Quando a produção responsável pela direção da TV Record de São Paulo, começou a notar que a sua
fase de ouro estava a esgotar-se, ao final dos anos sessenta, adotou-se em sua cúpula, uma série de providências para criar novos programas, ao visar adaptar-se aos novos tempos, e
assim reagir diante do crescimento de seus concorrentes. Na falta de um “vidente” poderoso que desse-lhe uma dica
valiosa e certeira, errou feio ao deixar de investir na sua galinha dos ovos de
ouro, ou seja, os programas musicais que deu-lhe fama; prestígio e fortuna.
Não que outras atrações também não ofertassem tal sustentáculo, e de fato, havia a linha infantil; jornalismo; esportes;
variedades e dramaturgia bem azeitadas, além de sessões de cinema caprichadas,
as melhores séries e desenhos animados internacionais daquela década etc. Todavia, o carro chefe que tornou a Record a melhor
emissora naquela época, certamente foi a aposta nos programas musicais
sensacionais, com música de qualidade para todos os gostos, além é claro, do
furor que foram os seus festivais de MPB, ao entrar para a história, sem dúvida
alguma, e também o fenômeno Pop da Jovem Guarda. Portanto, quando a música teve o seu espaço
diminuído, a Record começou nesse preciso instante, o seu triste declínio. Nesse ambiente marcado por mudanças, um programa de extremo mau
gosto foi lançado, em 1968, com o objetivo em recuperar a audiência que
começara a cair, e tratou-se de uma aposta medonha.
Chamado : “Quem Tem Medo da Verdade ?”, tratou-se de um
simulacro de “tribunal”, onde um artista, ou personalidade de outra área, mas
igualmente famoso, era submetido a um julgamento sumário, sob acusações
estapafúrdias em torno de supostos deslizes cometidos através de atos, e / ou
declarações feitas em público. A ideia já fora abominável no seu nascedouro, pois partiu-se da premissa de que a vida alheia valia a pena ser discutida em público, e muito
pior, contestada por julgamento moralista da parte de conservadores e polemistas mal intencionados em geral.
Ao ir além, o julgamento moral que viria a reboque,
denotou um retrocesso em meio a uma sociedade que mudava bruscamente,
para quebrar paradigmas. Por outro lado, deixou claro que setores retrógrados da
sociedade, estavam incomodados com tais transformações, e tal programa mostrou-lhe
os dentes cerrados da reação. Contudo, quando foi ao ar, tudo piorou ainda mais, pois se em
tese fora uma ideia horrorosa, na prática, tornou-se um show de horrores, ainda
pior.
O esquema era de fato o de um tribunal acusatório, com
vários “jurados” que também acumulavam o papel de promotores, portanto, faziam
acusações, inquiriam o “réu”, e ao final, proferiam sua decisão, para condená-lo
ou absolve-lo. Uma figura pública, geralmente um artista ou jornalista,
fazia o papel de advogado de defesa do “acusado”, no entanto, mesmo que a sua
argumentação fosse coerente, a intenção ali era atacar com violência, e
condenar, sempre. As intervenções dos acusadores eram muito agressivas,
portanto, o programa era tenso, e muitas vezes descambava para discussões
explícitas, e com troca de ofensas pessoais entre os jurados e o réu. Para quem acreditava que era tudo uma mera encenação,
apenas para prender a audiência, na verdade assustou-se com a truculência,
falta de lisura, e até a verificar manifestações de preconceito, que ali vieram à tona.
Entre 1968 e 1971, enquanto esteve no ar, protagonizou
noitadas deploráveis para a história da TV brasileira, e para muitos
historiadores, tratou-se de um precursor dos programas “Mundo Cão”, que anos depois tornar-se-iam uma peste na grade da TV aberta (e infelizmente a invadir também o
espaço da TV a cabo, anteriormente um refúgio para quem fugia da baixaria da TV
aberta...). Claro, havia “O Homem do Sapato Branco”, que inclusive
era mais antigo, e também entra nesse rol de precursores da baixaria na TV.
Outra marca registrada do programa foi a dose maciça de desdém, com a qual os “réus” eram inquiridos.
Outra marca registrada do programa foi a dose maciça de desdém, com a qual os “réus” eram inquiridos.
Talvez por influência do texto mordaz da peça teatral :
“Quem Tem Medo de Virgínia Woolf ?” (isso é uma especulação minha, e não um
fato histórico comprovado), Carlos Manga tenha tido inspiração para o título do
programa, mas sobretudo pelo mote, existe uma ligação. Tal como no teor do texto dessa peça teatral. A versão para o
cinema, de 1966 (capa do DVD, acima), também é ótima, e dá uma ideia boa do que trata tal peça.
Os jurados faziam de tudo para constranger o acusado, ao provocá-lo com alfinetadas (esteve mais para apunhaladas...), explícitas.
Os jurados faziam de tudo para constranger o acusado, ao provocá-lo com alfinetadas (esteve mais para apunhaladas...), explícitas.
Era clara a intenção em de tirar a pessoa do sério, e de
fato, muitas vezes isso aconteceu, e poucos foram os que tiveram presença de espírito
para não abalar-se e / ou dar o troco aos acusadores, extremamente
ignorantes; agressivos e carcomidos por preconceitos odiosos. O cenário do programa era intimidante ao extremo. Com
focos de luz exagerados sobre o acusado, parecia a ambientação de um
interrogatório da Gestapo, com vários inquisidores agressivos, a falar
freneticamente e a fazer de tudo para ridicularizar, desdenhar, e provocar o
acusado, até que ele reagisse e quando invariavelmente perdia a cabeça e a
compostura, para responder à altura, tal reação de destempero era usada contra o
acusado, como a reforçar a sua suposta culpabilidade.
O teor das acusações beirava o ridículo, e expunha o
caldeirão de preconceitos de reacionários a revelar-se incomodados com as
mudanças comportamentais que permeavam os anos sessenta como um todo. Por exemplo, tornou-se histórico o bate boca do
jornalista, Clécio Ribeiro, com o ator, Grande Otelo.
Pairava sobre o famoso ator / comediante / show man, a
acusação dele ser um “alcoólatra”, e que por conta de seu vício, tinha um
histórico de mau profissionalismo, e até maus tratos contra mulheres. Cansado em ser atacado com aquela enorme truculência por
Clécio, Grande Otelo retrucou, ao dizer-lhe que o jornalista não tinha moral para acusar-lhe em ter um vício, pois no decorrer do programa, este fumara um cigarro
atrás do outro, a caracterizar que também mantinha um vício.
Enlouquecido, Clécio respondeu com enorme grosseria, que
cigarro não fazia mal a ninguém, nem a ele mesmo e que bastava um copo de leite
para desintoxicar-se, enquanto Otelo, por sua embriagues, não curar-se-ia nem que
bebesse uma vaca inteira. Acrescento que à luz da nossa visão de século XXI em
curso, a argumentação do dito jornalista, beira a insanidade ao ter defendido o
tabaco como algo inofensivo ao organismo humano... absolutamente ridículo ! Pior que essa grosseria com o ator, Grande Otelo, ocorreu com
outra com a atriz, Leila Diniz.
Símbolo de uma mulher moderna que emancipava-se, Leila
foi a mais “descolada” artista de cinema do Brasil à época. Convidada para participar, suportou inicialmente as provocações a levar na brincadeira,
e debochar dos jurados, ante o seu show montado em torno de acusações fascistas, extraídas de algum
manual de moral medieval, e redigido por aquela turma que faria Torquemada orgulhar-se
por ver o seu legado vivo no século XX. Mas eles apelaram, e foi feio...
Mais uma vez, Clécio Ribeiro, o dito polemista mais
virulento do programa, pegou pesado e disse à Leila, quando esta deixara
escapar que sonhava em ser mãe, que ela não merecia nem sonhar com isso, pois
uma “prostituta como ela, jamais poderia ousar querer exercer o sagrado direito
da maternidade”. Isso a tirou do sério e mesmo ao ser despachada e segura
de si ao extremo, Leila abandonou o programa aos prantos, pois definitivamente, o
acusador fora longe demais.
Roberto Carlos foi ao programa, e as acusações foram :
“ser cabeludo”; e estar a “desvirtuar a juventude do caminho do bem”. Ora, justo o Robertão, que sempre foi um bom moço
católico, e sem rebeldia alguma; adorado pelos idosos; menino bonzinho que conduz a vovó à missa dominical etc.
Enfim, colocaram um padre católico como membro do júri, e
que foi duro com ele, ao expor a sua argumentação escolástica, e sem nenhum
cabimento para o século XX...
Ao final, o advogado de defesa, ninguém menos que, Silvio
Santos, argumentou com a sua lógica de vendedor de carnês, que Roberto era “barra
limpa” e que o “iê-iê-iê” não seria nocivo à juventude. Faltou explicar o que
significava esse neologismo idiota, que não designa absolutamente nada sobre
uma estética musical e que somente ele repetia à exaustão em seu entediante programa dominical. Aracy de Almeida e Silvio Luiz (pelo amor dos meus
filhinhos...), também faziam parte desse corpo de jurados, e pegavam pesado com os "acusados".
O próprio diretor, Carlos Manga, um dos criadores da atração, foi
o mediador e costumava estabelecer uma teatralização exagerada, para conferir um ar melodramático ao
“julgamento”. Manga foi um grande diretor de cinema e TV, e que na
própria Record, detinha uma longa ficha com ótimos serviços prestados, mediante uma
contribuição real para a grandeza da emissora, mas nesse caso... bem, ninguém é
perfeito...
José Mojica Marins
e / ou seu personagem, Zé do Caixão também foi devidamente demonizado pelo
tribunal inquisitório, assim como diversas outras personalidades que eram famosas
no meio da TV, na ocasião. Muitos trechos de edições desse programa estão
disponibilizados no You Tube.
Ao assisti-los hoje em dia, tais cenas provocam risadas, tamanho o caráter
absurdo da argumentação dos acusadores, e a sua histriônica atuação para colocar ênfase nas asneiras que falaram. Entretanto, é uma risada nervosa, pois chega a dar raiva em verificar
aquele festival de manifestações execráveis perpetrado por esses brucutus.
Particularmente, apesar de eu ter sido criança na época, lembro-me em ter visto ao vivo, muitas vezes e mesmo sem a compreensão intelectual que tenho hoje em
dia como adulto, o programa já embrulhava-me o estômago, mais pela tensão
instaurada, do que pela compreensão mais pormenorizada da situação ali expressa, que eu não podia ter com aquela idade. Foi em linhas gerais, de uma agressividade gratuita; arbitrária;
inquisitorial; carcomida por preconceitos; ignorância, e truculência. “Quem tem Medo da Verdade ?” foi uma página lamentável e
contraditória para uma emissora que tantas produções boas colocou no ar,
ao dar a sua ótima contribuição cultural ao povo brasileiro. Nesse caso, foi um grande equívoco de sua parte, e não curiosamente, mas de forma sintomática, a TV Record nunca
mais foi a mesma, ao decair muito e arrastar-se pelas décadas de setenta e
oitenta, até ser vendida pela sua então proprietária, a família Machado de Carvalho para um grupo
religioso, que a mantém em seu poder, desde o início dos anos noventa. O problema nem foi ter “medo da verdade”, mas a melhor pergunta
seria : que verdade foi aquela, em que os paladinos da moralidade, daquele
“tribunaleco” espúrio, referiam-se ?
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2015
Mas o homem voltou com tudo! Uma matéria enorme! Excelente. Parabéns.
ResponderExcluirGrande Elmo !
ExcluirFico muito contente com sua visita e comentário. De fato, estou recuperando-me de saúde e voltando devagar a à vida virtual. No caso desta matéria, não deu-me trabalho pois é uma republicação, mas espero em breve estar em condições de elaborar trabalhos inéditos.
Abração !