terça-feira, 25 de março de 2014

Plínio Marcos, o Teatro Nu e Cru de um Funileiro... - Por Luiz Domingues

Nascido em Santos, no ano de 1935, Plínio Marcos foi um menino simples, filho de uma família humilde, formada por trabalhadores. Canhoto, foi obrigado a desenvolver a habilidade da escrita como destro, sob uma típica arbitrariedade do sistema educacional antigo, em torno da sua pedagogia marcada pela total insensibilidade. Acuado com isso, apresentou um profundo desinteresse pela vida escolar e postergou ao máximo a conclusão do curso primário de então, o que equivale hoje em dia a menos da metade do ensino fundamental.

Preocupado, seu pai esforçou-se para encaminhar o adolescente Plínio na vida, à uma profissão cabível, mesmo com esse baixo nível educacional e dessa forma, muitos empregos sucederam-se na vida dele. De vendedor de livros espíritas a aprendiz de encanador, Plínio enfrentou várias tarefas díspares entre si, mas pareceu  haver adaptado-se mesmo, na profissão de funileiro.

Cabe explicar que essa expressão tem nomes diferentes em certas regiões do Brasil, e aqui em São Paulo, falamos "funileiro", ao designar o profissional que faz reparos na lataria de veículos, portanto alguém a trabalhar em uma "funilaria". No Rio de Janeiro, por exemplo, a mesma função recebe o nome :"lanterneiro", ou seja, o profissional que trabalha na "lanternagem". O jovem Plínio realmente empolgou-se com a profissão que dava-lhe prazer, mas concomitantemente, duas outras atividades lúdicas despertavam-lhe a atenção. A primeira, o futebol. Por jogar na várzea de Santos, foi incentivado por colegas a fazer testes na base da Portuguesa Santista e do Jabaquara, dois clubes tradicionais na cidade de Santos, mas muito aquém da fama do Santos FC, o clube mais popular do município e dessa forma, ele julgou ter mais chances de passar nas peneiras, em clubes de menor porte.

E de fato, Plínio foi aprovado e jogou nas categorias de base da Portuguesa Santista, e diziam algumas pessoas que o viram jogar, que ele fora um bom jogador, com condições para vir a tornar-se um jogador profissional, porém, a outra atividade que mencionei acima, pareceu oferecer-lhe outras oportunidades. Ocorre que Plínio interessara-se pelo Circo. Em princípio, por motivação não artística, pois pleiteara namorar uma menina cuja família era oriunda de artistas circenses.

Uma vez inserido nesse seio familiar, ofereceu-se para atuar como palhaço e demonstrou traquejo nas apresentações. Dali em diante, criou o personagem : "Frajola" e atuou em vários outros circos de Santos, ao viajar a seguir, para todo o estado de São Paulo. Ainda nos anos cinquenta, tal palhaço foi atuar na TV 5, emissora de Santos, ao angariar grande sucesso entre o público infantil e teve e a sorte em deparar-se com Patrícia Galvão, famosa "Pagú", tremenda personalidade mítica da cultura paulista, que encantou-se com o talento do rapaz e o convidou para atuar na peça :"Pluft, o Fantasminha", em 1958.
Dali em diante, o mosquito do teatro o mordera, e ao apaixonar-se, passou a ler os grandes textos clássicos do gênero, para enriquecer a sua cultura pessoal de uma forma contundente, com Pagú ao seu lado a incentivar-lhe como uma autêntica, madrinha. Atuou posteriormente em várias montagens teatrais, e assim refinou a sua veia como ator, e arguto, toda a sua pesquisa bibliográfica começou a render-lhe frutos, quando aventurou-se a escrever, e preparar assim o despertar do dramaturgo que viria a tornar-se.

Bem no final dos anos cinquenta, Plínio ficou escandalizado com um caso policial que repercutira fortemente na imprensa santista. Tratou-se do caso de um menino que fora preso por uma acusação injusta e encarcerado em meio à bandidos perigosos, fora abusado sexualmente de forma violenta e quando finalmente foi libertado, arquitetou um plano de vingança para assassinar o seus estupradores.


Nasceu então, "Barrela", um texto fortíssimo e que chocou profundamente pela extrema rudeza do tema, assim como o linguajar recheado por palavrões e gírias dos malandros das ruas, ao ponto de ser perseguida pela polícia, que buscou os trâmites jurídicos para proibí-la. Não fosse a intervenção da própria, Pagú, ao ter procurado a interferência de Paschoal Carlos Magno, uma iminência parda do governo JK e homem muito ligado à cultura e ao teatro em particular, a peça teria sido banida sumariamente. Liberada oficialmente, continuou a chocar a opinião pública e de certa forma, choca até hoje, apesar de tantas décadas decorridas de seu lançamento.

A repercussão foi enorme e subiu à cabeça do jovem Plínio. Com críticas a sair publicadas em jornais a compará-lo com Nelson Rodrigues e até alguns mais afoitos ao arriscar chamá-lo de : "gênio", ele sentiu-se impelido a escrever rapidamente um segundo espetáculo, porém sem nenhuma ideia forte em mente, escreveu uma peça insípida, chamada : "Os Fantoches" (Chapéu sobre Paralelepípedo para alguém chutar). Anos depois, ele a reescreveria sob o título : "Jornada de um imbecil até o entendimento" No dia seguinte à estreia dessa nova peça, uma crítica arrasadora foi publicada no jornal : "A Tribuna de Santos", assinada pela própria Pagú, que antes o incentivava, e a manchete foi : "Esse analfabeto esperava outro milagre de Circo"...

Por não intimidar-se com o revés, mudou-se para São Paulo em 1960, e continuou a escrever e a envolver-se no metier teatral, agora a buscar voos maiores, na capital.


Todavia, sob um primeiro instante, sem meios para sustentar-se com o teatro, encarou sem frescuras o trabalho de camelô nas ruas, ao vender bugigangas as mais diversas para sobreviver.
Finalmente ele enturmou-se com o meio teatral e emendou trabalhos como ator, ao ser dirigido por um artista do quilate de Ziembinski e a contracenar com uma Diva absoluta como, Cacilda Becker, que aliás, tornou-se muito amiga sua, doravante. E por ser absolutamente simples, Plínio cativara os colegas pela sua total ausência de estrelismo. Foi versátil ao extremo e mesmo por ser um ator que evoluía a cada dia e reconhecido como um autor de potencial enorme, não fazia-se de rogado e se a produção precisasse de alguém para trabalhar na bilheteria, ou como contra regra, o Plínio estava sempre pronto para ajudar.


Ele cresceu muito no meio, e por conseguinte, surgiu a oportunidade e ele aceitou o convite para atuar na produção da "TV de Vanguarda" da TV Tupi. Tudo sugeria mais uma progressão na carreira, mas Plínio viu-se em apuros novamente, quando a peça que reescrevera, sob o novo título : "Jornada de um imbecil até o entendimento", fora vetada pela censura imposta pelo governo autoritário da ocasião. Nesses termos, ao coincidir com a sua saída da TV Tupi, ele ficou sem meios para ganhar dinheiro e assim, sem nenhuma cerimônia, voltou às ruas para trabalhar como camelô. Até álbum de figurinhas vendia na sua barraquinha improvisada.

Aliás, a sua saída da TV Tupi foi bem suspeita. Rumores deram conta de que houvera sido descartado, por ser considerado um simpatizante da oposição ao governo e dessa forma, os que pensavam de forma conservadora dentro dessa emissora, então representada pelo simpático logotipo a exibir um índio, tratou por  marginalizar o suposto oponente desbocado...


Alheio às perseguições e a luta pela sobrevivência nas ruas, ele continuou a escrever e dirigir a sua metralhadora ácida, para retratar através da sua dramaturgia, a sociedade em suas mazelas mais abissais. "Dois Perdidos Numa Noite Suja"; "Navalha na Carne"; "Quando as Máquinas Param"; "Homens de Papel"... e sua fama cresceu avassaladoramente. E como a censura liberou-as ?

Provavelmente os senhores censores não perceberam nenhum conteúdo "subversivo" em tais textos e mesmo a ala retrógrada que prestava maior atenção na questão dos costumes em busca pela moralidade, não demonstrou incômodo com os palavrões inerentes em suas obras.

Cacilda Becker declarou publicamente, que Plínio era um homem que só usava palavrões em seu vocabulário cotidiano, porém,  mesmo assim, conseguia ser genial em seu uso dentro dos textos; Roberto Freire o chamou de "gênio"; Walmor Chagas só o elogiara com muita eloquência e bingo, a fama mostrou-se consolidada.


Em 1968, Plínio voltou à TV Tupi e como ator, participou de um momento revolucionário na TV. Ao atuar em "Beto Rockfeller", uma novela que ousou; inovou e quebrou paradigmas, Plínio interpretou um personagem secundário, mas que ficou muito querido do público. Ele viveu o "Vitório", o melhor amigo do personagem fanfarrão, Beto (Luis Gustavo), e a mostrar-se conhecedor, portanto, das falcatruas que o Beto perpetrava para inserir-se na alta sociedade e tentar aplicar golpes nos milionários.

Prosaico ao extremo, era um humilde mecânico a trabalhar em uma pequena oficina de bairro e vivia o dia inteiro sujo por conta da graxa e a pronunciar-se mediante o uso exagerado de um sotaque paulistano, ultra italianado e muito típico da Mooca, um tradicional bairro dominado por italianos na capital paulista. Claro que tal personagem caiu nas graças do povo e como interpretação, não deve ter exigido nenhum esforço maior de laboratório para a criação do personagem, pois foi quase uma representação de si mesmo, com macacão de trabalho, sujo de graxa e com aquela verborragia mega popular. Talvez tenha sofrido somente um pouco para coibir os palavrões, mas se Dercy Gonçalves conseguia o mesmo feito nas novelas e filmes em que atuava, Plínio também poderia, também...

A novela foi um estouro de audiência, por apresentar muitas novidades, tais como : uma trilha sonora criada a dedo e com exclusividade; diálogos mais modernos; ala jovem representada; enquadramentos ousados; cenários melhor caprichados, assim como na observação dos figurinos dos personagens e sobretudo, por quebrar o ranço que as novelas continham até então, ao imitar o formato do folhetim das novelas mexicanas e cubanas.

Um filme com os personagens de Beto Rockfeller e Vitório foi realizado em 1970. Teve o mesmo mote da novela, mas sem repetir outros personagens. Confesso que gosto bastante dele, embora reconheça que tenha ficado aquém da força que a novela obteve em 1968. Em 1973, uma nova novela foi produzida a tentar repetir o sucesso, com o nome : "A Volta de Beto Rockfeller". Beto e Vitório estiveram presenes nessa nova investida, entretanto, a novela fracassou, ao não angariar nem 10% do élan que a original de 1968. arregimentara.

Nesta altura, Plínio teve também um envolvimento com a música, pois escrevera espetáculos musicais a enfocar o samba e o carnaval. Anos depois, em 1974, um curioso LP foi lançado sob o título : "Plínio Marcos em Prosa e Samba", com a presença de Geraldo Filme, famoso sambista paulistano. 

De volta a falar sobre a sua atuação teatral, ao retroagir para 1968 o endurecimento do sistema em dezembro de 1968, via AI-5, tornou a censura mais rígida e implicou bastante, por extensão com a obra de Plínio. Até cerco militar na porta de teatros foi montado para impedir a encenação de suas peças e tudo ficou difícil, novamente. Daí em diante, foram muitas viagens à Brasília para tentar convencer a "intelligentzia" a liberar os espetáculos.

Plínio certa vez citou um desses diálogos com tais senhores que serviam a censura :
- "Por quê as minhas peças estão censuradas" ? 
- "Porque as suas peças são pornográficas e subversivas"
- "Mas por quê são pornográficas e subversivas" ?
- "São pornográficas porque tem palavrão e subversivas porque você sabe que não pode escrever palavrão e escreve"...

Para Plínio, o palavrão era a linguagem das ruas. Foi o que ouvia nas oficinas mecânicas; salões de barbearia; botecos; na cadeira do engraxate e entre os carregadores do mercado municipal... acuado então diante da intransigência dos reacionários, bandeou-se para a literatura. Talvez se escrevesse livros, não fosse tão perseguido.


Além do traquejo como dramaturgo, Plínio fora um jornalista prático, pois escreveu colunas em vários jornais, desde 1968 e o ato em escrever foi mesmo o seu forte.  Então, como escritor, lançou trabalhos interessantes. Com o formato do romance ou da poesia, Plínio pôs-se a ludibriar a censura e o preconceito, mas acima de tudo, sobreviveu. Ele lançou livros como : "Querô - Uma Reportagem Maldita"; "Histórias das Quebradas do Mundaréu"; "Inútil Canto e Inútil Canto pelos Anjos Caídos"; "Oração para um Pé-de-Chinelo"; "Prisioneiros de uma Canção" etc.

Aliás, sem nenhum pudor, costumava vendê-los como camelô em porta de teatros e shows musicais. Eu mesmo, Luiz Domingues, o vi a cumprir tal tarefa, muitas vezes na porta do Centro Cultural São Paulo, e mesmo sem nunca tê-lo abordado diretamente, eu admirei a sua absoluta falta de estrelismo, mesmo ao ser um grande artista. Outros em seu lugar recusar-se-iam em trafegar dentro  de veículos que não fossem limusines, mas o Plínio estava ali na sua humilde barraca, firme e forte, munido de seu inseparável cetro, a sua marca registrada enquanto persona performática.

A surpreender, sempre, eis que surgiu o boato nos anos noventa : Plínio marcos agora ministrava consultas com cartas de Tarô.


Foi verdade, mas o que ninguém soube, foi que o envolvimento dele com essa escola mística, veio de longe. Plínio estudava os arcanos maiores e menores, desde o seu tempo de circo. Tanto que chegou a escrever uma peça, "Madame Blavatsky", inspirado na grande musa da Teosofia, para provar que o seu conhecimento sobre o tema, não constituíra-se de um modismo de ocasião. E nos anos noventa, ele  lançou o curso de tarô : "O uso mágico da palavra". Por conta disso, ofereceu inúmeras palestras; workshops e oficinas. Lembro-me por vê-lo, inclusive na TV, em programas de variedades e talk-shows, para falar a respeito desse tema. Plínio Marcos deixou-nos em 1999, vítima de um derrame cerebral.

Recomendo a visita ao site oficial de Plínio Marcos, mantido pelos seus filhos, com um cuidado exemplar. É muito completo e dignifica a memória do artista criativo que ele foi. Baseei-me nele para a minha pesquisa :

http://www.pliniomarcos.com/index2.htm

Plínio foi incompreendido por muitos, mas a verdade é uma só : revelou-se um tremendo artista, a apresentar uma multiplicidade total e a despeito de ser execrado por alguns detratores que o  acusam em ter sido analfabeto e desbocado, ele fez incomensuravelmente mais pela cultura do que todos os seus detratores, somados. Ou seja, nada mau para quem só concluiu o curso primário e a cada dez palavras que costumava pronunciar, dez foram palavrões...


Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2014.

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