quarta-feira, 4 de abril de 2018

CD 10 Anos!/ Medusa Trio - Por Luiz Domingues




Conheço o guitarrista, Milton Medusa, há alguns anos. Sei que é um estudioso, professor de uma das mais prestigiadas escolas de música de São Paulo e do Brasil e que costuma envolver-se em inúmeros projetos musicais, a passear por muitos estilos musicais variados e sob circunstâncias ecléticas, Ao ir de trabalhos como “side-man” de cantores, a bandas tributo a artistas internacionais, direção e produção musical para outros artistas e gravações. Porém, ante tanta versatilidade, é claro que dedica-se ao seu trabalho solo, igualmente e com afinco. 

Neste caso, a sua banda, o “Medusa Trio”, está na ativa há muitos anos e recentemente lançou um CD, denominado: “10 Anos!”, justamente para celebrar a sua longevidade e não deixou por menos ao marcar a efeméride (iniciou atividades em 2007 e lançou esse trabalho ao final de 2017), sob altíssimo estilo.


Milton tem como base primordial de sua música, o Hard-Rock praticado na década de oitenta, predominantemente, mas é bem versado no Blues e mediante muito estudo, desenvolveu-se também no mundo do Jazz-Fusion, que tem as suas vertentes em ramificações variadas, mas a salientar a amálgama do virtuosismo instrumental, como um modus operandi. Contudo, eclético por natureza, ele também aprecia a música brasileira de uma forma geral, o Hard-Rock e o Progressive Rock dos anos setenta e claro, muita música instrumental, portanto, é por essa riqueza e bom gosto todo que o seu trabalho transita. 

Além de seus excelentes companheiros, Fernando Tavares (baixo) e Luis Pagoto (bateria), ambos igualmente instrumentistas de altíssimo padrão e professores famosos na mesma escola onde Milton leciona, o disco contou com muitos convidados ilustres nesse álbum, e dessa forma, enriqueceu-o sobremaneira. Entre tantas feras, o CD apresenta os guitarristas convidados, em participações super inspiradas: Robertinho do Recife (Metalmania; Fagner; Gal Costa), Sergio Hinds (O Terço), Mozart Mello (Terreno Baldio) e André Christovam (Fickle Pickle). 

O tecladista, Fernando Cardoso (Violeta de Outono), toca em várias faixas. Willie de Oliveira, ex-vocalista do Rádio Táxi, canta a única canção vocalizada e o excepcional guitarrista/tecladista, Daril Parisi (Platina), faz backing vocals nessa mesma faixa. 

O áudio do CD é de ótimo padrão, com mixagem caprichada a realçar muitas sutilezas nas sobreposições de guitarras, além de garantir não só à guitarra, mas também ao baixo e bateria, timbres muito bons, encorpados. Há uma concepção sonora mais próxima dos anos oitenta, é bem verdade, com um certo excesso de reverber, mas esse também é um aspecto Pop a ser observado, embora trate-se de um disco instrumental em 90% da obra, portanto, deduz-se que a banda não tenha tido tal preocupação comercial, mas a sonoridade foi uma questão de escolha pessoal. 

A capa do álbum é discreta, porém, bonita, traz a figura petrificada da medusa mitológica em pleno mar, com a água espumante do oceano a chocar-se com ela e na contracapa, segue o padrão com a continuidade dessa imagem. 

No encarte, eu apreciei a ficha técnica caprichada com muitas informações, inclusive a conter breves comentários escritos pelo próprio, Milton, a respeito de cada faixa, e nesse aspecto a se mostrar elucidativo e até poético em alguns momentos. Além de uma foto promocional da banda, posada, mas em postura de apresentação ao vivo, a empunhar instrumentos e sob uma bela paisagem do mar, visto que Milton é natural da cidade de Santos-SP, e toda a sua carreira foi construída primordialmente com tal bela cidade praiana a inspirá-lo. Falo a seguir, sobre as músicas dessa obra:


Sábado de Sol” é a primeira faixa do álbum e apresenta-se como um Blues clássico em sua estrutura harmônica e rítmica, a soar muito bem nas mãos de músicos virtuoses por natureza e preparo técnico, mas que tiveram o bom senso em estabelecer um arranjo comedido, sem extrapolar as tradições do gênero. Portanto, a tocar com extrema desenvoltura e bom gosto, mas ao mesmo tempo na observação das fronteiras tradicionais do Blues, o Medusa Trio faz aqui um Blues muito gostoso de se ouvir e por que não, até dançar, sem amarras ou constrangimentos, a estabelecer uma alegria natural, muito gostosa em saborear-se. Gostei dos solos mais ardidos e da base limpa de guitarra. 

Ondas Rolando no Mar”, vem a seguir. Aqui a aposta é no Pop oitentista com certa queda pelo Hard-Rock daquela década. Gostei muito da base feita sob belos arpejos, e também da linha de baixo na parte A, com efeito "looping" e apoio firme da bateria. Lembra bandas oitentistas que buscavam o Pop, em essência, e tinham influência Fusion, no estilo do “Toto” e demais contemporâneas.

Guitarras Brasileiras”, pelo seu título, já dá a ideia de que Milton faz uma linda homenagem a guitarristas brasileiros que tinham a forte influência da MPB sob múltiplas vertentes e também eram/são Rockers por excelência, casos gritantes de Pepeu Gomes, Armandinho, Paulo Rafael e Robertinho de Recife, entre outros. Ou seja, a se tratar de grandes feras e Milton não se fez de rogado, pois a sua atuação é espetacular nessa faixa, com balanço, solos e bases incríveis, incluso com a introdução de violões para dialogar com as guitarras. Gostei muito também de uma parte C, muito criativa. 

Anos Setenta”, é a quarta canção e nessa faixa, o Riff Hard-Rock, bem ao estilo dos anos setenta dá início aos trabalhos, mas é nítido que há uma boa influência do Blues-Rock, igualmente. Fernando Tavares brilha intensamente ao fazer um solo muito técnico e ao mesmo tempo, ultra melódico, a mostrar seu talento criativo e sob um belo timbre, devo registrar. Tem também nas partes B e C, atrativos muito interessantes e Milton mostra toda a sua técnica, inclusive no uso da alavanca, bem ao estilo de guitarristas mais contemporâneos seus, casos de Joe Satriani e Steve Vai. E o Riff final, sob uma convenção rápida e muito precisa, mostra a banda muito afiada. 

O Blues do Rock”, como o título sugere, recorre ao Blues como base, mas sob uma pegada quase a beirar o Country-Rock virtuose de uma banda como o Dixie Dregs, por exemplo. Fernando Tavares faz mais um solo espetacular de baixo e o baterista, Luis Pegoto, brilha, ao soltar frases muito pontuais, mesmo ao manter uma batida tradicional, na maior parte do tempo. 


Libertadora”, mostra um Hard-Rock em essência, daqueles baseados no estilo “AOR”, bem do final dos anos setenta/início dos oitenta, onde bandas como “Foreigner”, “Boston” e “Journey” foram os seus maiores expoentes, sem dúvida. Contudo, há uma pitada de Rock Progressivo setentista, pois como Fernando Cardoso tocou órgão Hammond nessa faixa, um ligeiro interlúdio desse estilo é notável, ao trazer lá pelo meio da canção, uma evocação do som do “UK” e dos discos solo do tecladista, “Rick Wakeman”, sem dúvida. Os solos de Milton impressionam não só pela técnica, mas pelos timbres, muito bonitos.


Ganhar e Perder” é a única faixa cantada e é super Pop Rock dos anos oitenta e não é para menos ao contar com a voz potente do ex-vocalista do “Rádio Táxi”, Willie de Oliveira. O refrão é bem "grudento", tem algumas convenções mais complexas que lembram o som do “Taffo”, uma referência óbvia e da qual acho não carecer nenhuma explicação adicional.


6 cordas e Muitas Alegrias”, antes mesma de ser escutada, tem no encarte uma explicação muito bonita do Milton, sobre sentir-se gratificado em ser músico e conviver com tantos músicos incríveis com os quais já tocou e toca na atualidade. E sobre a canção em si, trata-se de uma mini suíte, onde Milton construiu diversas partes distintas para dar vazão aos seus convidados poder atuar. Portanto, contém o trecho Progressivo, para que Sergio Hinds fizesse o seu solo; Hard-Rock para a atuação de Robertinho de Recife, Jazz-Fusion com Mozart Mello, a brilhar e finalmente e André Christovam, com o seu slide, fecha com o solo em ambientação Blues-Rock. E ao final, um trecho onde todos, incluso, Milton, solam sob revezamento. Uma faixa poderosa, portanto, com tantas feras juntas.


Trem Azul”, levou-me á reflexão de que quando pensei já ter ouvido todas as possibilidades dessa linda canção de Lô Borges & Ronaldo Bastos, sob múltiplas interpretações, incluso as clássicas, do próprio, Lô e de Elis Regina, eis que o Medusa Trio surpreende-me e apresenta-a sob uma vestimenta Blues, belíssima. Adorei a introdução bastante criativa e a levada vigorosa da banda.


O Blues do Medusa”, tem uma condução melódica na guitarra, espetacular, a lembrar, pelo estilo e timbre, o som de Jeff Beck. Aqui a base harmônica é bem Jazzy e a sobreposição de guitarras, solos e base, é muito bonita. Essa faixa foi gravada muitos anos atrás, em 2009, com o baixista, Ronaldo Lobo, na formação.


Gravado no estúdio Purosom, de São Paulo, em 2017, tendo como técnico de gravação; mixagem & masterização, Edson Paulino. 
As intervenções do órgão Hammond, foram gravadas no estúdio, Áudio Freaks, com o técnico, Renato Coppoli. 
Mozart Mello gravou sua guitarra em seu Home Studio, em São Paulo. 
Robertinho de Recife gravou no RR Studios - Polorio, no Rio de Janeiro.
André Christovam gravou no Music Studio em Glascow, na Escócia.

Direção de estúdio: Milton Medusa e Edson Paulino

Pré-produção de Milton Medusa e Fernando Tavares.

Direção de arte: Michel Camporeze Teér

Fotos: Deca Pertrini

Formação do Medusa Trio nesse álbum

Milton Medusa: Guitarra

Fernando Tavares: Baixo

Luis Pagoto: Bateria

(Faixa 10 – Ronaldo Lobo – Baixo)


Músicos convidados:

Fernando Cardoso: Teclados

Sergio Hinds: Guitarra

Robertinho de Recife: Guitarra

Mozart Mello: Guitarra

André Christovam: Guitarra

Willie de Oliveira: Voz

Daril Parisi: Backing Vocals


Agradeço muito ao Milton, pela amizade e inclusive por ter sido um dos maiores incentivadores para que eu empreendesse esforços para escrever o meu livro autobiográfico sob o foco da minha carreira musical e por ter apresentado-me ao Fernando Tavares, que foi o meu editor na revista Bass Player, no período em que eu fui colaborador desse veículo. E pela inclusão do meu nome na lista de agradecimentos aos apoiadores do seu trabalho, fiquei muito honrado e feliz por isso.


Para conhecer melhor o trabalho do Medusa Trio, acesse o seu site oficial:




O canal de You Tube da banda:




E a página da banda, no Facebook:



Eis aí um trabalho que eu recomendo, por apresentar música de alto quilate, feita por músicos virtuoses, mas que observam o bom senso acima de tudo, portanto, não é um trabalho feito para ser apreciado apenas por músicos, mas agrada a todos.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Filme: Velvet Goldmine - Por Luiz Domingues



Quando pensamos na história do Rock, ocorrida  nas décadas de sessenta e setenta, principalmente, acho que cabe parodiar a música do velho guerreiro, o inesquecível, Chacrinha: “o Rock britânico está com tudo e não está prosa”... pois como se não bastasse ter as quatro bestas do apocalipse em suas fileiras (The Beatles; The Rolling Stones, The Who e Led Zeppelin), os britânicos legaram-nos a incrível safra com artistas oriundos da dita “British Invasion” de 1964; a onda Mod; Folk & Soft Rock, a psicodelia de Canterbury que revelou o Pink Floyd (entre outros ícones), The Kinks, Cream, Blues-Rock, Hard-Rock, Space Rock, Rock Progressivo e muito, muito mais...

Pois eis que no início da década de setenta, em meio a tantas vertentes que prosperaram de uma forma absurda no Reino Unido,  ainda houve mais meios para dar-se ao luxo de protagonizar três grandes explosões sonoras ao mesmo tempo, e cada uma, com inúmeros artífices que revelaram-se faróis de alcance mundial. Tais escolas estilísticas eram distintas entre si, mas a observar em comum a exuberância artística e o poder arrebatador entre os seus seguidores. Falo sobre o Hard-Rock; Progressive Rock e Glam-Rock (ou Glitter Rock).



"Velvet Goldmine" é um filme produzido ao final dos anos noventa, cuja história é ambientada no universo do Glitter Rock, da década de setenta. Musicalmente a falar, o Glitter/Glam Rock, foi bastante influenciado pelo Rock visceral dos primórdios, anos cinquenta, mas também aberto a manifestações da música europeia em geral, de décadas passadas, ligadas ao burlesco, vaudeville, polka, folk e outras manifestações do cancioneiro antigo e situados entre as duas guerras mundiais do século XX. 

Sob o ponto de vista estético, essa vertente foi marcada por uma forte influência da literatura e cinema orientado pela Ficção Científica, a versar sobre civilizações extraterrestres, muitas vezes além da literatura de Oscar Wilde e Lord Byron, ao apostar em posturas dândi, com direito a verborragia de forte apelo intelectualizado, a conter bastante sarcasmo (nesse caso, nada mais tipicamente britânico), cinismo e ironia fina. Nessa mistura explosiva, surgiu então uma estética  em torno da androgenia a misturar-se com citações alienígenas, ao carregar no uso  de um visual de um visual exagerado e fortemente efeminado, que gerou furor em todo o Reino Unido e espalhou-se pelo mundo rapidamente, ao criar a onda “glam”.  

Entre seus principais artífices, destacaram-se artistas tais como: David Bowie & The Spiders From Mars, T.Rex, Roxy Music, Mott the Hoople, Slade, Wizzard (do guitarrista, Roy Wood); Mud, Sweet; Gary Glitter & The Glitter Band, Silverhead e o próprio Queen, que emergiu dessa cena, além de muitos outros artistas, como também os norte-americanos, Lou Reed; Iggy Pop e o grupo New York Dolls, que reforçou o time do outro lado do oceano Atlântico (bem entendido que os americanos tinham uma sonoridade bem mais áspera, quase gutural, em via de regra).


“Velvet Goldmine” é o título de uma música de David Bowie e deveria estar na trilha desse filme, naturalmente, mas o grande camaleão vetou a sua inclusão, assim como qualquer outra música sua. 

A sua primeira alegação foi a de que não queria desperdiçar esse cartucho, visto que ele mesmo planejava produzir um filme sobre o movimento Glitter inglês, do qual fora seu grande monarca. 

Uma pena, Bowie deixou-nos no início de 2016, e não concluiu tal projeto em lançar uma obra desse teor, e acredito que através dele no comando, teria sido um estouro. Infelizmente, além de vetar as suas canções, para fazer parte da trilha sonora, ao longo da produção de “Velvet Goldmine” emitiu notas na imprensa a mostrar-se contrariado, pois o personagem principal do filme, o astro Glam, Brian Slade (interpretado por Jonathan Rhys-Meyers), era bem inspirado na sua pessoa, Bowie, e sobretudo em relação a um de seus principais alter-egos, Ziggy Stardust, o alienígena andrógino que vem para o planeta Terra e torna-se um Rock Star à frente de sua banda, “Aranhas de Marte” (“Spiders From Mars”).

“Fazendo amor com seu próprio Ego”, como Bowie canta na letra da canção, “Ziggy Stardust”, o personagem Brian Slade é de fato bastante semelhante ao que Bowie construiu na sua trajetória musical. 


Na foto à esquerda, cena de show real com David Bowie e o guitarrista, Mick Ronson. E à direita, cena do filme, com o personagem, Brian Slade. Intencional a semelhança, naturalmente

Não se trata de uma biografia velada simplesmente, pois o roteiro do filme lança uma gama de variantes que tendem a misturar isso, mas que Brian Slade tem muito de Bowie/Ziggy, isso é inegável.

Outra observação que o filme angariou da crítica, foi a estrutura narrativa praticamente igual à do clássico noir, “Citizen Kane” (“Cidadão Kane”, de Orson Welles, lançado em 1941). 

A comparação procede, pois a história contada com saltos temporais e sob o ponto de vista de várias pessoas que gravitaram na vida do personagem, Brian Slade, é a mesma do ovacionado filme quarentista. Em Cidadão Kane, trata-se da morte do personagem que é um magnata das comunicações, Charles Foster Kane, e a chave é decifrar o que significa a palavra, “Rosebud”, a última que o personagem pronunciou antes de falecer. Já no caso de “Velvet Goldmine”, tudo gira em torno do astro do Glam-Rock, Brian Slade, e a chave pode ser a esmeralda, supostamente de origem alienígena, que teria pertencido ao escritor Oscar Wilde (um delírio Glam, portanto...). E adiante, eu falarei mais sobre isso. 

Sob uma super licença poética e que evoca os dois pilares do movimento Glitter (sci-fi e androgenia), o filme começa com uma nave espacial que aparece no céu de Londres em meados do século XIX, e deixa um bebê alienígena na porta da residência da família Wilde. E ele tem no pescoço um colar a conter uma espécie de esmeralda exótica, vinda de outro planeta. Bem, loucura a parte, foi bela ideia em insinuar-se que Oscar Wilde foi um extraterrestre e com poderes sobre-humanos, proporcionou-lhe as condições para poder viver sem envelhecer como um humano normal, e portanto, por ter tido tal longevidade, a insinuar que ele teria criado o Glitter Rock nos anos setenta do século XX. 

De fato, se David Bowie e Marc Bolan foram seus monarcas na vida real, Oscar Wilde como patrono (ou matrona, como queiram), encaixa-se no mesmo espírito, eu acredito.

A infância de Brian Slade é relembrada sob vários aspectos e sempre a insinuar a sua homossexualidade, ao mostrar cenas com o menino Brian, a assistir shows perpetrados por transformistas em teatro de variedades; ou a assistir cenas de namoro gay explícitas entre adultos que cercavam-no, sofrer bullying na escola e uma irresistível vontade em usar maquiagem e roupas femininas, de forma secreta. O Rock arrebata-o no meio do caminho e a imitação que empreende de Little Richard, em que aparece exageradamente maquiado, já dá mostras do que ele tornar-se-ia no futuro.



Adolescente, ele já apresentava-se com bandas de Rock bem afiadas (muito bem produzidas tais cenas, por apresentar bandas vigorosas), e demonstra talento como cantor e performancer. Vem a seguir a fase "Folk", a cantar baladas soft ao violão mas vestido como mulher, cabelo enorme e com penteado feminino e não como um "Rocker cabeludo macho". Lembra a atriz dos anos quarenta, Veronica Lake e qualquer semelhança com David Bowie a usar vestido feminino e cabelo igual à da atriz, Lauren Bacall não pode ser mera coincidência (Bowie teve razão em reclamar, basta olhar a capa do LP “The Man Who Sold The World”, de sua própria discografia, lançado em 1970...). 


Então, Brian acha o personagem e o mote que o faz chegar ao estrelato. Um extraterrestre completamente andrógino e novamente, qualquer semelhança com Ziggy Stardust é obviamente intencional.

O Glitter Rock explode na Inglaterra em 1972. Milhões de jovens andam pelas ruas e vão aos shows das estrelas dessa vertente, trajados iguais, a antecipar em décadas a moda dos "cosplayers". São jovens extravagantes, efeminados, super maquiados e ao mesmo tempo a aparentar-se como alienígenas que acabaram de descer de um disco voador e procuram o Big Ben para tirar uma foto, como se fossem turistas a passear por Londres.


Concomitantemente a essa narrativa da ascensão do astro Glam, Brian Slade, vemos a história paralela de Arthur Stuart (interpretado por Christian Bale), um jovem oriundo da classe operária e como muitos na Inglaterra dessa época, que se viu arrebatado pelo movimento Glam. Para o desespero dos pais, Arthur gostava de maquiar-se, usar roupas chamativas e nada masculinas e a frequentar shows de Rock perpetrados por artistas dessa vertente, onde torna-se doravante, como muitos outros fãs, um seguidor de Brian Slade.


Outro personagem importante que entra nessa história é o do Rocker, Curt Wild (interpretado por Ewan McGregor), que é claramente inspirado na figura real de Iggy Pop. Mais que isso, tem também muitas características de Lou Reed em sua personalidade e de fato, na vida real, Bowie interagiu com ambos (Iggy e Lou), fortemente, ao motivar que ambos passassem uma longa temporada na Europa (eles são norte-americanos), com Bowie a produzir seus discos etc. Portanto, tal personagem tratou por representar esses dois artistas, fortemente. 

A cena do eletrochoque, por exemplo, foi um fato real na vida de Lou Reed, em um tratamento psiquiátrico que os seus pais obrigaram-no a fazer para coibir suas tendências homossexuais e as cenas do personagem a cantar ao vivo com sua banda, nem se fale, então, com uma imitação praticamente literal da presença de palco e trejeitos típicos de Iggy Pop.


Há uma personagem feminina significativa também, que é Mandy Slade (interpretada por Toni Collette). Certamente uma representação de Angela Bowie, esposa de David Bowie nos anos setenta e uma personalidade tão glitter quanto ele (aliás, Angie foi imortalizada pelos Rolling Stones, na famosa canção, “Angie”).



Ao sair das imitações da vida de Bowie, o filme lança enfim mais uma hipótese meramente fictícia: no auge da carreira, Brian Slade é alvejado em pleno palco e isso choca o mundo. O seu fã, Arthur Stuart estava na plateia e mostra-se perplexo com a cena dantesca, como todos os outros fãs ali presentes. Anos depois, Stuart torna-se um jornalista e vai a campo para desvendar o ocorrido. E é através dele que as entrevistas com as pessoas que conviveram com Slade, ocorrem e dão os flashbacks que contam o grosso da história ocorrida nos anos setenta. É uma ação claramente inspirada no papel do jornalista Jerry Thompson (interpretado por William Alland), no filme: “Citizen Kane”. Todavia, Brian Slade apenas fingiu ter morrido e na verdade, está vivo, anos depois em 1984, a atuar, mas disfarçado como um outro personagem. Bem, na vida real, David Bowie prosseguiu a criar personagens, após decretar o fim do alienígena, Ziggy, e nos anos oitenta esteve a todo vapor, sob Serious Moonlight...


No todo, apesar do roteiro ser muito embaralhado, no uso de referências múltiplas, a história não chega a tornar-se o “samba do crioulo doido”, mas eu aconselho prestar atenção, pois qualquer perda de foco no filme pode gerar confusão na interpretação do espectador. Fora disso, o filme tem vários méritos. Por exemplo, uma direção de arte excelente e seria intolerável que não o fosse, ao levar-se em consideração que o Glitter Rock britânico notabilizou-se fortemente pelo aspecto visual exagerado e qualquer subtração desse histrionismo obrigatório ou interpretação errônea na leitura de época desse quesito, arruinaria o filme e pelo contrário, os cenários, figurinos, maquiagem e adereços usados, são muito fidedignos ao que ocorreu na Inglaterra no auge dessa vertente, entre 1971 e 1974, mais ou menos.



Outro item tão ou mais importante quanto, a música contida nessa trilha sonora (e também a incidental) é muito boa e absolutamente fiel à tal escola do Rock setentista. A maioria das canções foi criada especialmente para o filme, mas houve algumas releituras oriundas de clássicos dessa vertente, porém com regravações feitas para o filme, exclusivamente. A grande sacada foi colocar Brian Eno, o tecladista do Roxy Music, uma das bandas mais proeminentes desse movimento, a cargo dessa supervisão musical. Não apenas por ser um grande músico, mas também um produtor super experiente, Eno não deixou o nível cair e o que ouve-se ali, músicas novas ou regravações, tem produção e arranjos a respeitar as sonoridades setentistas. 

Ouve-se portanto, uma banda noventista como o "Placebo", a interpretar T.Rex, e quase dá para pensar-se que é a gravação original de Marc Bolan & Cia. E assim apresnta-se outros expoentes da cena do Rock britânico noventista a atuar com regravações, como o "Suede" e o "Radiohead", e no caso do Suede, uma banda que foi nos anos noventa, fortemente identificada com um resgate explícito do glitter setentista.



Outro requinte do filme, são múltiplos os sinais subliminares a homenagear o Glitter Rock dos anos setenta. A banda fictícia, “Venus in Furs” do filme, é uma clara alusão à música homônima do "The Velvet Underground". O personagem, Brian Slade, chama-se “Slade”, certamente por aludir à banda de Noddy Holder & Cia, o grande "Slade", outro baluarte do Glam Rock setentista, portanto: ”cum feel the noize” com duplo sentido e tudo!



A passagem de tempo com o agora jornalista, Arthur Stuart a entrevistar pessoas em 1984, tem a ver com o livro de Aldous Huxley, com o mesmo título, pode ser, porém, muito mais com a música do David Bowie, “1984” (LP "Diamond Dogs", de 1974), inspirada no livro citado. O personagem do guitarrista da banda fictícia, “Maxwell Demon’s” que chama-se, Trevor Finn, no filme, tem esse nome pela junção dos nomes do saudoso, Trevor Bolder (baixista da banda “Spiders From Mars” de David Bowie, e do qual eu sou um fã incondicional como mestre no instrumento que ele foi), e de Mickey Finn, o percussionista do T.Rex.  

Fora isso, existem múltiplas citações a outros ícones do Glitter Rock e também aos livros de Oscar Wilde. Por fim, a ideia da esmeralda alienígena também pode remeter ao Sci-Fi clássico das Histórias em Quadrinhos, com a lembrança da Kryptonita, mineral do planeta "Krypton", que teria o poder de neutralizar os poderes do Superman, justamente por ser de seu planeta natal.


Ainda cabe, eu tenho certeza,  a concepção que David Bowie teve em vida, ao pretender realizar um longa-metragem para abordar o que foi a explosão do Glitter Rock britânico. Ele foi morar em outro planeta em 2016, mas torço para que um produtor compre essa ideia e lance algo nesse porte, em que o velho camaleão imaginou fazer. Contudo, “Velvet Goldmine” serve-nos ao menos por enquanto com material a suprir essa necessidade de um retrato sobre tal época.

Produção britânica, foi lançado em 1998, com direção de Todd Haynes. Roteiro do próprio Haynes em parceria com James Lyons. Contém um ótimo elenco de atores e direção musical de Carter Burwell, mas como já disse, com supervisão de Brian Eno (providencial!).

Recebeu boas críticas no geral, a elogiar a ambientação do Glitter Rock, apesar das ressalvas sobre imitar descaradamente o roteiro de “Cidadão Kane”. 

No Brasil, passou obscuramente pelas salas de cinema e só os bem antenados na história do Rock, ligaram-se sobre o que se tratava.


Por ter ficado circunscrito aos canais de TV a cabo, teve repercussão discreta, também. Dá para achar-se cópias em DVD/Blue Ray, e na Internet, não tem disponibilidade gratuita no YouTube, mas consta em vários sites de cinema com exibição ao padrão "streaming" gratuito ou via download pago. 



Em suma, um bom filme, que recomendo.

Esta resenha foi revista e aumentada a posteriori, para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", e é encontrada no volume II dessa obra, a partir da página 165.