriado familiar ao estilo “Paty Duck Show” ou coisa que o valha e sob uma música orquestral a sugerir que tudo voltara ao normal, reconcilia-se com o seu pai. Nada contra a ideia de uma filha que faz as pazes com o seu pai, mas a abrupta mudança no conflito ficou muito forçada, infelizmente.

E o filme encerra-se com uma locução piegas, a dar conta que: -“a situação é preocupante, pois as autoridades podiam prender pessoas aos montes e fechar casas noturnas, mas os cabeludos iriam continuar e diante desse fato inexorável, o que podemos fazer? Aonde vamos parar?” 
Curioso, não foi a primeira vez que um axioma moralista foi colocado sob locução em filmes a envolver conflitos com a juventude e só para citar dois, sem maior esforço de pesquisa, recordo de “Angels With Dirty Face” de 1938 e “The Wild One”, de 1953. Denota que a sociedade conservadora preocupa-se mais em procurar deter algo que foge-lhe à compreensão, mas não faz nada para tentar entender o ponto de vista dos jovens que lançam novas ideias.
Enfim, mensagem melodramática à parte, o filme, apesar de seus limites, tem o seu mérito por retratar um aspecto dos acontecimentos ocorridos de fato em Los Angeles, que ao contrário de San Francisco, na mesma Califórnia e outras localidades na América, foi mais tenso por conta da reação em contrário, local. E sobretudo por mostrar as bandas de Rock citadas, em ação. 
Sobre o The Standells, por exemplo, não fora a primeira participação desse grupo em uma produção cinematográfica, pois isso já havia ocorrido em “Follow the Boys” (1963), “Get Yourself in a College Girl (1964), e até em episódios de séries de TV, tais como: “The Bing Crosby Show”, “Ben Casey”, “The Munsters” (“Os Monstros”) e até em uma animação infantil, “Zebra in the Kitchen” (1965). 
Já em relação ao “The Enemys”, tal banda também participara de episódios de seriados de TV, casos de “Burke’s Law” (“A Lei de Burke”) e “The Beverly Billbillies” (“A Família Buscapé”), 
E finalmente, a mais famosa que ali apresentou-se, “Chocolate Watchband”, uma sensacional Garage Band dos anos sessenta, com a famosa atuação frenética de seu vocalista, Dave Aguilar, com as suas maracas. A aparição dessa banda a tocar: “Don’t Need Your Lovin”, é para arrepiar. Ainda a constar da trilha do filme, existe o som de outros artistas tais como: a cantora, Deborah Travis, Mugwamps, The Mom’s Boys, The Sidewalks Sounds e Drew.

Outros atores que participaram: Laurie Mock (que interpretou, Liz-Ann Barbrey, a amiga morena de Andy), Michael Evans (como Frank Tweed), Bill Baldwin (como “Stokes”), Anna Strasberg como Helen Tweedy, Tim Rooney (filho do veterano ator, Mickey Rooney), como Grady Toss e outros.
Foi escrito por Orville H. Hamptom, com produção de Sam Katzman e direção de Arthur Dreifus. Lançamento em março de 1967, portanto, se considerarmos que o auge do conflito de rua na Sunset Strip, na vida real, ocorrera em novembro de 1966, pode-se mensurar o quanto foi acelerada a produção desse filme, para explorar o assunto do momento, mas cabe ressaltar que o “verão do amor” veio alguns meses depois e a propaganda negativa ficou obscurecida e pelo contrário, apesar dos pesares, esse filme tornou-se mais uma peça de interesse contracultural, a posteriori.
Dificilmente será visto em canais de TV a cabo da atualidade, e a cópia em DVD, só mesmo a contar com o material importado, sem legendas em português. E como consolo, dá para assistir no YouTube, ainda que as cópias disponibilizadas, sejam oriundas de gravações feitas em fitas VHS, portanto, sem uma grande qualidade.
Como peça para estudar-se a explosão contracultural dos anos sessenta e também pela parte musical, vale muito a pena assistir e acrescento nesse rol a cena da personagem, Andrea “Andy” Dollier, sob intenso frenesi lisérgico, defendido pela atriz, Mimsy Farmer, como algo notável.
Esta resenha faz parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n Roll". Está disponível para a leitura através do seu volume II, a partir da página 98.
 

domingo, 29 de novembro de 2020

Filme: Jimi: All Is By My Side (Jimi: Tudo ao Meu Favor) - Por Luiz Domingues


Bem, eis que após muitos anos decorridos do lançamento do filme, “Hendrix”, de 2000, uma nova produção foi anunciada como mais uma tentativa para retratar a trajetória de vida e obra do guitarrista, Jimi Hendrix. Ao considerar-se que o filme anterior fracassara em muitos aspectos, ao resultar em uma amostragem pífia enquanto cinebiografia de um astro da magnitude de Jimi Hendrix, portanto, uma nova produção deveria redimir a tentativa anterior, frustrada, no mínimo, mas, será que alcançou tal intento?

Eis que em 2014, chegou às telas de cinema a película: “Jimi, All Is By My Side” (Jimi: Tudo ao Meu Favor), a gerar expectativa entre os fãs do guitarrista, um ícone do Rock sessentista, monstruoso no imaginário e na história, de fato. Entretanto, a boa expectativa gerada foi fortemente minada quando as pessoas sentaram-se em suas respectivas poltronas nas salas de cinema e o projetor começou a rodar o celuloide, pois mais uma vez uma produção falhou em retratar a sua biografia, e as falhas a suscitar queixas, foram muitas.

Bem, não inteiramente, mas muita informação para a elaboração do roteiro desse filme, foi baseado nos relatos de Curtis Knight, líder do grupo Curtis Knight and The Squires, que lançou dois livros sobre Hendrix, um em 1974 (Jimi: An Intimate Biography of Jimi Hendrix) e o outro em meados dos anos noventa, chamado : “Starchild”) e pelo fato de Jimi Hendrix ter sido membro, bem antes da sua fama como artista solo, logicamente que o seu status, que suplantou e muito a tímida carreira desse grupo liderado por Curtis, logicamente fez com que ele capitalizasse a fama alheia, com tais biografias. Ocorre, que tal relato é bastante contestado por outras pessoas que conviveram com Hendrix na mesma época, como por exemplo, Kate Etchingham, que foi namorada de Hendrix na ocasião e esteve com ele durante a boa fase de sua curta carreira, e só não esteve ao seu lado, em seus últimos momentos, pois o casal havia separado-se, em 1969, portanto algum tempo antes desse desfecho trágico, ocorrido em 1970. Pois Kate ficou aborrecida, pois no livro de Curtis e por conseguinte no filme, Hendrix foi retratado como um homem cruel que a agredira muitas vezes e ela negou isso. Pois então, antes a produção do filme tivesse usado como referência o próprio livro de Kate, que ela publicou em 1999, “Throught Gipsy Eyes”.

Sobre o filme, a ação cobre o período entre 1966 e 1967, ou seja, quando sem maiores perspectivas e a tocar em obscuras casas noturnas de Nova York, Jimi Hendrix (interpretado por André Benjamim ou André 3000, seu nome artístico como “rapper”), foi notado pelo empresário dos Rolling Stones, Andrew Loog Oldham (interpretado por Robbie Jarvis) e daí, uma conexão fora estabelecida com ex-baixista da banda, “The Animals, Chas Chandler" (interpretado por Andrew Buckley), que estava a iniciar uma carreira como empresário e este o convidou a tentar a sorte em Londres. 

De fato, a capital britânica era a maior meca do Rock mundial na ocasião e tal aventura aparentemente incerta foi a melhor resolução possível para que Hendrix fosse catapultado da condição de um obscuro guitarrista side man a serviço de artistas medianos ou astros em momento de decadência, para o mega estrelato em âmbito mundial. Daí, já em Londres, é passada a informação dentro da cronologia, a dar conta do deslumbramento inicial do norte-americano em relação à cena da Swingin’ London que explodia nas ruas e tudo permeado por suas visitas aos clubes da moda onde despertou a desconfiança inicial e também os ciúmes de músicos ingleses que já estavam a usufruir da fama, e aí existe mais uma controvérsia.
  

Isso por que a famosa participação que ele teve em uma apresentação do Cream, uma super banda na ocasião, em 1966, é tratada de uma forma bem diferente como fora retratada no filme, “Hendrix”, de 2000. Naquela produção, Eric Clapton mostra-se reticente em princípio, mas depois aceita que ele suba ao palco e a jam transcorre retratada com ambos a demonstrar tranquilidade e até felicidade pela oportunidade e sonoridade que produzem, mas neste filme, de 2014, Eric Clapton mostra-se furioso com a presença de Jimi Hendrix e abandona o palco. Qual foi a verdade na vida real, afinal de contas?

Um episódio emblemático que faltou no filme anterior e neste foi mencionado, deu-se em relação à cena em que Hendrix e a sua namorada, Kate, andam pelas ruas de Londres e são interpelados por policiais que irritaram-se pelo fato dele, Hendrix, estar a usar um casaco antigo do exército britânico, e de fato, os hippies britânicos haviam incorporado o uso de tais casacos militares pesados e muito antigos, dos séculos XVIII e XIX, em meio aos outros trajes multicoloridos e adereços a compor um visual multicolorido e também funcional para o inverno europeu. Não apenas do exército britânico, mas de várias nações europeias e tais peças eram facilmente encontradas na feira hippie de Portobello Road e outros tantos pontos da cidade. O problema, foi que os policiais não gostaram de ver tal peça a ser usada por um rapaz negro e a namorar uma garota branca e daí, veio o constrangimento em tom de abuso policial. Tal fato ocorreu na vida real, pontuou uma questão racial, mas também o preconceito contra hippies etc e tal. Isso por que a polícia britânica tem a fama de ser bem profissional e raramente cometer abusos em abordagens, que são em via de regra, respeitosas pelo protocolo civilizado, pois se fosse em outro país não tão observador de tais normas...


Bem, vem a formação do Experience com Noel Redding e Mitch Mitchell, o começo da fama; a gravação do primeiro álbum; as primeiras críticas boas e também as ruins (por cantar mal e ser “rabugento” no palco, aliás, ambas bem relativas). Vem o início da pressão de grupos negros ativistas a cobrar-lhe um posicionamento por ser um artista negro em ascensão, mas convenhamos, creio que se tal conversa existiu em 1967, foi bem menos contundente de quando ele foi abordado, na vida real, a partir de 1968 e no decorrer de 1969, portanto, pode ter sido um erro de avaliação cronológico ou simplesmente uma licença poética para poder citar o caso, visto que a proposta do filme foi a de retratar os anos de 1966 e 1967, em princípio.

É citada também a loucura desmedida, os abusos com drogas, bebidas e as groupies em profusão a culminar também com brigas com a namorada, Kate. E esse foi um ponto nevrálgico do filme, como eu já afirmei no início do texto, visto que Kate Etchingham, abominou o filme e desmentiu que fosse agredida da forma que foi retratada através da atriz, Hayley Atwell, que a interpretou. Inclusive a cena forte da agressão mediante um aparelho de telefone, foi considerada por ela, como um completo absurdo.


Outro fato real ocorrido em 1967, de fato, Jimi Hendrix teve acesso à uma cópia do LP Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, antes mesmo dele ser lançado oficialmente e surpreendeu à todos, incluso os próprios componentes do Fab Four, ao tocar ao vivo e com uma tremenda energia a canção título do álbum deles e ao causar estupefação geral.

E o filme encerra-se com a apresentação dele no Festival Monterey Pop em 1967, quando de fato, mais que uma volta triunfal à América, a sua terra natal, a sua carreira teve o impulso definitivo para que alcançasse o mega estrelato.

Sobre a completa ausência de material composto por Jimi Hendrix em mais uma cinebiografia sua, tratou-se na verdade do mesmo caso, ou melhor, empecilho ocorrido no filme, “Hendrix”, de 2000, ou seja, a negativa da editora que controlava o seu material e já há muitos anos controlada pelos familiares, o pai dele, e a sua irmã temporã, que mal o conhecera em vida, visto ter sido muito pequena quando ele morreu. Então, os números musicais são covers de outros artistas que Hendrix de fato regravou, e constavam de seu repertório, no entanto, isso fica insuficiente para compor o material musical de uma cinebiografia, sem dúvida alguma. Como suportar um filme sobre Jimi Hendrix em que nenhuma música sequer que ele compôs, é executada, nem mesmo como música incidental, background e que tais?

Outro aspecto, a composição dos personagens beira o caricato e isso também ocorrera com o filme “Hendrix”. Espero que um dia, produza-se uma cinebiografia de Jimi Hendrix e mesmo de qualquer artista sessentista dessa mesma magnitude e que evite-se o caricato, pois a composição das personagens ainda carece de um maior apuro histórico. Enquanto os produtores achar que astros do Rock sessentista (e também os setentistas) precisam expressar-se como o personagem, “Lingote”, do Chico Anysio, teremos uma idealização bastante equivocada e foi o que ocorreu. 

No caso do ator que interpretou, Jimi Hendrix, André Benjamim, isso agravou-se talvez pelo fato do rapaz ter sido um rapper na vida real e daí, a confusão gerada a considerar que a sua experiência pessoal nesse caso, em torno da cultura Hip Hop em que poder-se-ia ser aproveitada como um elemento positivo, certamente que foi um erro de avaliação. No entanto, essa observação é uma mera impressão de minha parte, deixo a ressalva de que posso ter errado na minha avaliação.

Sobre a direção de arte; figurino e ambientação, é razoável, talvez um pouco melhor que a do filme, “Hendrix”, no entanto, o ator principal daquela produção parece ter adaptado-se melhor ao personagem.

Burn Gorman interpretou o empresário, Michael Jeffery e aqui, este personagem não foi tão demonizado quanto em “Hendrix”. Oliver Bennett interpretou o baixista, Noel Redding e Tom Dunlea, interpretou o baterista Mitch Mitchell. Ashley Charles interpretou o guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards e isso foi curioso na medida em que na vida de Hendrix, Richards foi próximo, sem dúvida, mas nem de longe a caracterizar uma amizade mais profícua, pois ficou patente que Brian Jones, o outro guitarrista dos Rolling Stones, foi uma pessoa muito mais próxima e de fato, um dos principais responsáveis para que Jimi participasse do festival de Monterey em 1967, assim como Paul McCartney.

Escrito e dirigido por John Ridley, estreou na Inglaterra em agosto de 2014, ao chamar a atenção de fãs e Rockers em geral, mas logo veio a decepção a confirmar uma expectativa que ainda não acertou-se a mão para retratar com melhor propriedade a vida e obra desse grande astro do Rock. Hendrix merece mais, e assim torcemos para que surja uma produção à altura do seu quilate artístico e sobretudo a fazer jus à brutal importância que ele exerceu, muito além da música em si.

Bem, o filme passou bastante nos canais da TV a cabo, depois que deixou as telas, foi lançado em versão DVD/Blue Ray e é encontrado com facilidade no YouTube. Ver ou não ver, eis a questão? Então, creio que o meu conselho é assistir, por ser melhor que nada, no entanto, a observar muitas ressalvas, pois não é uma obra definitiva sobre a biografia de Jimi Hendrix.

Esta resenha faz parte do filme: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll". Está disponível para a leitura através de seu volume II, a partir da página 81.