segunda-feira, 29 de abril de 2024

Livro: 70 poemas sem nome/Marcos Mamuth - Por Luiz Domingues

Cena noturna: sob meia-luz, um músico está a tocar guitarra. Em cima da mesa há um caderno com uma caneta esferográfica jogada sobre ele e também uma xícara de café a exalar o seu vapor perfumado que se espalha pelo ar. A todo instante o guitarrista interrompe a sua execução para escrever frases pontuais no caderno. 

Ele toma um gole de café e volta a tocar. O som é o Blues e as interrupções constantes são para anotar frases que brotam na sua cabeça e ele não pode perdê-las. E assim, como um bom compositor, ele sabe bem que as ideias surgem e escapam sob uma velocidade absurda. Por isso, não se importa com as constantes interrupções que são feitas por um bom propósito.

Então ele olha pela janela e vê a grande cidade toda iluminada, com aquela movimentação frenética que lhe é peculiar, suspira e volta a tocar guitarra. Se empolga e abandona a harmonia com a qual cantarolava uma melodia que estava a criar e faz um solo cheio de sentimento. A imagem da cidade notívaga o inspirara.

A seguir, ele guarda a guitarra no suporte do instrumento e com a caneta em punho se coloca a escrever com muita volúpia, pois também escreve poesia, isto é, trata-se de um escritor de mão cheia e dessa forma, se inspira para compor canções, mas a música também o inspira a escrever poesia. A retroalimentação do artista total que busca inspiração de todos os lados e simplesmente cria a sua arte a expressar tudo o que sente, ouve e vê ao seu redor. 

Eis aí trabalho do poeta e do compositor musical, que simplesmente observa e sente a vida, para repassar aos seus leitores e ouvintes a sua interpretação sob o manto da arte.

É exatamente o que faz Marcos Mamuth, como um grande guitarrista versado pelo Blues e pelo Rock em linhas gerais, mas eclético, sempre pronto a usar de suas múltiplas influências para visitar outras vertentes ao compor e tocar a sua boa música e também quando escreve a sua poesia plena de imagens fortes, a evocar a urbanidade refletida nas relações humanas em meio às suas contradições e neuroses, mas também desvelar a candura dos momentos bons sob vários aspectos do cotidiano de todos nós.

Na primeira foto, Marcos Mamuth em ação no palco. Na segunda, da esquerda para a direita: Carlinhos Machado, Marcos Mamuth e Ayrton Mugnaini Junior, "Los Interessantes Hombres Sin Nombres". Clicks de Ivani Albuquerque

Como músico, Marcos Mamuth é um guitarrista sensacional, com destacada atuação como compositor. Ao lado de bandas ("Los Interessantes Hombres Sin Nombres", por exemplo) ou na carreira solo, mediante uma boa obra lançada em disco, ele faz a guitarra chorar e assim nos convida também à reflexão de suas letras com alto teor poético, contida nas suas canções.

Como escritor, ele se mostra direto, tantos nas navalhadas na carne a la Plinio Marcos, quanto nas imagens mais doces a descrever o encanto de acompanhar com incrível carinho paternal o nascimento e criação de sua filha pela qual devota um amor incondicional.
Como professor universitário e psicólogo na formação acadêmica,
Mamuth transpassa a alma humana em busca do conhecimento de si mesmo.

E tudo isso se reflete através de suas músicas e poesias, com enorme desenvoltura, sinceridade e beleza na escolha das palavras e das notas musicais que decide usar.

Posto isso, falo mais detidamente agora sobre o livro que ele lançou no limiar de 2023, denominado: "70 poemas sem nome". De fato são setenta poemas e nenhum deles contém um título formal, apenas a se apresentar sob a numeração, pura e simplesmente.

Tal decisão do autor não se trata de uma predisposição aleatória de sua parte. Os poemas seguem uma linha tênue e quase a sugerir a continuidade de uma construção bem delineada para seguir alguns temas em separado, porém unidos sob outros aspectos.

Nesses termos, muitos poemas (ou quase todos), são bem curtos, a exercer o poder da síntese. Outros, mais extensos, porém, se mostram a denotar o predomínio do exercício da assertividade para dar o recado.

Versos fortes abundam a obra. "Poeta burocrata das oito às dezessete horas que toca guitarra" a revelar a sua própria condição de artista das notas musicais e das palavras escritas, que trabalha formalmente como professor universitário mediante a rigidez do horário escolar.
"
Óculos bizarros de lentes entristecidas" ele diz para justificar as mazelas que vê ao seu redor em meio à sociedade construída com tanta rudeza a se gerar a miséria geral. O artista é sempre o ser humano mais sensível que enxerga o mundo sob o prisma real.

Veja um poema abaixo, o designado como número 8:

"Novamente, a praia e os seus dizeres
Caminhávamos,
mãos entrelaçadas,
brevemente.
Atrás de nós,
estendia-se a procissão dos esquecidos.
Ainda não havia o fogo pleno
em todas as suas nuances maduras
de odores,
dores
e sensações.
A paixão queimava-me de forma terna, doce.
(Era preciso começar lentamente até que a carne se habituasse a esses
sofreres.
)"

O amor tem espaço generoso na criação do poeta. Observa-se no livro um conjunto de poemas muito intensos para falar do assunto e sob várias matizes. Dessa forma, da ternura à angústia, dos afagos à ausência do carinho, o assunto é esmiuçado por poemas fortemente inspirados pelas sensações corpóreas, mas também pelas entrelinhas que os relacionamentos carregam, geralmente imersos em mistérios insondáveis, pois quem entende as mulheres (?), pensamos assim, nós os homens. E claro, na contrapartida as mulheres tendem a nos subestimar quando afirmam que somos óbvios...

Nesses termos, o poema de número 15, dá a dimensão de como o amor também pode ser complicado, mesmo que seja intenso, na visão do poeta:

"Te amar sempre foi assim,
meu demônio aveludado:
deito e rolo
todas as noites
em lençóis de arame
farpad
o".

E o cotidiano está igualmente presente na visão do poeta, sempre a enxergar beleza nas ações, das pueris às grandiosas. Veja o poema de número 42, ao tratar de questões dessa monta:

(Para Aneth)

"A tua poesia é nua,
Cumadi.
Mostras a alma
enquanto serves ao leitor
café,
pão de queijo
e bolo de fubá.
Mostras teus versos,
e também as curvas
da tua estrada
(corpo
pele,
cabelos)
percorrida
a pé,
em lombo de burro,
de bicicleta.
De todo jeito e maneira.
Menos de carro.
"De carro não tem graça",
dirias entre o sorriso discreto
e o olhar cotidiano
das imensidões
"…

Urbano por natureza, em algumas poesias o autor deixa algumas imagens mais ácidas, é bem verdade. Faz parte, a vida nas cidades de pedra tem essa rudeza implícita sob algumas nuances. Isso sem contar que o lirismo mórbido de Augusto dos Anjos se faz presente em alguns versos. Não posso afirmar ter sido uma influência direta sobre o autor, portanto, que fique a ressalva de que se trata de uma mera impressão pessoal de minha parte. Veja que interessante a poesia de número 43:

"
Com o lirismo possível,
entre trágicas profecias,
ameaças invisíveis
e prenúncios bíblicos de findos tempos,
sobrevivo.
O tórax,
apertado,
entristecido,
abriga um coração cauteloso
e pulmões covardes.
Minhas mãos se retesam
e ardem:
com o lirismo possível,
escavo a alma em busca de alguma coragem oculta.
Encontros escurecidos,
túnel no fim da luz.
Para onde conduz
esse lirismo possível com o qual caminho pela avenida semideserta?
Felizmente, ainda resta a canção,
embora cansado
o refrão.
Um único braço silencioso agora me acolhe:
seis cordas frias aquecendo a noite morta,
exilada da brisa fresca.
Sete vidas tem o blues,
sete encruzilhadas e Exus.
Cada um deles benze minha fronte
com todo o lirismo possível.
E só.
Nada mais ou menos.
do que o lirismo possível.
Porque é o tempo da Peste.
Homens alucinados cavalgam bestas antes renegadas que finalmente ganharam os campos.
Caso as velas se rasguem
e naufraguemos em rios de sangue e pus
façamos jus
ao lirismo possível.
É nosso escudo.
Exaustos,
Sim.
Mas não mudos.
A difícil missão de buscar entender o ser humano, sobretudo sobre si mesmo. Veja no poema de número quarenta e nove:
Cada um sabe
de seus temores,
de suas dores,
de seus contágios,
e desfechos
trágicos.
Cada um sabe de si,
ou pelo menos deveria saber.
Cada um vive
(ou finge viver)
suas distâncias e isolamentos
e constrói seus próprios muros
de ressentimentos.
Cada um é ausência do outro
na medida exata
do coração despedaçado.
Cada um é seu próprio pecado
e salvação.
Cada um é sim
e não
ou simplesmente o oposto.
Cada um sente sozinho
o gosto
da própria solidão.
Nada de novo
neste final
de verão
".

E a alta filosofia? Sabe aquela busca do sentido da vida através das perguntas clichê que ouvimos nos programas de TV a cabo? Quem somos nós? De onde viemos e para onde vamos? Pois é, a crise existencial que deveria estimular a consciência de todos, mas na prática isso não ocorre pois a maioria só pensa nos boletos, ou seja, é mais desesperador viver neste mundo para quem pensa além, caso dos poetas e dos músicos, ou seja, Mamuth vive esse dilema em dose dupla!

Mamuth insinua a sua insatisfação sobre os rumos da humanidade. Nesse aspecto, deve existir algo maior que as preocupações prosaicas que geram insônia na maioria. Leia o ótimo poema cinquenta um e reflita:

"
Esperemos aqui mesmo,
poetas
e tolos!
Não é hora
de partir.
Há de vir
algo
ou alguém
que nos tire do chão.
A cadeira do dentista,
a ascensorista,
um piloto de avião.
Há de haver
algum alento,
um pouco de ilusão
e encantamento
na carne dura
onde fulgura
nosso pálido
dia a dia.
(Não fui eu quem inventou a Poesia.
Foi ela quem me pariu.
E à revelia.)

Eis que o autor homenageia um artista como ele e que enxergara muito na frente, mesmo tendo vivido cem anos atrás. Pois o poema cinquenta e seis é dedicado ao grande Mário de Andrade.

(para Mário de Andrade)

"Debaixo dos lençóis,
tua mão
a me ensinar
o tamanho
das imensidões.
Manso
e sem intenções,
eu cabia inteiro
no teu olhar.
O nome disso
era amar.
(Verbo intempestivo)
"

Marcos Mamuth ao vivo a tocar o Blues com maestria! Fonte: Internet

E o Blues se pronuncia nessa configuração toda. Blues é sentimento à flor da pele, é raiz primordial, é expressão pura do mais profundo âmago humano e no caso, é uma especialidade de Mamuth enquanto músico. Não basta tocar o Blues, não basta compor o Blues, para o artista Mamuth, o Blues também merece a poesia (e vice-versa).  Leia sobre essa menção expressa na poesia de número sessenta:

"
Estávamos a sós,
ao pé da escada.
O crepúsculo da cidade ainda não era tão cinzento
e triste.
Risos,
vozes.
Epiderme em alvorada.
Tempo.
Há anos venho seguindo teus passos errantes.
Tanto,
que os meus próprios são, agora,
pouca coisa.
Mas existe o blues para esses momentos.
Felizmente,
 existe
 o
 blues
".

E por que não questionar a própria poesia? Não é o papel do artista também contestar? Leia com atenção a poesia de número sessenta e um:

"
Para que serve um poema?
Para nada.
Há de haver no mundo entes que não sirvam para nada.
Há de haver o desrespeito à boa ordem causal materialista.
Há de haver o artista
das palavra ditas entre linhas.
As leitoras,
meninas apaixonadas,
expiram estrelinhas
e choram gotas de orvalho;
olhinhos virados,
sonhando acordadas
com seus príncipes secretos
e desencantados.
(Doces meninas
abraçadas aos travesseiros
com desejos eternos,
tão passageiros…)
Há de haver sonetos,
dos requintados
aos obsoletos.
Caso contrário,
a vida fica demasiadamente pedra,
e a rudeza do real se encrava nos dias
para não partir jamais
".

Auto crítica ou auto análise? Não nos esqueçamos que o poeta também é psicólogo. Ele trata os outros, ele busca se entender e se curar e como professor, ensina os aspirantes a psicólogos a se tornarem profissionais capazes de curar pessoas.

Daí a buscar no seu interior muitas respostas, mediante questionamentos e constatações foi um exercício de fácil conclusão dada a sua capacitação pessoal como profissional e professor. Leia tal reflexão através da poesia de número sessenta e três:

(Para o autor deste livro)

"Era isso
meu tempo de viço:
Os verões passando,
(fugindo em segredo)
e eu me escondendo
em meu próprio medo.
O amor tinha-me pouco apreço
Era assim.
Daí,
fui feliz em mim,
me namorei
(fui todas as meninas
que inventei,
todas as bocas
que me beijei).
Depois,
os anos passaram.
Já era tarde.
Mas antes as tardes do que nunca!
E mesmo que ardas,
garoto de tristes olhos cravejados de esperas....
Mesmo que te esfaqueiem pelas costas,
que te abandonem,
entediadas e indispostas,
as ninfas de janeiro,
eu ainda te espero
(sempre e por inteiro)
naquele mesmo banco de pedra,
menino tristonho...
menino-quimera,
menino-memória.
Carne do meu karma,
Cicatriz da minha história
".

Que estado de beatitude é poder chegar em um ponto no qual chegamos à conclusão de que somos plenamente felizes e cabe a pergunta: o que precisamos para chegar nesse ponto? Pois para o poeta, Marcos Mamuth, a felicidade é escrever poesias cheias de imagens ricas, tocar Blues na sua guitarra a mirar a Lua cheia das noites de sexta-feira, entremeadas pelos bons goles de um bom café bem quente e observar os meandros do ser humano, como poucos enxergam. Leia a poesia de número setenta, a última que fecha a obra:

"Não há lar
ou porto que me acolha;
apenas mar,
areia
e salgados segredos
de sereias.
Não há bar
ou conforto que me espere;
apenas ar
rarefeito
e sagrados sonhos
desfeitos.
O passado não me deixa só:
memórias da praia chegam
em ventos volúveis
e línguas de maresia.
Mesmo assim, a tarde é bela;
existem amigos,
blues
e poesia.
É o bastante.
Estou em mim
".  

Por fim, deixo a minha impressão pessoal sobre o livro, no sentido de que a sua leitura muito me agradou. Vislumbrei diversas nuances na poesia de Marcos Mamuth, conforme já pude elencar anteriormente, a me convencer de que no caso desse artista, as suas qualificações se misturam. Suas poesias são musicais, suas músicas contém muita poesia e o psicólogo que analisa as entrelinhas do ser humano, colabora muito para que o artista atue nos dois campos com muito conteúdo para criar suas poesias e letras de canções.

Recomendo muito a leitura do livro: "70 poemas sem nome" de Marcos Mamuth por tudo o que observei e impressões essas que eu tenho certeza, o leitor vai identificar de pronto e certamente achar outras particularidades contidas na obra.

Abaixo, eis o release do autor (publicado no livro):

"Marcos Mamuth é também (des)conhecido como Marcos Alberto Taddeo Cipullo. Nasceu em São Paulo, no bairro da Mooca, um dia depois da morte do cantor Nat King Cole.

Guitarrista e compositor desde 1979. Escritor desde 1986. Psicólogo desde 1988. Professor universitário desde 1993; a partir de 2008, na Universidade Federal de São Paulo (Campus Baixada Santista).
Poeta desde sempre
".

Leia também no meu Blog 1, a resenha que eu escrevi sobre o CD "Turbulência" do guitarrista, cantor e compositor, Marcos Mamuth.
Eis o link para acessar a resenha:

http://luiz-domingues.blogspot.com/2021/07/cd-turbulenciamarcos-mamuth-por-luiz.html

Ficha técnica:
Marcos Mamuth – autor
Eduardo Dieb – Edição e capa
Fotografia – acervo do autor
Árvore Digital Editora SP/SP
www.arvoredigitaleditora.com.br
Publicado em abril de 2022
1ª edição
ISBN – 978-65-00-41870-5

Para conhecer melhor o trabalho artístico de Marcos Mamuth, acesse:

Site:
https://mmamuth.wixsite.com/mamuth

Canal do YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCgHSLLEHvzObq6sUuh9yTYA/featured

O álbum "Turbulência" também disponível no YouTube:
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lB3KnOFPKYud7IhWBhj7aYrMMWldd_T08&feature=share

Instagram:
@marcosmamuth

Facebook:
https://www.facebook.com/marcos.mamuth

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