Geraldo Filme foi uma personalidade ímpar na vida social, pois transitou entre a cultura e a
militância política, mas sobretudo preocupado com a questão da discriminação e
o preconceito contra a população negra e das classes sociais mais carentes, Geraldo Filme foi um sambista e compositor que teve uma trajetória muito rica
em espontaneidade e simplicidade, mas com uma profunda inspiração advinda da sabedoria
popular. A sua história pessoal foi plena em fatos surpreendentes, a
começar pela data e local de seu nascimento.
Segunda consta em seus documentos, Geraldo Filme de Souza
nasceu em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, em 1928, mas ele
mesmo afirmava que teria nascido na capital, em 1927, e que o seu pai o registrara como
nascido naquela cidade interiorana, apenas para manter a tradição antiga em registrar-se filhos como nascidos na terra natal dos pais, mesmo que isso não
correspondesse à realidade, portanto, a honrar um costume comum entre a população negra mais
antiga. Neto de escravos, cresceu a ouvir histórias tristes sobre
subjugação; preconceito; discriminação e injustiças contra os negros e pobres. O seu pai tocava violino e uma de suas avós sabia de cor um
repertório vasto de cantigas populares cantadas pelos escravos e que muito o
influenciou musicalmente em sua vida adulta posterior.
Já a morar em São Paulo, no bairro central dos Campos
Elíseos, Geraldo costumava ajudar a sua mãe no pequeno negócio comercial que sustentava a família. Tratava-se de uma pensão que também servia comida para
fora. Garoto, recebeu o apelido de : “negrinho da marmita”, por tanto caminhar
pelas ruas do bairro, a entregar a comida que a sua mãe fazia e alimentava tantas famílias naqueles arredores. Segundo ele mesmo contava, muitas vezes a sua marmita
simples foi entregue no Palácio do Governo estadual, que nessa época ficava localizada nesse
bairro, e solicitada pois, pelo governador, Ademar de Barros, em pessoa.
A sua mãe também trabalhava como empregada doméstica e ao atuar
em residências de famílias abastadas, culminou em viajar como acompanhante de uma
família dessas, para Londres, onde tomou contato com uma realidade sindical para organizar os empregados domésticos, cujo tipo de instituição ninguém nem sabia que existia no Brasil. De volta ao Brasil, ele fundou um sindicato de empregadas
domésticas, que foi pioneiro na cidade, e que daí derivou um grêmio recreativo, que por
conseguinte, transformou-se em Escola de Samba (Paulistano da Glória).
Geraldo enfrentou tempos difíceis para as manifestações culturais afro, posteriormente. Rodas de samba eram proibidas, assim como exibições de capoeira e “tiririca”, uma variante dessa arte marcial.
Geraldo enfrentou tempos difíceis para as manifestações culturais afro, posteriormente. Rodas de samba eram proibidas, assim como exibições de capoeira e “tiririca”, uma variante dessa arte marcial.
Tudo era improvisado e sujeito a correrias quando a
polícia chegava para dispersar os sambistas e capoeiristas.
E tudo era absolutamente feito apenas baseado na boa vontade, como fala-se
popularmente. Batucadas eram promovidas sem instrumentos musicais adequados,
mas a usar o poder do improviso total, ou seja, a utilizar-se latas; pedaços de
pau achados pelas ruas; caixas de engraxates; e tamborins improvisados com couro
de gato (bichanos esfolados, sei que isso é errado e claro que acho abominável,
mas foi assim que tais artistas populares puderam, expressar-se nessa época difícil).
Um famoso samba de sua autoria, surpreende pela pesquisa
que teve que empreender. “Tebas” não tem a ver com a cidade da antiguidade grega,
mas tratava-se de uma gíria antiga que era popular entre a população negra, e
que designava uma pessoa exímia em alguma atividade, e que posteriormente
ganhou outros adjetivos, tais como : ”bamba”, “Ás” e “Craque”, entre muitos
outros. E de onde surgiu isso ? Geraldo descobriu que o construtor das torres da Catedral
da Sé e responsável pela obra da canalização da rede de esgotos do centro da
cidade, houvera sido um ex-escravo negro e que conseguira a sua carta de alforria
justamente em reconhecimento de sua capacidade autodidata para projetar complexos
sistemas de edificações e tubulações. O nome desse arquiteto / engenheiro "prático", sem estudo e sem
diploma, não consta dos registros oficiais da história por descaso, mas Geraldo
foi buscar essa história fantástica, e a cantou em seu samba.
Outro exemplo de sua criatividade, deu-se quando ele cantou em “Eu vou
mostrar”, os motivos pelos quais o samba paulistano não deveria ser desprezado. A ideia surgiu quando cansado em ouvir seu pai falar que
o samba do Rio de Janeiro era o verdadeiro samba e que em São Paulo a produção
local era sofrível nesse sentido.
Incomodado pela provocação paterna, criou com muita
criatividade o seu samba a exaltar exatamente o contrário do que o seu progenitor costumava afirmar. Geraldo, apesar de deter a sua música muito ligada à
urbanidade da cidade grande, mantinha também as suas raízes interioranas. Inconformado com a discriminação nas manifestações
religiosas da pequena cidade de Bom Jesus de Pirapora, criou o samba : “Batuque de
Pirapora”. Quando criança, por exemplo, compareceu vestido como anjo por um arranjo perpetrado pela sua
mãe, ao participar de uma procissão, mas foi “convidado” em não misturar-se às
crianças brancas, obrigado a participar ao final da fila, por pura discriminação racial.
Como muitos artistas do samba, só muito tardiamente foi
descoberto pela indústria fonográfica; mídia e show business. Antes tarde do que nunca, lançou enfim o seu primeiro LP em
1980. Ele foi relançado em CD no ano de 1993, graças aos esforços da gravadora
Eldorado em resgatar artistas esquecidos precocemente dentro do mundo da MPB. Em 1982, um outro LP denominado :”O Canto dos Escravos”,
dividido com Clementina de Jesus e Doca da Portela (artistas com trajetórias
bem parecidas com a dele), e igualmente, todos tardiamente reverenciados.
No mesmo ano, uma coletânea, também lançada pela
Eldorado, chamada : “Memória Eldorado”, trouxe um pouco mais de material do sambista. Outra forma para conhecer-se um pouco de seu trabalho, dá-se
através do LP “Beth Carvalho Canta o Samba de São Paulo”, um bonito resgate
promovido pela intérprete carioca à produção paulista / paulistana.
Caso também do LP “História do Samba Paulista”, do percussionista,
Osvaldinho da Cuíca, onde esse artista regravou composições de Geraldo Filme.
Existe um documentário sobre a vida e obra de Geraldo,
realizado pelo produtor, Carlos Cortês, mas infelizmente pouco divulgado, O material mais completo que pode-se acessar, além dos poucos
LP’s e esse documentário citado, é a participação de Geraldo no extinto
programa “Ensaio”, de 1982, e sob direção de Fernando Faro.
Produção enxuta da TV Cultura de São Paulo, tal programa costumava fornecer espaço
para grandes artistas, conhecidos ou não do grande público, para falar-se um pouco
sobre o seu trabalho; ao tocar e cantar ao vivo, além de intercalar-se com
depoimentos sensacionais e espontâneos dos próprios artistas em si.
Nos seus últimos anos de vida, Geraldo foi membro da comissão de
organização do carnaval de São Paulo. As suas músicas primavam pela espiritualidade na criação das
letras. Ele usava linguagem coloquial, com extrema simplicidade, todavia, sem grandes
maneirismos, caso de Adoniran Barbosa que adotava o paulistanês italianado e
cheio de erros gramaticais como uma licença poética proposital, por exemplo. Tampouco teve a malandragem sadia das ruas, como o grande,
Germano Mathias, ou o samba Pop e italianado de Miriam Batucada. Na parte musical, a sua intenção não foi desvirtuar-se das
tradições do samba. Profundamente influenciado pelas raízes afro, trazidas pelos
escravos, não interessou-se em quebrá-las com ousadias estéticas novas, e pelo
contrário, trabalhou sempre fiel às raízes.
Geraldo Filme é mais um caso de um artista genuinamente
popular que caiu no esquecimento, indevidamente. A sua vida; obra e luta pelo fim do racismo; discriminação
e igualdade de condições para todos, norteou a sua música feita com tanta qualidade. Portanto, a sua trajetória cabe bem em um filme...
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2014.