Sempre que falamos sobre os inúmeros
aspectos que são pertinentes ao caldeirão cultural borbulhante das décadas de
sessenta e setenta, tendemos a focar a nossa atenção para a Europa e os Estados
Unidos, quase que de uma forma esmagadora. E no caso da Europa, claro que o
predomínio britânico sobre os eventos, foi natural, contudo, de uma forma alguma
significou que não estivesse a ocorrer também em outros países. Com exceção dos países que sofriam
com a ditadura ferrenha comunista, e fechados portanto na famigerada “cortina
de ferro” (nem mesmo assim conseguiram sufocar em 100 % a livre expressão
artística, pois existe casos notáveis de resistência no underground, por parte
de artistas corajosos que correram risco de vida, até), e a península ibérica
(Portugal e Espanha), amarrada ao atraso de ditaduras direitistas de orientação
fascista, a efervescência ocorreu com intensidade em outros países, fora do
Reino Unido. E claro que além da Inglaterra,
destacam-se em uma primeira análise : Alemanha; Itália e França.
No caso do país da velha bota, o Pop italiano produziu inúmeros artistas a ostentar muita qualidade em sua obra. Muitos seguiram uma linha evolutiva, e assim, do bubblegum típico de início / meio de década de 1960, eis que alguns aventuraram-se posteriormente nos meandros da psicodelia; Acid Rock; Blues Rock, e muitos mergulharam no Rock Progressivo, a seguir, no decorrer dos anos setenta. Aliás, a Itália (e o Japão, também sob uma segunda instância), permaneceram incólumes ao manifesto niilista de 1977, e por conseguinte, nunca deixaram por apreciar tal gênero.
Existe uma explicação plausível para tal fenômeno em ambos os países : na Itália, a tradição de excelência musical de um povo acostumado a ouvir música erudita em geral, e ópera em particular, faz dos ouvidos italianos, mais apurados para apreciar uma música mais sofisticada e cerebral, portanto, ali ninguém comprou com facilidade a argumentação esdrúxula da parte dos seguidores de Malcolm McLaren; e de seus asseclas. No caso do Japão, o espírito colecionador típico do nipônico, fez com que contendas estéticas perpetradas por marketeiros, não dissessem-lhe respeito. Japonês aprecia tudo e, sobretudo, quer mais é colecionar o máximo de itens que puder armazenar.
De volta ao foco desta matéria, a respeito do panorama sessentista italiano, a música Pop construída com forte influência do Bubblegum internacional em voga, mesclou-se às tradições do cancioneiro Pop tradicional, e dessa forma, a somar-se com as pitadas líricas sempre inerentes à alma “tricolore”, eis que abriu-se o caminho para que inúmeros artistas surgissem, e alcançassem sucesso nacional, e em alguns casos, internacional. Fora essa explosão Pop, que invadiu as emissoras de rádio e TV, uma outra tradição italiana forte fez-se presente, com os seus festivais de música popular.
Por atrair a atenção do povo, os festivais fizeram época, exatamente como aconteceu simultaneamente em outros países, incluso o Brasil. Vide o Festival de San Remo, onde até o Roberto Carlos foi participar, em 1968. O cinema italiano; as artes plásticas; e a literatura, também embarcaram na loucura contracultural, e só intensificaram a vibração pelas vias da cidade eterna, a estabelecer uma loucura que nem o imperador Calígula poderia imaginar, em seus delírios mais exóticos. Nessa atmosfera, surgiu em 1965, um clube na cidade de Roma, onde belas páginas do Pop, Rock, Jazz e outras vertentes, seriam escritas nesses anos loucos.
Tratou-se do Piper Club, um autêntico tempo de loucura localizado no famoso endereço da Via Tagliamento, 9, distrito de Trieste, em pleno Quartieri Coppedè, um quarteirão histórico a abrigar palácios construídos no início do século vinte, a conter uma beleza incrível, tanto arquitetônica, quanto sob o ponto de vista cultural. O Piper foi concebido inicialmente sob uma decoração inspirada na Opera D’arte, porém, com fortíssima influência da emergente Pop Arte advinda da parte de artistas como Andy Warhol, e da literatura beat.
A profusão psicodélica veio a
seguir, com o Piper a tornar-se a grande Meca dos shows na bela Roma, inclusive
para atrair artistas estrangeiros sensacionais, igualmente. A lista de artistas italianos que
ali apresentou-se, é gigantesca.
Para citar alguns apenas, oriundos dessa safra do Bubblegum sessentista : The Rokes; Rocketti; Caterine Caselli; Rita Pavoni; Gabrielli Ferri; Dik Dik; Renato Zero; Romina Power; L’equipe 84; Gli Apostoli; Le Pecore Nero; Fred Bongusto; Farida; Giants; The Meteors, Patrick Samson etc.
Vale acrescentar com destaque, a sensacional, Patty Pravo, que foi considerada a “Ragazza Piper”, como a designá-la como uma espécie de artista criada exclusivamente como prata da casa. Entre os internacionais, tocaram no Piper nos anos sessenta : Procol Harum; The Byrds; Jimi Hendrix Experience, e ninguém menos que o Pink Floyd, com Syd Barrett em suas fileiras. Se Nero colocara fogo em Roma séculos antes, Syd Barrett tratou por derreter a cidade eterna...
Com a psicodelia total a enlouquecer a juventude romana, o Piper continuou a ser o grande templo do Rock italiano, e ali a história foi escrita com toda a galhardia em torno de bandas como o Le Orme; Phoo, Ravens; Dolphins; New Trolls, e tantas outras.
Em 1967, o Piper abrigou nas suas dependências um evento que entrou para a história, e foi de certa forma, o equivalente italiano do que fora o "14 hours Technicolor Dream" em Londres, no mesmo ano. Organizado por Mario Schifano, líder da banda “Le Estelle di Mario Schifano”, O Piper protagonizou uma verdadeira loucura psicodélica em suas dependências. Chamado como : “Grande Angolo, Sogni”, tal evento reuniu uma série de bandas psicodélicas da cena italiana; a alternar-se com um citarista a tocar ragas indianas; poetas e telões com exibição de filmes underground; e tudo ornado com projeções de luzes e bolhas psicodélicas...groovy per tutti !
A Black Music e o Jazz também tiveram representatividade ali. Assistir artistas como : Sly and the Family Stone ou Duke Ellington, após uma bela macarronada, foi um privilégio dos romanos mais antenados, sem dúvida. Com o avançar dos tempos, a onda progressiva também encontrou no Piper o seu cenário ideal para expandir-se.
Foram memoráveis os muitos shows do Genesis, nas diversas vezes em que esteve no palco do Piper, inclusive com filmagens que hoje em dia encontram-se postadas no You Tube.
A fina flor do Prog Rock italiano, bateu cartão no velho clube localizado no distrito de Trieste, da capital italiana. Banco; Area; The Trip; Le Orme; Goblin; L'uovo di Colombo, entre tantos outros artistas sensacionais, e claro, a PFM a fazer a festa.
Por volta de 1975, o Piper perdeu um pouco do seu fôlego, após dez anos de atividades e mudou portanto o seu direcionamento, infelizmente. Sob outra mentalidade, a casa deixou de lado os shows ao vivo e orientou-se mais para vir a tornar-se uma casa noturna movida pelo som mecânico, infelizmente. Como Disco Club, assumido, continuou a lotar, mas doravante a atrair um outro tipo de público, mais interessado na diversão hedonista e sem preocupações culturais mais avantajadas.
Foi o fim de uma era marcada pela profunda euforia vivida pela juventude italiana e romana, em particular. O Clube seguiu em frente, no entanto, e está em pleno funcionamento até os dias atuais (2015), mas naturalmente sem o brilhantismo cultural que o marcou de 1965 a 1975. Existe um documentário muito bom chamado “Piper”, que já foi exibido algumas vezes na Rai, principal emissora de TV da Itália, e com reprise na Rai Internacional, que é o que assistimos na TV a Cabo aqui do Brasil.
Nele, existe imagens raras e incríveis dos anos de ouro do clube, com trechos de shows sensacionais. No site oficial do clube, contém um histórico resumido de suas atividades do passado, mas deixa a desejar para quem o enxerga com a devida importância cultural que teve no passado, pois a ênfase do site é a atualidade, mais preocupada em vender o clube, ao enaltecer as suas “baladas” do momento. Sinal dos tempos, infelizmente.
http://www.piperclub.it/
O que importa, é que mesmo não sendo
mais assim, no seu passado, o Piper foi um dos maiores templos do Rock;
contracultura; movimento beat; psicodelia, e Pop Art da Europa e do mundo.
Matéria publicada inicialmente no Blog Limonada Hippie, em 2015
Muito importante a matéria. Rita Pavoni. Grande intérprete do rock italiano. A ponto de os Beatles escreverem para ela "Lovely Rita". Não sabia que o Pink Floyd tinha andado nesse palco, antes de terem filmado em Pompeia. Excelente, Domingues.
ResponderExcluirMas que beleza que a matéria tenha lhe agradado em vários aspectos, amigo Elmo !
ExcluirBem lembrado, a Rita Pavoni foi uma das principais vozes do pop italiano sessentista. Curto muito a trajetória dela nessa época.
É vero...o Pink Floyd foi um dos maiores frequentadores do Piper Club, desde a época inicial da banda, com Syd Barrett.
Como brinquei no texto, Roma foi sempre uma cidade para loucos, desde Nero e Calígula, portanto, nos anos sessenta, a lisergia psicodélica caiu muito bem ali, encontrando ambiente propício...
Grato por ler, comentar, trazer adendo (Lovely Rita !), e elogiar !!
Abraço !!