sexta-feira, 15 de junho de 2018

O Superestimado Festival das Nações - Por Luiz Domingues


A ideia em si, logo em seu nascedouro, até que não foi ruim. Um campeonato mundial promovido entre seleções nacionais, realizado a cada quatro anos, não haveria por atrapalhar a vida de nenhum clube, dado o seu caráter bem espaçado. E a competição por sua vez, tratada como algo lúdico, mais a configurar-se em uma festa de congraçamento entre nações amigas, do que algo a ser disputado sob alta competitividade.

Sobre a sua concepção inicial, em promover todos os jogos da competição em um país sede, também pareceu sensata tal resolução ocorrida em 1930, a facilitar a logística complicada, em uma época na qual a aviação comercial já existia sob pleno funcionamento, porém à mercê de sérias limitações por conta da tecnologia mais modesta à disposição compatível para a época, e isso equivale também ao quesito das comunicações. O cinema e o rádio eram os grandes veículos de comunicação de massa, mas considere-se que o cinema recém havia conseguido inserir o áudio em sua produção regular e as imagens coloridas igualmente, com novos e ainda bem incipientes recursos tecnológicos, além do mais, o rádio também padecia com a questão do alcance ainda bem rudimentar, sem a presença de satélites e com antenas primitivas a espalhar as suas ondas, mediante pequeno alcance. 

Fora disso, já havia o telefone (o telex ainda era experimental e só entraria em operação comercial em 1933), bastante insípido, ainda, com jornais e revistas a reportar notícias sob extrema lentidão, sempre defasados em relação aos fatos mais recentes ocorridos etc.

Mas convenhamos, o interesse popular também não era muito significativo. O futebol já era um esporte popular em muitos países e clubes importantes já tinham forjado uma boa tradição, a amealhar torcedores e interesse o suficiente para manter campeonatos bem organizados, para os padrões da época e jogos entre seleções nacionais já existiam há muitos anos, inclusive, torneios continentais, taças regionalizadas com valor oficial etc. 

Todavia, em muitos países, esse esporte nem era praticado, portanto, estava longe ainda de ser uma modalidade com alcance mundial. Todas as condições elencadas acima, referem-se ao ano de 1930, ocasião em que inventou-se a Copa do Mundo, sem adesão de todos os países, com algumas nações inclusas apenas, e cujas participações foram feitas mediante convites, portanto, sem a existência de extensivas eliminatórias para classificar os melhores times etc. 

Entretanto, o negócio (no sentido comercial, mesmo), cresceu, e a cada nova edição, aquilo que deveria ser um torneio de verão, com clima de mero congraçamento social, foi alçado a um grau de importância no imaginário popular, acima dos clubes e de suas tradições, a suplantar campeonatos e ligas, para vir a torna-se, no imaginário popular, devo salientar, supostamente o supra-sumo do futebol. E por atrair tanta atenção do público em geral, naturalmente tornou-se uma oportunidade de ouro para empresas e publicitários. Sob uma intensa retroalimentação, movida por interesses comerciais bilionários, quiçá, trilionários, tal evento foi transformado em um dos maiores, senão o maior do planeta a superar o interesse por outros mega eventos esportivos, tais como as Olimpíadas e o Super Bowl (a final da liga norte-americana de seu "futebol", que na verdade é um esporte derivado do Rúgbi), mesmo com este último a representar um esporte cujo interesse não possui nem 1% do poder planetário que o futebol detém, mas ao tratar-se da maior celebração esportiva, da maior nação da Terra, os Estados Unidos da América, gera um estardalhaço tamanho em termos de volume de dinheiro, que justifica a sua presença nesse seleto rol dos mega eventos esportivos.

Eu nunca fui um admirador do jogador, Sócrates, por motivos óbvios, para quem conhece-me pessoalmente e sabe por qual clube eu torço, embora eu reconheça que ele tenha sido, de fato, um jogador de alto nível técnico. Não obstante reconhecer a sua capacidade muito acima da média, faço a ressalva de como atleta, ele foi um mau exemplo sob vários aspectos, ao acintosamente adotar a postura do antiprofissionalismo, por não cuidar de seu físico adequadamente como espera-se de um jogador profissional. 

Alguns argumentarão que mesmo ao não cuidar-se, ele jogava muito e nesse caso, eu contra-argumento que pelo contrário, se não bebesse, fumasse e treinasse com afinco, jogaria ainda mais do que jogou. Tudo bem, ele não está mais entre nós, portanto é desagradável entrar nesses (de)méritos de sua personalidade no tocante à sua conduta esportiva, mas eu preciso acrescentar mais um dado importante sobre ele. 

Trata-se de sua personalidade forte a emitir opiniões políticas. Fato raro no futebol dos anos setenta e oitenta, décadas onde ele construiu a sua carreira, ter existido um jogador dotado de um nível intelectual não usual entre a média dos seus pares, e ainda mais a proferir opiniões sobre questões sociopolíticas, culturais e comportamentais. Tirante o seu colega, Afonsinho, que atuou nos anos sessenta e setenta e um ou outro caso isolado e não tão proeminente, Sócrates destoou muito de seus colegas, formado por uma imensa maioria de jogadores com baixíssimo nível educacional, ao se revelarem como semianalfabetos e com baixo nível cultural. 

Sendo a grande maioria oriunda das camadas mais carentes da população, aliás, até hoje é assim na média, o normal é ter origem muito humilde, por ser egressos das favelas das grandes cidades ou dos rincões sertanejos remotos, de pequenas localidades interioranas e muito carentes. Fora o poderio intelectual, Sócrates usou de seu carisma para expressar as suas opiniões fortes, mas como eu já falei anteriormente, além de não gostar de sua atuação como jogador, nunca simpatizei com sua linha de pensamento, apesar de concordar com alguns pontos que ele defendia. E dentre tais questões em que concordei, eis que um dia ele proferiu algo muito forte e que causou uma celeuma tão grande, que ele foi praticamente obrigado a retratar-se sob ameaças de punições, no âmbito esportivo: -“Copa do Mundo não passa de um festival de nações”.

De fato, a afronta que ele proferiu não dizia respeito ao torneio em si, tampouco ofendia as seleções, e muito menos as nações que esses times montados por federações colocam em campo para supostamente representá-las, mas agrediu no entanto, o imenso esquema de marketing criado para fazer desse produto, algo hipnótico a extrair da população, o máximo em termos de exploração comercial. E assim, ao pensar igual nesse aspecto e também a enxergar o microcosmo dessa engrenagem, realmente desanima-me ainda mais a proximidade do evento, a cada quadriênio. Senão vejamos:


No imaginário popular, uma seleção nacional, a fim de representar o país, monta o seu time com o que tem de melhor, em termos de jogadores. Mas se no início desse tipo de competição, fora esse o raciocínio, já faz décadas que isso não ocorre na prática. Há uma intensa movimentação de bastidores a envolver dirigentes das federações em conluio com empresários de jogadores, e mega investidores a manipular tais escolhas nas convocações oficiais. Por outro lado, ao enxergar o ponto de vista dos clubes, há de levar-se em conta que não obstante gastar-se fortunas para contratar jogadores e manter em dia os seus salários astronômicos, a ideia em ter que submeter-se à interferência das federações a convocar seus funcionários, é algo muito invasivo. 

Sim, porque não trata-se apenas de um mês a envolver a tal da Copa, mas remonta à extensiva fase de eliminatórias, portanto, a Copa, que em tese é quadrienal, na verdade é bienal. Sendo assim, a todo instante, os clubes sofrem desfalques de seus melhores jogadores, e muitas vezes em fases decisivas de campeonatos importantes, por conta da necessidade em cedê-los para as seleções nacionais. E cabe acrescentar que além das eliminatórias, existem os torneios continentais e no caso de um continente como a Europa, por exemplo, existe a eliminatória da Eurocopa, ou seja, seleções europeias atuam o tempo todo, e assim, imagine o inferno que isso representa para os clubes, que pagam muito e usam pouco os seus melhores jogadores. Além do mais, para todo o torneio, faz-se mister a marcação de partidas amistosas a visar a devida preparação de um time e em todas as ocasiões, corre-se o risco enorme de um jogador sofrer contusão a serviço de suas seleções e assim desfalcar os seus clubes por mais tempo, ainda.

Pelo ponto de vista da mega comercialização do evento, os publicitários exageram ao cubo. É a hora de vender e atrelar o pseudo patriotismo sob chuteiras como mote barato para qualquer coisa. De chiclete a avião, tudo tem que remeter ao ufanismo barato, enjoativo, apelativo e quiçá, sob o efeito de uma lobotomia coletiva, além das últimas consequências. Fora a insistência deselegante em forjar a ideia do ódio aos argentinos, uma das maiores imbecilidades perpetradas pela publicidade brasileira, a cada quatro anos. Além de tudo, a manipulação sociopolítica, com o governo em todas as suas esferas, partidos, militantes e agora com essa rede de robots a trabalhar na internet, diuturnamente no afã em espalhar notícias falsas com o objetivo explícito de destruir pessoas em sua reputação; ódio em doses maciças; repúdio a instituições, distorcer ideologias e tudo mais, o futebol, via “Copa”, torna-se a arma da vez a promover todo o tipo de ações abomináveis.


A ideia de tal torneio tornar-se algo tão grandioso, ao ponto de decretar-se ponto facultativo e assim parar o país em pleno dia útil, é de uma insanidade sem tamanho. Em que ponto a massificação chegou, para que as pessoas não questionem uma paralisação geral de quase todas as atividades de um país inteiro, ou seja, chega a ser assustador. 

A pensar-se no caso exclusivo do Brasil, o fato da CBF centrar todas as suas forças na formação de sua seleção e negligenciar acintosamente os campeonatos que ela mesma organiza, enoja-nos. Sei que os clubes tem culpa nesse processo por não contribuir com uma mudança de mentalidade através do conselho arbitral do qual fazem parte e votam, mas que é uma indecência e também um ato de péssima escolha comercial, não resta dúvida. Sei que a CBF ganha muito com a manutenção de seu time de camisa amarela, mas ganharia muito mais ao investir pesado e transformar a liga brasileira na mais vendida no mundo. Se uma liga, onde em tese só existem dois times que disputam o título, todo o ano, caso da Espanha, é bilionária, aqui poderia gerar muito mais por ser um campeonato muito mais disputado, no entanto, é óbvio que a mesquinharia em dividir o bolo, fomenta a ideia para se investir somente em seu time da camisa amarela, como uma espécie de "Harlem Globetrotters" do futebol. 

Por fim, quando olhamos o mar de lama em que chafurdam as instituições que regem o futebol, notadamente as confederações nacionais; continentais e a mundial, realmente é difícil pensar nesse torneio, com a mínima simpatia. Então, algumas pessoas ficam atônitas por saber que eu detesto a Copa do Mundo e simplesmente ignoro a sua realização, há décadas, mesmo sendo um viciado em futebol, assumido. Parece uma contradição incompreensível, mas eis acima um arrolamento de alguns (não todos, existem outros aspectos que nem abordei) motivos a justificar a minha contrariedade com tal evento. 

Indo além, acho o torneio, um acontecimento menor, irrelevante mesmo e que não aufere nada sob o âmbito esportivo. 

Ainda bem que as séries C e D do brasileirão, não vão parar, assim a garantir que eu não pereça por tédio nesse mês em que o festival das nações monopolizará tudo, ad nauseam. Sócrates tinha razão nesse aspecto.

8 comentários:

  1. Luiz Domingues grande e competente analise do "pais do futebol" . Obrigado por compartilhar seus pontos de vista , sempre coerentes . a "irrealidade" é observada por alguns..pena que a maioria dos brasileiros não enxergam por esse angulo ,e se transformam nessa época como se tudo se resumisse a essa droga de evento ..Obrigado

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    1. Olá, que bom que entendeu bem o meu ponto de vista, pois tenho a consciência de que ele é de fato, bastante controverso, visto que aponta para a contramão da opinião geral. Bem, são muitas as razões, e entre elas, é um fato que a superestimação do evento tem efeito hipnótico e assim torna-se um grande atrativo para os filhotes de Goebbels da atualidade.

      Grato por ler, postar comentário e elogiar !

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  2. Vejam essa matéria...https://www.diariodobrasil.org/enquanto-a-copa-do-mundo-diverte-o-povo-25-politicos-tiveram-processos-arquivados/ sou apolítico , mas isso mostra a realidade infelizmente

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    1. Grato por dar a dica sobre o link. De fato, manobras políticas abundam. Parlamentares ficam o mandato inteiro a postergar decisões importantes para o benefício do povo ou através de chicanas para evitar a ação da justiça contra seus malfeitos, e em épocas festivas assim, aproveitam para aprovar em toque de caixa, medidas que os beneficiam pessoalmente ou arquivam o que prejudicar-lhes-ia. Enquanto não melhorar o nível do povo brasileiro, não há esperança, pois o parlamento e o executivo (podemos incluir também o judiciário nisso, o que prova que erudição mediante educação superior também por si só, não resolve o problema), pois todos os quadros saem do mesmo povo. Só pela mudança completa da mentalidade o Brasil vai sair do atoleiro. Grato por trazer o adendo !

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  3. Adorei a sua publicação sobre este assunto que esclarece e vem de encontro ao que penso a respeito. Apreciei os comentários abaixo que mostram também muito bem mas que acredito que va muito além ainda do que ocorre na esfera política e judiciária. Ontem mesmo fui praticamente massacrado em um grupo que faço parte por externar opiniões semelhantes e por ficar literalmente Feliz com a derrota brasileira. Me enoja todos os meandros envoltos em uma disputa como esta que só serve para manipular as pessoas se assemelhando ao circo de Roma. Na verdade falta pouco para sermos devorados por feras também. O massacre é enorme em um evento como este pois se aproveitando do mesmo e da felicidade dos pouco esclarecidos que prefiro chamar de "massa impensante" verdadeiras atrocidades sao cometidas. Parabéns pela atitude e a excelente matéria Luiz.

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    1. Olá, Vinicio !

      Exatamente ! Suas palavras são carregadas com sensatez, gostei muito do seu comentário, que trouxe mais riqueza ao debate proposto pela matéria.

      Essa situação gerada pela Copa, não tem nada a ver com patriotismo, essa seleção não representa o país, mas sim a CBF, uma das entidades mais corruptas do planeta, e portanto, é digna de vergonha. Sobre a manipulação política que você citou, concordo plenamente. Está quase encerrada a Copa de 2018, e ainda estamos longe de resolver a roubalheira inacreditável que ocorreu na Copa de 2014, e não só pelos estádios faraônicos construídos com superfaturamento, mas por mil outras obras, principalmente no setor de transportes, o que é insuportável.

      Grato por trazer sua opinião forte e bem embasada. E também pelo elogio !

      Abração !

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  4. Feliz que tenha apreciado o comentário Luiz. Estamos juntos. Aprecio muito os seus textos mas infelizmente por várias razões nem sempre tenho a oportunidade de comentar. Estou sempre presente no entanto. Forte abraço!

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    1. Eu que agradeço pelo seu apoio ! Entendo que não seja possível comentar sempre, mas quando possível, deixe sempre a sua opinião bem embasada, pois sempre enriquece a discussão.

      Abraço !

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