quarta-feira, 24 de julho de 2013

Walter Hugo Khouri - Por Luiz Domingues

Se há um fator que eu abomino no campo da arte, é o patrulhamento ideológico, a cercear; inquirir e tentar manipular ao seu bel prazer, o engajamento (ou não, a depender do ponto de vista em prol de uma ou outra ideologia), de um artista e sua obra, dentro de seus padrões políticos. Muitos artistas passaram por esse tipo de pressão desagradável em suas respectivas carreiras, e o cineasta paulistano, Walter Hugo Khouri, foi um deles. 
Nascido na cidade de São Paulo, no ano de 1929, era filho de um cidadão libanês, imigrante oriundo de uma das colônias mais numerosas e produtivas da cidade, e pessoas essas geralmente engajadas no comércio de tecidos; roupas e armarinhos em geral. Já na adolescência, Walter ingressou na USP para cursar filosofia, mas abandonou o curso dois anos depois, arrebatado pelo cinema, por onde enveredou, doravante. Em seu primeiro filme como diretor, ele iniciou a sua primeira filmagem em 1951, mas tal obra só foi concluída em 1953, devido a uma série de adversidades.
Nesse ínterim, trabalhou como assistente de Lima Barreto, no grande sucesso da Vera Cruz : "O Cangaceiro". 
Curiosamente, grande parte do maquinário da Vera Cruz, que fecharia as portas tempos depois, seria adquirido por ele, para impulsionar a sua determinação para fazer cinema de uma forma independente, exatamente como cineastas europeus contemporâneos seus, e com os quais, ficaria muito identificado, positiva e negativamente, conforme o enfoque a ser dado.

Finalmente em 1954, o seu primeiro longa-metragem ficou pronto. Em "O Gigante de Pedra", a crítica foi impiedosa, por insistir em criticar os defeitos técnicos, ao atribuir-lhe o fato de que Khouri não contara com o apoio formal de um estúdio. Esse tipo de preconceito faz com que eu relembre o final dos anos setenta, época quando começou a surgir os primeiros lançamentos de discos independentes, e as grandes gravadoras tentaram estabelecer um lobby, ao espalhar boatos maledicentes, para dar conta de que músicos não contratados por elas, seriam amadores, com o intuito em desmoralizar os artistas independentes. 

No caso de Khouri, todavia, outras pessoas o atacaram por outro motivo. Em meio aos primeiros sinais de um proto-Cinema Novo que surgia, na percepção de tais críticos, Khouri deveria usar a precariedade de uma produção tosca, para que tais "defeitos especiais" soassem como um autêntico trunfo proposital, no sentido de estabelecer-se um cinema crítico da miséria brasileira. Tal pensamento radical permeou o Cinema Novo, que solidificar-se-ia a seguir. Glauber Rocha que o diga com a sua "estética da fome". 
Entretanto, Khouri não teve tal intenção, e a denúncia social não fez parte de seus planos como criador, e na verdade, a sua visão fora muito mais intimista, ao buscar os meandros psicológicos; psicanalíticos, sob certo viés existencialista, e sob a sofisticação de um enfoque substancial através das artes plásticas; música e literatura, entre outros ícones que interessavam-lhe, pessoalmente.

Ao buscar essa profundidade em seu cinema, os seus filmes perseguiu tal caminho, cada vez mais, e quanto mais ele mergulhava nesse espectro, mais ataques recebia da parte de críticos e até de colegas que acusavam-no em ser "alienado", por fazer um cinema hermético em meio as favelas & mazelas com as quais estes detratores seus, enxergavam o Brasil. 
Logo no segundo filme, "O Estranho Encontro", de 1958, essa veia psicológica fortíssima, tornou-se a sua marca registrada que imprimiria doravante por toda a sua carreira. Nesse filme, a exploração de climas sutis sob cunho psicológico, vividos  pelos cinco personagens, deu margem a mais ataques dos detratores, ao acusá-lo por empreender um cinema alheio aos signos tropicais do nosso país e portanto, alienante por isso ao denotar falta de engajamento político ideológico. Na época, certos críticos chegaram a acusá-lo por ser um mero imitador de cineastas existencialistas europeus e japoneses. Particularmente, acho um absurdo tal colocação, tanto pelo aspecto político, quanto pelo artístico em si.

A seguir, ele lançou dois filmes : "Fronteiras do Inferno" (1958) e "Na Garganta do Diabo" (1960). Nesses trabalhos, alguém enfim percebera que ele era ótimo e ao deixar de lado a crítica preconceituosa, foi ressaltada a sua qualidade como diretor de atores, ao extrair ao máximo a potencialidade de um ator, em obras onde a expressão mais aprofundada fizera-se fundamental. 
De fato, ao observar a sua obra inteira, Khouri realmente foi muito bom nesse quesito e de minha parte, posso trazer uma referência minha (que talvez nem fosse a dele, exatamente), ao compará-lo ao diretor norteamericano, George Cukor, notadamente um mestre em dirigir com minúcias, principalmente as atrizes. E portanto, enxergo essa similaridade de Cukor com Khouri, pois o paulistano tinha um apreço também pelas personagens femininas.

Antes que corrijam-me, não acho que Hitchcock (que também tinha esse cuidado com as mulheres, em particular), fosse igual, pois nesse caso, o inglês cultivava uma espécie de fixação, em um enfoque um pouco diferente. 
A seguir, Khouri lançou : "A Ilha", em 1963. Na prática, seguiu a ideia de, "O Estranho Encontro", com personagens isolados e a viver uma catarse psicológica intensa. No entanto, foi em 1964, que Khouri lançou um de seus maiores êxitos. "Noite Vazia" é um filme sensacional, que não canso-me em assistir, repetidas vezes.
Ao mostrar o vazio existencial de dois hedonistas em uma noitada, Khouri foi muito feliz em trabalhar com os contrastes.

Em meio ao frenesi da noite paulistana, esses dois homens buscam o prazer de bar em bar, até que culminam em contratar duas prostitutas para fechar a sua noite de prazeres. 
O vazio deles, as contamina também, e dentro desse aspecto, em um filme montado sob longos enquadramentos e pouco diálogo, diz muito ao espectador, pelas sutilezas contidas subliminarmente.

Falei em êxito, mas no sentido artístico, por que o cinema de Khouri nunca foi popular. 

Alheio à situação política tensa em que o Brasil colocara-se em uma radical naquele ano, os seus detratores confundiram o teor existencialista com a futilidade burguesa, ainda que houvesse um fundo de verdade nessa premissa. É certamente, a despeito dessas críticas da parte de radicais, um dos meus filmes prediletos de sua filmografia. Alheio aos seus perseguidores, Khouri prosseguiu a criar de forma prolífica. 
"Corpo Ardente" veio a seguir, quase simultaneamente a um episódio do longa coletivo  :"As Cariocas". Uma curiosa visão de um cineasta paulistano sobre o Rio.

Em "As Amorosas", Khouri deu ares de cunho político, mas não necessariamente da forma como costumavam cobrá-lo. Como um crítico de tudo e de todos, o personagem vivido pelo ator, Paulo José, circula entre estudantes da USP politizados; hippies e freaks da São Paulo de 1967. Para os ligados em música e contracultura, esse filme tem uma incursão dos Mutantes, ainda sob uma fase incipiente da carreira, e a tocar ao vivo na Galeria Metrópole, localizada na Avenida São Luiz, no centro da cidade de São Paulo.
Nessa cena, vemos o artista plástico, Antonio Peticov, entre outros artistas avantgarde de sua época, em meio a um bando de hippies.
De certa forma, Khouri reproduziu o mesmo que Michelangelo Antonioni houvera feito um ano antes em Londres, ao filmar o personagem protagonista de seu filme, "Blow up", ao entrar fortuitamente em um clube e ali assistir os "Yardbirds" a tocar ao vivo, com direito a presenciar-se o grande guitarrista, Jeff Beck, a quebrar a sua guitarra de uma forma ensandecida, no meio da performance... coincidência o Khouri buscar uma cena nesses mesmos moldes ou ele fora um artista com a antena inteiramente sintonizada no que passava-se ao redor do planeta ? Claro que a segunda opção.

Com o avançar da década de setenta, Khouri manteve o seu cinema fiel aos seus ideais, mas ficou nítida a carga maior em torno da erotização de seus filmes, doravante. Alguns críticos observam que ele aproximou-se de cineastas da chamada, "Boca do Lixo', de São Paulo, onde concentrava-se a produção mais acintosa de filmes que passaram à história, conhecidos como : "pornochanchadas". 
Claro, no caso de Khouri, longe da tosquice de tais produções, geralmente destinadas aos entusiastas da prática onanista, mesmo quando exagerou um pouco além da conta, em um ou outro filme (talvez em "Amor, Estranho Amor" de 1982 , ou "Eu", de 1986).

E mesmo no seu filme dessa fase, mais identificado com tal apelo erótico, "Convite ao Prazer", de 1980, apesar das várias cenas de sexo ali inseridas, acho-o um de seus melhores trabalhos, justamente por exprimir o vazio hedonista, expresso na busca do prazer pelo prazer, portanto a conter uma forte crítica social. 

Sim, "Convite ao Prazer" parece ser uma continuação de, "Noite Vazia", mas desta feita com um enfoque um pouco diferente.

Outros filmes muito centrados nessa carga psicológica com fatores sexuais recônditos, revela-se em "As Deusas"; "As Filhas do Fogo"; "Eros, o Deus do Amor"; "Forever" (esse último, muito curioso, falado em inglês, com muitos atores brasileiros a testar o seu aprendizado em cursos de língua inglesa, e com a presença do ator ítaloamericano, Ben Gazarra). 
Destaco também : "O Último Êxtase"; "O Anjo da Noite"; "O Desejo"; "Paixão e Sombras"; "Amor Voraz" etc.

Khouri mantinha certos ícones pessoais que o acompanharam em quase toda a sua obra. Por exemplo, a questão de sua predileção pelas artes plásticas.

Seja no cenário, ou no figurino usado pelos atores em cena, sempre destaca-se tal referência em seus filmes. No mínimo, de forma fortuita, a câmera vai passar por uma poltrona; mesa ou estante de livros e René Magritte vai aparecer, nem que seja por um livro com as suas ilustrações, ali colocado, en passant.

Outra predileção de sua parte e sempre presente nos seus filmes foi o Jazz. Alguém vai estar a escutar um vinil, ou mesmo vai ingressar em uma festa, e uma banda estará a tocar ao vivo tal escola musical. 
E na questão técnica, Khouri primou pelos enquadramentos longos, sem pressa alguma em estabelecer cortes. Daí o fato de que muitos críticos consideravam-no parecido com Ingmar Bergman, pelas longas cenas com a câmera parada e a exibir atores mudos, apenas a expressar-se pelos seus semblantes.

No cômputo geral, Khouri realizou um cinema sofisticado ao meu ver, e foi incompreendido por muitos e maltratado indevidamente pelos patrulheiros ideológicos. 
Nesse aspecto, louvo, além de sua qualidade artística, a coragem que ele observou para seguir em frente, mesmo quando foi duramente vilipendiado. E uma última observação : talvez o cinema de Khouri não seja tipicamente brasileiro. A sua obra nunca teve essa preocupação e de fato, o seu foco foi centrar no ser humano cosmopolita, mais do que sob característica da cultura nacional do Brasil. Contudo, ao contrário dos patrulheiros ideológicos, eu não enxergo mal algum nessa determinação de sua parte e nunca acreditei que fosse imprescindível para um artista brasileiro, colocar uma cesta de frutas na cabeça para impor-se ao mundo (e deixo claro : gosto da Carmem Miranda, não pense o leitor ao contrário !) .
Um livro que eu recomendo sem reservas, e que analisa a profundidade filosófica na obra de Walter Hugo Khouri, chama-se : "O Equilíbrio das Estrelas", de autoria do professor de cinema, da Universidade Anhembi  / Morumbi de São Paulo, Renato Luiz Pucci Jr. Nele, toda a obra de Khoury é esmiuçada por esse olhar muito profundo, e certamente que os filmes de Khouri, tem essa característica forte em seu âmago.

De voltando a falar sobre o Khouri, acho perfeitamente legítimo que um artista expresse-se da forma como bem entender, sem prender-se aos ufanismos descabidos. E foi o caso de Walter Hugo Khouri, que perpetrou o seu cinema, sem essa preocupação em específico.
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2013.

2 comentários:

  1. Oi, Luiz
    Ótimo artigo. Muito coerente com o Khouri. Falo isso, por que tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. E a esposa dele, D. Nadir, contou muitas histórias para mim e o meu marido.
    De fato, Khouri gostava de jazz, de livros, e de artes plásticas. Havia quadros lindos na casa dele, que hoje acredito estar com o filho.
    Ser querer ser pretensiosa, discordo um pouco de críticos que achem Khouri parecido com Bergman. Os filmes podem ser parecidos, mas acho que Khouri era mais pessimista do que Bergman. Às vezes, eu acho que Khouri está mais para Woody Allen, do que Bergman.
    Parabéns pelo artigo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, janete !!

      Sua experiência de ter conhecido e convivido com o Khouri em vida, é muito rica.

      Fico contente por você confirmar aspectos que enxergo nos filmes dele, que correspodiam à sua personalidade. Jazz, artes plásticas, livros e outros ícones sempre retratados nos filmes, eram reflexos de seu interior.

      Não acho que seja pretenciosa em discordar da abordagem de outros críticos. Pelo contrário, uma opinião diferente abre um novo foco sobre o artista e sua obra.

      Todavia, mesmo entendendo que quando discorda da comparação com Bergman, sempre o faz pensando em resoluções macro, a comparação padrão diz respeito à aspectos técnicos, como enquadramentos, cortes lentos, ausência de diálogos e zoom em expressões faciais, entre outras coisas.

      Dessa forma, assemelha-se bastante à estética do Bergman, devo concordar com eles.

      Muito grato por ler, comentar, trazer adendos e elogiar !!

      Excluir