domingo, 20 de abril de 2014

Filme : Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicletas) - Por Luiz Domingues

Uma das escolas de cinema mais sensacionais que surgiu no século XX, foi a do Neorrealismo Italiano. Um estilo forjado na pura determinação, com cineastas que ousaram filmar pelas ruas da Itália (e na Alemanha, também), semidestruídas pela guerra, e invariavelmente a utilizar atores amadores, pessoas simples e sofridas, extra´´idas do seio do povo, para interpretar o papel deles mesmos, sob a desolação dos escombros e da miséria.

E dentro de um rol de filmes muito significativos desse estilo cinematográfico (gosto de vários, para não dizer todos os seus grandes expoentes) hoje escolhi como tema para esta resenha, um que cala-me fundo : "Ladri di Biciclette" ("Ladrões de Bicicletas", em português).

Ambientado na Roma do pós-guerra, mostra a rudeza de um país em frangalhos; com as pessoas desesperadas pela ausência de condições dignas de sobrevivência e de forma avassaladora, expõe a injustiça, como um agente cruel da desumanidade.


Antonio Ricci (interpretado por Lamberto Maggiorani), é um pai de família desempregado, como muitos naquele momento triste da Itália. Ele procura de forma ávida, qualquer serviço que apareça-lhe, ao enfrentar diariamente a rispidez de empregadores mal humorados que oferecem pouquíssimas colocações no mercado. Nas portas das fábricas; no comércio e rede de serviços, todo dia pela manhã, aglomeravam-se centenas de homens nas mesmas condições que ele, ou seja, pais de família desesperados a brigar pela mesma vaga, como verdadeiras aves de rapina a disputar restos de animais mortos no deserto. Um dia, surge enfim uma oportunidade. Não passa de um subemprego, com remuneração muito baixa, mas ele quer agarrar tal oportunidade a todo custo.Trata-se de uma vaga para ser colador de cartazes, os antigos : "lambe-lambe" espalhados pelos muros da cidade.

Todavia, o empregador deixa claro : é imprescindível que o aspirante à vaga, possua uma bicicleta. Ele lembra-se que a sua bicicleta está na loja de penhores e não tem um centavo para resgatá-la. Todavia, sem a bicicleta, fica sem emprego...

Sem outra alternativa, ele mente e diz possuir a bicicleta em mãos, e o empregador o contrata. Terá que apresentar-se às 6:30 h. da manhã do dia seguinte, portanto terá algumas horas para tentar angariar o dinheiro e buscar a sua bicicleta penhorada.


Ele chega em casa e conta o seu drama à esposa (Maria Ricci, interpretada por Lianella Carell). Resoluta, ela tira o lençol da cama, apanha outras peças do armário e as lava imediatamente. Corte : estão na loja de penhores a oferecer as roupas de cama da família, lavadas e passadas, mas o homem da loja parece irredutível em oferecer-lhe um preço baixo, apenas a repetir monocordicamente a frase pronta : são usadas, senhora...

Quase a implorar por uma oferta um pouco melhor, a senhora consegue dobrar o coração duro do comerciante e com esse acréscimo, o casal consegue o suficiente para resgatar a bicicleta e ainda sobra um pouco para garantir as refeições da família por alguns dias. Antonio vai ao outro guichê da loja e com semblante de felicidade, resgata a sua bicicleta. A sua alegria em ver a bicicleta modesta e antiga, é a do homem que enxerga nela, na verdade, a condução para uma vida melhor para a sua família, esposa & dois filhos, sendo o mais novo, ainda um bebê.

Simultaneamente, ele vê outro funcionário levar a roupa de cama de sua família para o depósito. O funcionário escala uma montanha com trouxas de roupas similares, ao denotar que não fora apenas a sua esposa que empreendera esse sacrifício em prol da sobrevivência da família... a Itália inteira estava ali naquela montanha de lençóis brancos, a representar a penúria...

Antonio vai ao trabalho bem cedo, feliz da vida. Ele deixa o seu filho no seu emprego (sim, um menino de sete anos de idade que trabalha como frentista de um posto de gasolina...), Bruno Ricci, interpretado por Enzo Staiola.

Na manhã seguinte, acompanhado de um funcionário veterano, Antonio começa a colar os primeiros cartazes do dia. Vê-se a propaganda do filme norteamericano, "Gilda", com a imagem da atriz, Rita Hayworth sensualíssima, envolta no glamour que denota um contraste em relação à situação social de Antonio naquele instante. "Gilda"... nunca houve uma mulher assim"... pois é... Do alto da escada, Antonio passa cola no rosto de Gilda/  Rita quando um homem monta em sua bicicleta e sai em disparada...

Aos prantos, Antonio sai a correro atrás : "ladrone, ladrone"... A sua busca frenética revela-se em vão, e o ladrão some de sua vista, para deixá-lo desolado, por que fica claro ao espectador do filme, que mais que a bicicleta em si, o emprego será perdido. Antonio vai prestar queixa na delegacia e o policial que o atende ouve a sua queixa com absoluto desdém. Apenas limita-se a registrar a ocorrência e lhe diz com todas as letras, que a polícia não vai fazer nada, pois trata-se de um roubo insignificante. O protocolo servirá apenas para identificar a bicicleta, caso ele mesmo, a vítima,  localizasse-a em uma loja de penhores por aí...

Desolado, Antonio percebe que está sozinho nesse drama. O governo que não o ajuda em nada, mais uma vez cruza os braços para o cidadão humilde. Sem outra alternativa, passa a procurá-la por toda a Roma. O seu filho é seu acompanhante fiel nessa busca.

Antonio busca informações através de várias pessoas que conhecem bem a malandragem das ruas. Vai à um lugar obscuro, onde camelôs vendem peças de bicicletas. O famoso "desmanche", geralmente alimentado por bicicletas roubadas e desmontadas para a venda aos pedaços, e assim despistar a sua origem ilícita.

Um verdadeiro mercado de pulgas e punguistas, com golpistas por todos os lados e a brigar por centímetros para expor os seus produtos vergonhosos. Vão então à outro lugar obscuro e avistam centenas de bicicletas estacionadas ou em movimento. É pior que procurar uma agulha no palheiro e como agravante, começa a chover... é desalentador !

Subitamente, ambos vêem o ladrão com a sua bicicleta em meio à multidão, mas este percebe que foi reconhecido e evade-se velozmente. Em uma nova perseguição inglória, Antonio parte a correr atrás, mas claro que o perde novamente. Uma pista contudo, surge, quando o vê distante, a confabular com um homem idoso e maltrapilho. Ele aborda então o mendigo velho e este nega conhecer o ladrão, ao fornecer evasivas e a fazer-se como desentendido do assunto.
Nessa altura, cansado e a ser minado pelo desânimo, vê uma movimentação no entorno de uma igreja católica. São muitas pessoas moradoras de rua aglomeradas ali, a ser assistidas por um serviço de voluntariado. Alguns cortam cabelo e barba, outros servem refeições para esses desabrigados. Antonio tem uma expressão atônita diante do que vê, pois no seu inconsciente, sabe que está a poucos passos daquela situação e isso atormenta-lhe profundamente. O tal mendigo idoso estava lá e Antonio resolve empreender uma nova investida. Durante a missa, ele pressiona o velho, que finalmente admite conhecer o ladrão e indicá-lhe o seu endereço. Antonio não confia e quer que o velho o acompanhe, mas ele usa de um ardil e consegue fugir da igreja.

A cantoria e as palavras de esperança ditas no sermão do padre, são contraditórias ao inferno que Antonio está a vivenciar...

Com os nervos abalados, Antonio descarrega a sua raiva no filho, mas arrepende-se a seguir. O menino fica muito abalado e não entende por que foi esbofeteado, gratuitamente. A resposta do pai para essa questão é sincera, quando justifica o ato, ao dizer-lhe que agredira-o, pois este o deixara nervoso, mas como poderia um menino daquela idade entender o destempero de um adulto desesperado ?


O menino passa a andar separado do seu pai, sob um misto de indignação e medo, e a seguir, desaparece da visão de Antonio. Alguns segundos depois, uma gritaria enorme é ouvida e parece que um menino caiu no rio. Antonio corre desesperado, ao temer pelo pior, mas respira aliviado enfim, ao ver que o menino resgatado da água, não foi o seu filho. Bruno estava sentado na escadaria, a observar tudo de longe. Atordoado, Antonio percebe que o que está ruim, pode ficar muito pior e aliviado, junta-se ao filho. A busca precisa continuar... o dia está por acabar, e ele vai perder o emprego...

Sem dinheiro no bolso, seu instinto paterno busca uma solução para alimentar o filho, na medida do possível. Antonio, inventa uma brincadeira para driblar a adversidade, ao dizer ao filho que ambos  comerão pizza, acompanhada de vinho. Entram então em um restaurante, onde Antonio sabe que a pizza não faz parte do cardápio e a pede, ao esperar a negativa do garçom, para então pedir sanduíche de queijo e um garrafão igual aos de vinho, mas a conter simplesmente água. Sem dúvida que Roberto Benigni deve ter inspirado-se nessa cena para compor o seu : "La Vita é Bella", muitos anos depois. Antonio está exaurido e até em uma vidente foi parar, desesperado, atrás de qualquer fio de esperança em que pudesse agarrar-se. Por um golpe de sorte, quando sai à rua novamente, vê o ladrão da sua bicicleta entrar em um prostíbulo. Enlouquecido, ele  entra no recinto e arranca o meliante pelo colarinho, em meio aos protestos das prostitutas, que sem entender a situação, interpretam-no mal pela postura agressiva. As aparências enganam, definitivamente.

Ao levar o rapaz pelo braço, chega em um beco onde as pessoas ali presentes parecem conhecer o ladrão. É o seu bairro e todo mundo ali é seu amigo. Ao mudar de postura, o ladrão ironiza, pois está seguro na presença dos seus truculentos amigos, a envolver os dois e a ameaçar Antonio.

Mafiosos do bairro aconselham Antonio a sumir dali, pois o rapaz é "inocente", e nada tem a ver com o roubo da bicicleta, em sua avaliação super parcial e equivocada. Bruno percebe o perigo e sai despercebido da multidão ameaçadora em busca de um policial, para salvar o seu pai da situação, e quem sabe resgatar a bicicleta. O policial cumpre a sua obrigação e dá apoio, mas não há nenhuma prova de que o rapaz realmente seja um ladrão, a começar pela ausência do objeto do roubo em questão.

O policial tem boa vontade, mas dá um conselho para Antonio : melhor esquecer tudo e partir, pois não há provas e aquelas pessoas poderiam até inverter o jogo, ao acusar Antonio em perseguir o rapaz indevidamente, além da truculência na abordagem, fora a calúnia; difamação; perturbação da ordem etc. Sob impropérios e ironia, Antonio e Bruno deixam o local. Como se não bastasse todo o sofrimento causado pelo roubo, ter que engolir a injustiça e ainda ser ironizado por isso, foi um duro golpe adicional.

Antonio caminha calado pelas ruas e Bruno sente que o pai perdera a esperança. Bruno é quase atropelado, mas Antonio parece catatônico e nem percebe o perigo que o seu filho sofreu.

Exausto, o menino senta na guia da calçada, quando Antonio vê uma série de bicicletas estacionadas na esquina. O seu olhar parece agitar-se diante de tal visão e da catatonia desoladora, ele passa para uma indisfarçável agitação, com algo a repercutir na sua mente. Uma bicicleta está desgarrada, encostada na parede, sem nenhum dispositivo de segurança que a prenda em lugar algum...

Uma multidão parece estar a evadir-se de uma fábrica próxima. São trabalhadores a voltar para a casa e o tumulto estabelece-se. Antonio está a demonstrar muito nervosismo e então, tira a sua carteira do bolso, dá um dinheiro para Bruno, e ordena que o menino embarque em um bonde e volte para a casa. Claro que o garoto fica desconcertado com a mudança de rumo que o pai estabelece, mas obediente vai ao ponto. Porém, o bonde já estava a passar e ele perde a chance em subir nesse carro. O pai caminha nervoso de um lado para o outro e sob rompante, apanha a bicicleta e sai a rodar freneticamente. Gritos irrompem na multidão : "Ladri, ladrone"...

Perseguido por uma multidão, ele não tem a índole de um bandido. Não conhece a premeditação de um malfeitor frio e "profissional". Era apenas um homem de bem e tal como o Jean Valjean de Victor Hugo, apenas roubara sob um ato de desespero, motivado pelo instinto da sua sobrevivência, e de sua prole. Todavia, como explicar isso às pessoas que flagraram-no a roubar a bicicleta alheia ? Que diferença ele teria aos olhos da multidão, em relação ao rapaz que o roubara horas antes ?

Um princípio de linchamento instaura-s assim que o interceptam. É a hora para refletirmos : o que é justiça e injustiça ? Mais dramática a cena torna-se quando vemos Bruno, o seu filho, que por um golpe do destino, perdera o bonde. Por uma fração de segundos, ele não fora poupado dessa cena horrível em testemunhar o seu pai a ser linchado, por ser pego em flagrante delito ! Muito diferente do verdadeiro bandido que fora protegido por seus amigos e ironizou a situação, agora Antonio não tinha ninguém para proteger-lhe e diante do flagrante, despertara a ira dos homens de bem, que indignados, queriam o estabelecimento da justiça...

Irredutíveis, os homens xingam-no; humilham e agridem-no, fisicamente. O cidadão comum, desamparado pelas instituições, não suporta ter que lutar por sua vida e principalmente por estar à mercê de bandidos sempre prontos a roubar-lhe as migalhas que foram conquistadas mediante o seu suor absoluto.


Bruno desespera-se, corre em direção à essa cena horrível e chora. Agarra-se ao pai e grita, sob uma súplica dilacerante : "pappa... pappa"...

O seu desespero amolece o coração do dono da bicicleta, que resolve não prestar queixa, satisfeito com a sua recuperação. Antonio é libertado e tudo relaxa-se, porém não sem antes ouvir um sermão triste, onde acusam-lhe em ser um ladrão sem vergonha; vagabundo e que dá mal exemplo para o filho... 


Tal sermão parece amparado pela moral, mas em qual moral refere-se ? Mesmo ao deixar claro que um erro não justifica o outro, de forma alguma, somente o espectador do filme sabe que moral; imoral ou amoral são aspectos baseados em conceitos mutáveis no convívio social. O pior passou... não foi linchado, tampouco entregue à autoridade policial, mas Antonio agora recebera o golpe final na sua dignidade. Humilhado, apenas caminha com o seu filho, sem esperança. Um homem derrotado, a chorar pelas ruas de Roma, com a companhia do seu filho, bem assustado, ambos em meio à multidão formada por outros tantos homens, tão sofridos quanto os dois... Fine...

Isso mesmo, o filme não tem final feliz, por que o Neorrealismo Italiano foi uma escola baseada na premissa do cinema "verdade", feito realisticamente.

O fato em não utilizar atores profissionais, mas sim gente comum do povo, sem preparo técnico algum, poderia ser um transtorno para um diretor da tarimba de Vittorio de Sica, mas o resultado prático foi tão sensacional que realmente não há como notar que os atores utilizados nesta obra, foram amadores. A realidade é tão absurdamente pungente, que esse fato tornou-se um elemento a mais para fazer do filme, um sucesso absoluto.

Ele foi muito premiado, e considerado por muitos, um dos maiores filmes de todos os tempos, inclusive ao ser agraciado com o Oscar Honorário de melhor filme estrangeiro de 1948.

Lamberto Maggiorani teve uma atuação tão impressionante que logicamente foi persuadido a tornar-se um ator profissional, visto que na verdade, ele era apenas um operário de uma fábrica. Lamberto realizou mais doze filmes como ator, mas em nenhum deles repetiu a sua atuação impressionante em "Ladri di Biciclette".

O mesmo caso ocorreu com Enzo Staiola, o menino, que deu prosseguimento à carreira de ator e alguns anos depois, já adolescente, chegou a participar do filme norteamericano, "The Barefoot Contessa", com Humphrey Bogart, mas logo a seguir largou a carreira e tornou-se um professor de matemática.

Este filme é um retrato inacreditável sobre o estrago que uma guerra causa para um país. Pois se a guerra acaba no front para os militares, ao cessar o inferno das trincheiras, a população civil sofre muito pela penúria em que fica, no duro período da reconstrução e a aguardar pela volta à normalidade social. 


Recomendo assisti-lo sem reservas e dou um conselho : deixe uma caixa de lenços por perto, pois é de rasgar o coração. Principalmente a cena final, com o desespero do filho ao presenciar o pai a ser flagrado como um reles ladrão, ao estabelecer-se uma grande ironia do destino.

2 comentários:

  1. Não há muito o que comentar...mas me fez lembrar de tantos outros pais mundo afora, em situações semelhentes...pós-guerra ou não...isso, quando não são mães...sós e desesperadas, sem nenhuma outra alternativa, que não transgredir...isso em relação à trama...quanto à obra, que não conhecia, é, sem dúvida, uma obra de arte!

    ResponderExcluir
  2. Sem dúvida que a situação de injustiça social é terrível sob qualquer circunstância, independente de ser oriunda de um cenário de guerra ou pós-guerra.

    Neste caso de conflito bélico, ganha contorno ainda mais dramático, no sentido de que as instituições públicas estão destruídas, portanto, miséria e falta de ordem torna a vida das pessoas um inferno.

    Dentro dessa prerrogativa, "transgredir" em nome da sobrevivência, sucinta a velha discussão sobre ética : Diante da fome desesperadora, é ou não é lícito burlar a Lei ?

    Quanto ao filme, considero-o belíssimo e o recomendo. Deixei-o postado no próprio texto para facilitar a vida do leitor. Desfrute-o !

    Muito grato por ler e comentar !!

    ResponderExcluir