O elo de George Harrison com a cultura indiana e por conseguinte, a abraçar toda a tradição de espiritualidade expressa através da música, veio de muito mais longe do que imaginávamos.
Segundo consta em sua biografia, a sua mãe, Louise Harrison, gostava de sintonizar a Rádio Índia, para ouvir a exótica música daquele país, que considerava relaxante durante a sua gravidez. Ao ir além, a senhora Harrison achava que o som da cítara; tabla; e diversos outros instrumentos indianos, aliados aos mantras entoados, poderiam ser benéficos para o seu bebê em formação.
E certamente que foi importante tal sutil contato intrauterino.
Ainda na primeira infância, Harrison tinha em seu Lar, um ambiente com muita música. Sua mãe gostava de cantar e a música folk irlandesa tinha vez em seus cânticos.
Quando a adolescência chegou, Harrison foi arrebatado pela música norteamericana. O Blues; o Rock'n Roll; e o Folk yankee, o estimularam a tocar um instrumento musical e o seu talento precoce o levou à dois colegas de escola, que estavam a formar uma banda orientada pelo : "Skiffle".
"Skiffle" era um ritmo tipicamente britânico, muito popular nos anos cinquenta, que misturava o Rock norteamericano com as raízes folk da Grã-Bretanha e por ser executado sem grandes aparatos em termos de equipamentos, tornara-se uma febre entre os adolescentes ingleses, principalmente os que apresentavam uma origem social simples.
Isso por que bastava juntar-se dois ou três violões e uma percussão improvisada com qualquer objeto caseiro, para fomentar-se criação de bandas, portanto, algo muito acessível para garotos pobres e sem recursos. Entretanto, os seus colegas eram mais velhos e ficaram receosos em aceitá-lo sob um primeiro instante. Com apenas quatorze anos de idade, a despeito de mostrar desenvoltura ao instrumento, o imberbe Harrison era imaturo e não demonstrava o jeito "durão" de Rocker todo vestido com roupas de couro, que eles julgavam imprescindível para qualquer membro fazer parte da banda.
Somente aos quinze anos de idade (que diferença insignificante, convenhamos...), ele tornou-se membro do "The Quarrymen", junto aos amigos : John Lennon e Paul McCartney. Daí em diante, todo mundo sabe onde esse pequeno grupo amador oriundo da cidade de Liverpool, foi parar...
No ano de 1966, The Beatles representava o maior fenômeno da música mundial, a ditar modas e apontar caminho.
A sua influência já havia extrapolado as fronteiras da música, e atingira patamares incalculáveis no âmbito sócio / comportamental.
E especificamente nesse ano de 1966, o grupo deu também uma guinada radical em sua música.
A partir do lançamento dos álbuns : "Rubber Soul" e "Revolver", os Beatles praticamente abandonaram a sua trajetória quase ingênua, de uma linha de Rock'n Roll; Blues; e R'n'B, com letras simples e geralmente a discorrer sobre o amor homem / mulher, com a visão adolescente e passou a ousar, artisticamente.
Aberto a qualquer tipo de influência, a sua música sofisticou-se de tal maneira que abriu um marco na sua carreira, imediatamente aceito e difundido pelos historiadores da música e Rock, em específico.
A carreira dos Beatles é nitidamente dividida em duas fases : pré e pós-1966. Entre tantas inovações musicais e poéticas, The Beatles apresentou como uma nova marca registrada em seus discos, doravante, a introdução de instrumentos exóticos e folclóricos, incorporados à então estética moderna do Rock.
Guitarra; baixo; teclados; e bateria, passaram a conviver com instrumentos exóticos e inimagináveis para o formato do Rock ocidental.
Isso abriu um horizonte muito amplo às experimentações e de imediato, tais sonoridades estimularam inúmeras bandas de Rock contemporâneas dos Beatles, a seguir tal caminho, também.
Especificamente a falar dos Beatles, Harrison trouxe duas influências suas: o Folk politizado norteamericano, via Bob Dylan e a música indiana que sempre o encantara e agora, ganhara uma aura ainda mais especial. Na canção : "Norwegian Wood", que está presente no álbum, "Rubber Soul", Harrison introduziu a cítara como elemento especial e enlouqueceu os fãs.
O que seria aquele exótico timbre que estabelecera frases doces durante a canção, ao acompanhar a melodia cantada por Lennon ?
Nessa primeira introdução da cultura indiana na música dos Beatles, a estrutura melódica / harmônica e rítmica de "Norwegian Wood", ainda seguiu o padrão ocidental, sem grande choque harmônico. Ao tratar-se de uma balada em fórmula de compasso, 6/8, tem um sabor folk e a cítara atua como um instrumento de apoio, apenas, no entanto, é impossível não deixar de notá-la e apreciar a sua incrível beleza.
Mesmo que não tenha sido um exímio citarista e convenhamos, para atingir tal nível é preciso estudar muitos anos com afinco, a performance de Harrison na canção é perfeita e o apoio que teve, deu-se pelo fato de que em 1966, ele viajara à Índia e lá, submeteu-se às aulas de um grande mestre do instrumento, o maestro, Ravi Shankar.
Os seus esforços para aprimorar-se ao instrumento foram incentivados por Shankar, e no mesmo ano, Harrison voltaria à Índia e passaria seis semanas para completar um curso intensivo com esse grande músico. Tal período coincidiu com a decisão dos Beatles em não mais realizar shows ao vivo, a partir do final da turnê norteamericana de 1966, portanto, o tempo ideal para dedicar-se às composições; arranjos e experimentações de estúdio, e assim aumentou muito o campo das experimentações e dessa forma, o terreno ficou propício para mais incursões nesse sentido, nos álbuns subsequentes que a banda lançaria, doravante. Todavia, Harrison não encantara-se somente pela musicalidade indiana.
Todo o sentido espiritual por trás da música, seduziu-lhe inteiramente. De fato, existe a música popular da Índia, mas existe também a música erudita onde o sentido espiritual é fundamental para quem toca ou escuta.
Baseado em vibrações que aguçam os chacras, os mantras tem um poder extraordinário em termos de emanação energética. E dentro desse conceito, toda a instrumentação erudita segue tal padrão. Foi inevitável então o choque positivo que tal introdução musical causou no mundo ocidental, ao atingir em cheio, milhões de jovens.
Concomitante a tal explosão musical, o movimento Hippie borbulhava e toda a carga cultural da Índia encaixava-se como uma luva nesse espectro artístico e sócio / comportamental. O elemento espiritual difundiu-se de forma muito forte no movimento, ao trazer a reboque, diversos questionamentos sociológicos.
A ideia da libertação dos padrões tradicionais e intrínsecos a condicionamentos massacrantes da sociedade de consumo, na Revolução Industrial, nunca foi tão viva, quanto nos anos sessenta.
Os conceitos baseados em ideais em termos de fraternidade; solidariedade e não-violência, passou a ser a marca registrada dessa geração que vislumbrou uma grande libertação social.
As cores expressas em profusão nas roupas que os jovens passaram a usar; o cabelo comprido dos rapazes e a oposição ferrenha à violência, para questionar o sentido das guerras e naturalmente afrontar os militares; religiosos fundamentalistas e os políticos de uma maneira geral, ganhou contorno de revolução branca, via desobediência civil. Harrison nunca admitiu isso, é claro, mas o fato, foi que a sua contribuição foi incomensurável nesse processo, ao propiciar não apenas a musicalidade indiana para o ocidente, mas principalmente ao abrir as portas para que os conceitos espiritualistas, que fariam todo o sentido para uma geração que sonhou em libertar-se, estivessem na pauta do dia.
A segunda música que os Beatles gravaram com tais elementos, foi ainda mais incisiva : no LP "Revolver", a canção : "Love You To", teve, aí sim, uma estrutura musical indiana típica, com nenhuma influência ocidental. Ainda no mesmo disco, há uma decisiva participação de um instrumento chamado, "Tamboura", na canção "Tomorrow Never Knows", que torna a psicodelia inerente dela, ainda mais sensacional.
Por sua influência direta, Ravi Shankar passou a apresentar-se no ocidente, para plateias formadas por jovens.
Tornou-se então um ícone pop, com o mesmo peso de um Rock Star, ao tocar e encantar essa juventude, em meio a festivais tais como : Monterey Pop' 67, Woodstock' 69 e Isle of Wight' 70, além de realizar tours individuais pelo mundo todo (passou pelo Rio e São Paulo no início dos anos setenta, para o delírio dos freaks tupiniquins). No ano seguinte, quando saiu o monumental LP "Sgt° Pepper's Lonely Hearts Club Band", a contribuição de Harrison ao disco foi pequena em termos de volume, mas incisiva.
A canção "Within' you, Without You", com estrutura totalmente indiana, emociona. Com o apoio de músicos indianos radicados em Londres, Harrison a compôs; arranjou e executou a cítara, com grande inspiração.
Eis a letra da música, sob uma tradução livre:
Dentro de Você, Sem Você
Nós falamos,
Sobre o espaço que dentre todos nós
E as pessoas,
Que escondem ela mesmas atrás da fortaleza
Da ilusão,
Nunca se tocam da verdade
Quando já é muito tarde;
Quando elas morrem
Nós falamos sobre o amor que todos nós compartilharíamos
Quando o encontrarmos..
Tentaremos do nosso melhor para mantê-lo lá
(Com nosso amor)
Com nosso amor nós poderíamos salvar o mundo
Se eles apenas soubessem
Tente perceber que está tudo dentro de si mesmo
Ninguém mais pode fazer você mudar;
E veja que você é realmente muito pequeno
E a vida flui dentro de você
Ou sem você
Nós falamos,
Sobre o amor que tão frio se foi
E as pessoas,
Que ganham o mundo e perdem suas almas
Elas não sabem,
Elas não veem
Você é uma delas?
Quando você enxergar o seu outro lado,
Então poderá encontrar a paz de espírito que tanto espera;
E a hora chegará quando você ver que
Somos todos um e a vida segue dentro de você ou sem você
Acho desnecessário comentar o teor dessa letra, para quem está a espiritualizar-se...
Diante dessa carga inexoravelmente bela a conter a mensagem Suddha, Harrison escancarara os portais para a juventude ocidental beber dessa fonte de autoconhecimento. No mesmo ano de 1967, na canção : "Strawberry Fields Forever", uma pequena inserção de um instrumento indiano, colaborou com a música, embora de forma não acintosamente indiana. Em 1968, Harrison trouxe mais uma canção com teor explicitamente indiano e mediante uma temática explicitamente espiritual. Tratou-se de : "The Inner Light", que foi lançada apenas em um compacto simples (o lado "B" de "Lady Madonna") .
É óbvio, quando ele fala sobre "A Luz Interna", Harrison cira diretamente sobre a chama do coração, o chamado "Atman", a centelha divina que todos carregamos e que faz de cada indivíduo, literalmente, parte do "todo", como fonte de uma única luz, pela qual costuma-se chamar normalmente como : "Deus".
Quando os Beatles encerraram as suas atividades, em abril de 1970, a carreira solo de seus quatro membros estava já em curso, na verdade. No caso de Harrison, os seus discos solo sempre trouxeram elementos sob teor espiritualista e a ligação com a Índia prosseguiu, até para estreitar-se mais ainda.
Em 1971, Harrison produziu o que viria a ser o primeiro show de Rock beneficente da história.
Ele reuniu um time de astros (Bob Dylan; Ringo Starr; Eric Clapton; Badfinger; Ravi Shankar; Leon Russell; Billy Preston, e ele mesmo, é claro), e chamou a atenção do mundo para a situação dramática do povo de Bangladesh, que além da habitual miséria, sofria em meio a uma sangrenta guerra civil. Com a renda doada para o povo de Bangladesh, esse concerto entrou para a história, a render um disco duplo e um documentário.
"All Things Must Pass"; "Maya Love"; "Dark Horse"; "Beware of Darkness"; "My Sweet Lord"; "Give me Love (Give me Peace on Earth)"; "Living in the Material World"; " It is "He" (Jai Jai Krishna); entre outras tantas, são músicas de sua carreira solo, com esse teor. George Harrison entrou para a história como o "Beatle místico". O seu entusiasmo pela espiritualidade atuou como um verdadeiro farol para milhões de pessoas em todo o planeta.
Que trio sensacional : Ravi Shankar; Peter Sellers & George Harrison !
É inegável que muitas pessoas contribuíram para que tais conhecimentos chegassem ao ocidente. No entanto, Harrison, por ser um ídolo sob alcance mundial, sem dúvida teve papel decisivo em termos de massificação das ideias em torno dessa cultura.
De certa forma, o papel dele nesse processo, levou adiante os esforços da Madame Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, ao final do século XIX. Harrison contribuiu assim, muito mais do que imaginamos no âmbito cultural, ao brindar-nos com suas lindas canções, porém ele deu-nos a chance para avançarmos muito além.
Namastê ! Ahimsa ! Jai Jai, Harrison !
Matéria publicada inicialmente no Blog Limonada Hippie, em 2013
Hare, hare!
ResponderExcluirNão é a toa que o Harrison é meu Beatle favorito e, como um pensamento, uma atitude de uma mãe pode influenciar a vida de um ser que carrega em seu ventre!
Lindo texto e ilustrações!
Beijos!!
Sensacional que tenha gostado da matéria.
ResponderExcluirNão acho que só pelo fato dele ter ouvido música indiana enquanto estava no ventre de sua mãe tenha tomado esse posicionamento na vida e na carreira, mas que foi uma mensagem subliminar importante a contribuir, sem dúvida.
Muito grato por ler, comentar e elogiar !!