segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Ugo Giorgetti, Observador da Alma Paulistana - Por Luiz Domingues


A Cidade de São Paulo cresceu desordenadamente ao longo dos tempos e portanto, sem planejamento urbanístico adequado.
Sem belezas naturais e com raros espaços urbanos bem adensados, tornou-se uma inóspita terra de trabalho, onde quase nenhum imigrante ou migrante interno, faria questão de morar, se não fosse pelas oportunidades sóciofinanceiras que os atraem. E essa estratificação em torno de um mal-estar implícito, criou um inconsciente coletivo nocivo, onde os próprios nativos, paulistanos, contaminaram-se nesse eflúvio de baixíssima autoestima e dessa forma, são raros os que declaradamente gostam de sua própria cidade (situação da qual excluo-me veementemente, pois adoro a minha cidade, sendo cônscio de suas mazelas, mas sempre a observar os aspectos positivos da pauliceia).
Essa não é uma bandeira explícita do cineasta / publicitário e cronista esportivo, Ugo Giorgetti, mas no bojo de sua obra cinematográfica, mesmo que ele negue tal aspecto em entrevistas, é clara essa cumplicidade do homem paulistano com a sua cidade e tal característica está impregnada no celuloide de seus filmes. O cinema de Ugo Giorgetti explora aspectos sutis da alma paulistana. Foge das caricaturas humorísticas; dos estereótipos; da visão massificada que observa de forma superficial e quiçá leviana a cidade e sua gente. Mesmo quando ele apresenta clichês em seus filmes, o faz com outra conotação.
Um exemplo muito bom em sua filmografia, é o filme : "Sábado", de 1994, onde toda a ação proposta em seu roteiro, passa dentro de um decadente, porém outrora charmoso, edifício localizado no centro velho da cidade. Todas as situações decorrentes expõem de maneira brilhante o mosaico paulistano típico, com todo o tipo de gente retratada, exatamente como é a face da cidade em seu caráter cosmopolita.
Trata-se da filmagem de uma peça publicitária (aliás, universo que ele conhece muito bem, por ter atuado muito nesse campo de filmagens para comerciais de TV), onde o velho edifício é alugado para servir de cenário, devido ao seu elevador "vintage", considerado crucial para servir como cenário da peça publicitária proposta. Todavia, tudo, absolutamente tudo, acontece naquele "Sábado". Entre confusões e transtornos, Giorgetti construiu um verdadeiro mosaico em torno da condição paulistana, com situações engraçadíssimas, mesmo que o filme não seja exatamente uma comédia.
Outro exemplo dá-se em "Festa", de 1989. Nessa película, Ugo constrói a sua história em uma festa ocorrida de uma mansão de um bairro elegante, porém, são poucas as intervenções da festa em si, pois a ação concentra-se em seus bastidores; no entra-e-sai dos garçons; prestadores de serviços; através do estressado mordomo; suas serviçais e principalmente nos três entertainers contratados (um músico; um mágico, e um "ás" do bilhar, interpretados por Jorge Mautner; Antonio Abujamra; e Adriano Stuart, respectivamente), que passam a festa inteira a esperar a sua vez em ser solicitados a entreter os convidados, mas esse momento nunca ocorre, na prática. Expectativa e tédio misturam-se, e mesmo sendo uma perspectiva que nunca consuma-se, a atenção do espectador jamais é quebrada, tamanha a profusão de fatos absurdos que ali acontecem.
Portanto, trata-se de mais uma miríade de tipos paulistanos arrolados brilhantemente, ao mostrar o retrato da cidade, no microcosmo de uma sala de espera...
Em "Jogo Duro", eis outra visão muito especial sobre a cidade. Uma história curiosa, centrada em uma casa em exposição para venda e sob o ponto de vista do corretor e do expositor do imóvel. É na verdade, aparentemente um argumento que renderia no máximo um curta-metragem, todavia, Giorgetti tornou-o atrativo como um longa, e mais uma vez lançou o seu olhar para São Paulo, com o contraste da bela casa vazia no bairro nobre do Pacaembu, ao incorporar elementos sobre a especulação imobiliária; o drama dos sem teto; a segurança precária dos guardas-noturno etc. Em alguns aspectos, esse filme tem traços do cinema de Walter Hugo Khoury, outro paulistaníssimo diretor, no tocante às tomadas panorâmicas da paisagem do Pacaembu e algumas situações centradas pelos diálogos entre os personagens.

Mas foi em "Boleiros", que Ugo esmerou-se. Ao mostrar seis histórias deliciosas, alinhavadas por uma conversa de botequim entre amigos, que são ex-jogadores profissionais e um ex-árbitro, todos em meio às suas reminiscências. Ugo mostrou com brilhantismo, inúmeros aspectos da vida paulistana, dentro e fora do futebol. Com uma história focada no universo de cada grande clube paulistano (tudo bem, o Santos F.C. não é paulistano, mas tem o seu quinhão grande de torcedores na capital, também) e uma centrada na arbitragem (e de quebra a citar o Clube Atlético Juventus, clube considerado pequeno, mas paulistano de corpo & alma).
Giorgetti mostrou aspectos dos bastidores do futebol, nunca antes retratados no cinema nacional.
O diferencial está no fato dele ser um apaixonado pelo futebol e seus bastidores, tanto que há muitos anos, escreve uma coluna aos domingos no Jornal : "O Estado de São Paulo", da qual sou leitor voraz, pois adoro a sua visão romântica dos meandros, as quais identifico-me muito. E assim, no filme, "Boleiros" ele mostrou isso, sinteticamente, claro, mas de uma forma brilhante. O que dizer do grande craque que está sempre contundido e pressionado por torcedores desconfiados de sua real situação clínica, que aceita ir com eles a um "pai-de-santo" para tentar curar-se ?
E o grande craque que está na crista da onda e após fazer um gol antológico na rodada de domingo, fica dividido entre fugir da ex-esposa que o procura no vestiário do estádio (a cobrar-lhe a pensão alimentícia em constante atraso...); encontrar-se com a namorada "Maria chuteira"; ter que participar de uma enfadonha "Mesa Redonda", em um daqueles programas dominicais noturnos; e também encontrar-se com o seu empresário que pretende negociá-lo com um grande clube italiano ? Só que uma surpresa o aguarda no trânsito, ao dirigir um carrão importado...
Tem também o ex-craque que agora ganha a vida a administrar uma "escolinha de futebol", e tem que aturar meninos burgueses sem talento algum em contraste com a expectativa de suas respectivas mães, a opinar inconvenientemente sobre esquemas táticos a valorizar a atuação dos seus pimpolhos e estes, sem nenhuma condição de pleitear ser jogador além das peladas de condomínio.

Uma história de cortar o coração é centrada na insistência de um repórter esportivo em entrevistar um ex-craque que jogou no Santos FC e na seleção brasileira, mas que por estar na pior, colocara um anúncio classificado nos jornais, a vender os seus troféus e medalhas, para sobreviver. Nessa, existe um desfecho surpreendente. 

E finalmente, o clássico mais tradicional da cidade é retratado com humor e emoção, mas sem mostrar o jogo em si.
É a noite que antecede o clássico e a delegação do Palmeiras está concentrada no hotel. O técnico paternalista e velha guarda, interpretado com muita intensidade por Lima Duarte, controla tudo, da comida, às conversas e principalmente sobre a quantidade de horas que deseja que os seus jogadores repousem.Entretanto, ironicamente, a sua vigilância canina é burlada, para deleite dos boleiros.
O ator, Lima Duarte em entrevista, declarou que compôs o seu personagem a pensar em Osvaldo Brandão e Telê Santana, ambos com temperamento disciplinador, mas também grandes vencedores e nos dias atuais, saudosos, infelizmente.
"Boleiros 2" não repetiu o mesmo brilhantismo, mas traz mais histórias pitorescas do futebol. Entendo a intenção do Giorgetti em não ter repetido a fórmula do primeiro filme. Seria deitar-se em berço esplêndido e comemorar o sucesso fácil, com mais seis historietas deliciosas dos bastidores do futebol, mas como criador que é, buscou outra temática, ao focar nas relações escusas das negociatas do futebol, e assim, tornou este segundo filme, mais soturno. 

"O Príncipe" foi uma aposta bem sucedida em um cinema mais introspectivo.
"Quebrando a Cara" foi um documentário tocante, que começou a ser filmado nos anos setenta e demorou anos para ser concluído, ao retratar o mundo do pugilismo, centrado no campeão, Éder Jofre.
Giorgetti é sempre cauteloso quando fala de seu cinema em relação à São Paulo, mas convenhamos, quem mais faria um documentário chamado : "Pizza", focado no universo das pizzarias da cidade ? Pois o nosso lema é : "Non Ducor... Duco", mas informalmente poderia ser : "Mezzo Muzzarella, Mezzo Calabreza...
O seu projeto mais recente, "Solo" (2010), mostra mais aspectos da pauliceia, com atuação forte de Antonio Abujamra e o ainda em produção "Cara ou Coroa", terá a visão dele, pessoal, de uma aparente família comum na São Paulo de 1971, mas em meio ao turbilhão político em que vivia o país nessa ocasião.

Ao fugir do clichê habitual dos cineastas que só enxergam o período sob o viés da ditadura militar, Giorgetti contará a história de uma família comum, que sim, sabia que estava a viver em um país sob momento político muito difícil, mas que não alterou a sua rotina de vida.
Recomendo assistir todos esses filmes que arrolei, sem reservas. Eu tiro o meu chapéu para o cinema, e para as crônicas futebolísticas do paulistaníssimo, Ugo Giorgetti !
Matéria publicada no Site / Blog Orra Meu, e republicada posteriormente na Revista eletrônica Cinema Paradiso, em sua edição n° 316, ambas em 2012.

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