Quinto filme
com os Beatles, “Let It Be” é na verdade um documentário, no entanto, creio que
é plausível a sua inclusão neste rol como um “Rock Movie”, por alguns detalhes
excepcionais que lhe garante tal classificação, mesmo que seja um argumento levemente
adulterado para poder aqui se encaixar.
Em primeiro lugar, há por se observar
que dada a dimensão que os Beatles alcançaram no panteão do Rock sessentista, o
simples fato de não haver dramaturgia envolvida nesta obra e assim se tornar possível classificar esta obra como um filme, tornou-se um fator irrelevante,
no sentido de que tais seres humanos que respondiam pelos nomes de Lennon,
McCartney, Harrison e Starkey, ostentavam uma aura como se fossem personagens do
imaginário.
E não apenas a referir-me aos quatro integrantes da banda, mas
também a considerar que George Martin, Geoff Emerick, Derek Taylor, Brian
Epstein e os roadies da banda, Neil Aspinall e Mal Evans, também habitavam o
imaginário de milhões de pessoas ao redor do mundo.
O segundo
aspecto, é certamente o fato de que a intenção inicial ao lançar-se essa obra
foi positiva em determinado sentido, no entanto, graças aos fatos ocorridos na
cronologia imediatamente anterior e também durante o processo da produção dessa
filmagem, aconteceu que este filme se revelou como um autêntico raio-x sobre os
graves problemas internos pelos quais a banda atravessava, portanto, se a
intenção inicial foi revelar como seria o ambiente de criação no âmbito interno
da banda, por força das circunstâncias, tornou-se um documento amargo, porém
fiel, de que o clima entre os componentes estava bastante deteriorado. Antes de
avançar, no entanto, é preciso traçar um paralelo entre esta obra em específico
e a carreira da banda, para melhor entender o porque desse clima pesado que eu
aventei acima.
Em primeiro
lugar, é preciso entender que, genialidade nata a parte, essa banda nunca foi
gerida pelo sentimento de uma união ferrenha entre os seus componentes, como
ocorrera com outras bandas na história do Rock, e digo isso, a acrescentar a
expressão, “por incrível que pareça”, pois parece algo muito surpreendente que
uma banda como, The Beatles, não tenha sido construída com tal parâmetro a
alicerçar a sua trajetória de sucesso. Entretanto, é um fato notório que a banda saiu
do seu estado inicial sob o amadorismo infantojuvenil para um estágio
semiprofissional, sem escalas e a fazer escolhas equivocadas por falta de
orientação e ingenuidade, como por exemplo ao ter recrutado um baixista que mal
aprendera os rudimentos do instrumento para atuar, caso de Stuart Stu Sutcliffe,
e usar como critério algo impensável em termos adultos, como o fato do rapaz ser
“amigo” de Lennon, como se isso bastasse como uma credencial para atuar
profissionalmente em uma banda de Rock.
E já a beirar o início do seu sucesso mainstream, anos
depois, os seus membros não questionaram uma decisão que veio de cima para
baixo ao não proteger um dos seus, quando fora sugerido que o baterista, Pete
Best, fosse convidado a retirar-se da banda, sumariamente e pelo contrário, não
apenas acatou-se a decisão por conveniência, como ainda foi sugerido sem demora
um outro nome, por eles mesmos, no caso, a tratar-se de Ringo Starr. Portanto,
a união fraternal entre os membros nunca foi algo natural no ambiente interno dos
Beatles.
Com a
escalada meteórica de sucesso que essa banda atingiu, não posso afirmar que não
houve a presença de momentos bons compartilhados entre os quatro membros, com tantas viagens,
quartos de hotéis divididos, bastidores de shows & camarins,
compromissos sociais agendados (agradáveis ou não), e sobretudo, através das milhares
de horas gastas em estúdio a cria, arranjar e gravar as músicas que
fundamentaram a sua obra e leve-se em consideração que uma banda dessa magnitude,
para cada sucesso novo a estourar nas emissoras de rádio do mundo inteiro, sentiu
a pressão desmesurada da parte da gravadora e de seu empresário, para produzir
mais e mais sucessos, portanto, esses quatro homens, que eram bem jovens nos
anos sessenta, passaram muito tempo juntos e a viver todo tipo de situação.
Dessa
forma, não há como se negar que mesmo não sendo os melhores amigos uns dos
outros, um mínimo espírito de companheirismo foi construído, nem que tenha sido
por osmose, então, claro que eles não foram totalmente indiferentes nesse
quesito. Entretanto, além de não nunca ter havido uma empatia fraternal total,
houve a agravante do cansaço acumulado e que os estimulou a parar com as
turnês, em 1966.
Portanto,
esse foi o ponto crucial do começo do seu final enquanto banda, propriamente
dita, visto que, como muito bem costumava observar o genial baixista do The
Who, John Entwistle: -“banda que não toca ao vivo não é uma banda”.
A boa
desculpa em torno do cansaço, daria margem para um período de férias, mas a reforçar
a ideia de parar com as turnês, veio a reboque a questão sobre o equipamento
para mega shows realizados em estádios, que nessa época, mostrava-se insípido e
por conta desse sofrimento de se tocar ao vivo e sem se ouvir adequadamente e
na maior parte dos shows a se verificar que a massa sonora produzida pela banda no
palco, era acintosamente encoberta pelos berros incessantes de suas fãs sob
intenso estado de euforia, ou histeria, para ser mais preciso, gerou-se uma frustração
enorme entre os quatro componentes do grupo.
Neste caso, eles tiveram razão para
reclamar, visto que a tecnologia de áudio para grandes concertos na época,
ainda era muito rudimentar. O fato de não haver monitoração, ou seja, um
sistema de som para que os músicos ouvissem o que estavam a tocar e cantar,
seria por si só um bom motivo para gerar uma frustração, mas ao se apresentar em
estádios gigantescos, não havia também uma tecnologia pronta a atender a
demanda para um som potente e cristalino, dirigido ao público, mediante o uso do
chamado: “P.A.” (Public Adress System). Portanto, a gritaria do público,
notadamente das meninas a berrar, (literalmente), durante todo o show, em
contraposição a um equipamento fraco, onde o som do PA era geralmente uma
ridícula reprodução ultra reduzida da banda e muito mal mixada, através dos alto-falantes
de estádios, fazia com que a banda soasse como uma massa amorfa, proveniente de
um radinho e com as pilhas bem gastas, acrescento.
Portanto, a
decisão de parar de tocar teve uma justificativa plausível, em primeira
instância. Todavia, a tecnologia de áudio evoluiu muito rapidamente, e mesmo
porque, as demandas oferecidas pelo show business, estimularam as melhorias
sonoras na engenharia de áudio, pois não apenas os Beatles passaram a angariar
plateias gigantescas e a justificar shows em estádios esportivos ou em áreas
livres enormes, como os festivais e assim, se por um lado os Beatles tiveram
razão em frustrar-se e não desejar mais tocar sob más condições sonoras, outras
tantas bandas prosseguiram e logo, ainda nos anos sessenta, os monitores e o PA
passaram por modificações muito grandes, a aperfeiçoar as condições tanto para
os músicos, quanto para o público ouvinte/espectador.
Dessa forma, um período
sabático sem shows agendados teria sido bom para a banda recuperar o seu fôlego, no
entanto, a verdade é que os Beatles deveriam ter voltado a apresentar-se ao
vivo, exatamente como os seus pares contemporâneos jamais pararam e outras
tantas bandas que surgiram aos montes e que caíram na estrada, sem reservas, na mesma época.
Outro ponto
de discórdia ocorrera quando mal havia saído o seu celebrado LP, “Sgtº Pepper’s
Lonely Hearts Club Band, em 1967. Neste caso, a banda perdeu o seu empresário,
Brian Epstein. Considerado como uma peça fundamental a alavancar o sucesso da
banda, o seu súbito falecimento deixou a banda sem ação, mesmo que as relações
estivessem estremecidas, visto que Brian nunca gostou da ideia da banda parar
de tocar ao vivo e convenhamos, mesmo que a sua participação nos lucros gerados
não estivesse condicionada exclusivamente aos shows, tal ausência de agenda
representara uma queda brusca em seu rendimento.
Para agravar as notícias
ruins, a empresa que a banda fundara, “Apple”, teve a mais bela das intenções
como fundamento em termos de fomento à criatividade e assim honrar os ideais
inerentes da contracultura que veio subliminarmente no bojo da própria proposta
artística da banda, no entanto, como um negócio que precisava de sustentação
financeira, revelou-se um fracasso.
Ora, nenhum dos quatro membros quis cuidar
efetivamente dos negócios e sem Brian Epstein, que seria o administrador
natural da empresa, o fiasco da empreitada delineou-se, inclusive com a
observação de uma roubalheira desenfreada por parte de funcionários por eles
designados para tocar o negócio. Desse fracasso, veio a briga por questões
financeiras e a triste e também ridícula briga estabelecida uns contra os
outros, em termos de processos na justiça (no filme, uma cena mostra Paul e
George em um gabinete da Apple, a assinar pilhas de documentos e muito contrariados
com tal maçante ação burocrática). Uma queda de braço entre Paul e John por
conta de contratar-se um novo empresário ganhou ares épicos, inclusive.
E por fim,
as questões pessoais, visto que a amizade que nunca fora grande entre eles, com
esse clima, degradou-se ainda mais. Paul tornou-se autoritário ao tentar manter
a banda viva, mas segundo as suas convicções. George preferia dedicar-se aos
seus estudos de cultura indiana e cultivar outras amizades, como a estreitar
relação com o guitarrista, Eric Clapton e tornar-se amigo de seus amigos; John
encantara-se com a artista plástica japonesa, Yoko Ono e nesse meio termo, houve
uma separação traumática com a primeira esposa e sem muito cuidado para
preservar o aspecto emocional de seu filho, Julian. Quanto a Ringo, apesar dele
ser reconhecidamente uma das personalidades mais carismáticas na história do
Rock, ao ponto de ser amigo de incontáveis outros astros que rasgam elogios à
sua pessoa, foi público e notório que ele também teve um destempero, em 1968, e
internamente chegou a anunciar que deixaria a banda, chateado com os
companheiros em meio às gravações do excelente LP “White Album”. Persuadido a
ficar, ele cedeu, mas se até o ultra simpático, Ringo, aborreceu-se, foi um
sinal que o clima estava pesado.
Em termos
cinematográficos, ainda em 1967, Paul McCartney lançou a ideia de filmar-se o
telemovie, “Magical Mystery Tour”, com pouco ou nenhum entusiasmo da parte dos
outros três componentes e para piorar a situação, tal obra foi massacrada pela
crítica. Hoje em dia, enxerga-se méritos em tal peça completamente baseada em
lisergia e surrealismo e que aliás, já foi objeto de uma resenha minha. E o
próprio Paul, assim que soube das críticas negativas publicadas na imprensa e
não acostumado até então, em não ser elogiado, chegou a declarar que “o
próximo” seria melhor.
Portanto, ele pensara sim em colocar os Beatles na rota
de mais filmes, no decorrer da carreira da banda, todavia, o que veio a seguir,
foi uma animação, chamada: “Yellow Submarine”, que insistiu bastante na
lisergia, mesclada às tradições da literatura infantojuvenil e regida pela
fantasia onírica. Trata-se de uma boa animação, com ótima trilha, mas que
também recebeu críticas não muito entusiasmadas e a contar com uma participação
mínima da banda em termos físicos, em uma integração dos seus componentes ao
final da obra, a interagir com a animação. Portanto, “o próximo”, que Paul
anunciara em dezembro de 1967, só veio mesmo a concretizar-se bem depois, com
“Let it Be”, que foi filmado em janeiro de 1969, mas apenas lançado no circuito
das salas de cinema, em maio de 1970.
Sei que este
preâmbulo ficou enorme, talvez maior que a resenha em si, sobre o filme,
entretanto, foi crucial para que o leitor cultivasse o conhecimento mínimo sobre
como o clima interno da banda estava deteriorado, há tempos, quando Paul lançou
a ideia para se filmar: “Let It Be”. Isso por que o fato da banda estar em
crise interna, contrastou totalmente com o espírito proposto pelo filme, ou
seja: a ideia de se filmar os bastidores da banda a compor, arranjar, ensaiar
e gravar novas músicas, foi fascinante, sem sombra de dúvida.
Aliás, isso é uma
ideia incrível para qualquer banda que tenha um substrato artístico suficiente
para tal, no entanto e a rigor, tornou-se um contrassenso, na medida em que a
banda vivia em crise aguda e dessa forma, o perigo para revelar isso aos fãs e ao
mundo por consequência, inclusive a fornecer munição aos detratores, tornou-se
algo concreto. Lógico que Paul não enxergou isso à época na qual lançou a ideia,
e pelo contrário, foi um gesto de extrema boa vontade de sua parte, no intuito
de salvar a banda, como um alento para que as crises pessoais entre os
componentes e a institucional do grupo, fosse superada e a banda pudesse seguir
em frente.
Nesses
termos, há por considerar-se que a despeito de tudo o que eu observei sobre a
carreira dos Beatles, no período pós-agosto de 1966, quando realizara o seu último show
ao vivo, existiu a contrapartida como uma grande aliada sua, isto é, ao parar
com as turnês para dedicar-se exclusivamente a gravar discos, doravante, a
banda teve o seu apogeu criativo.
É bem verdade que ainda a tocar ao vivo, a
banda lançara os incríveis álbuns: “Rubber Soul” e “Revolver” (adoro os dois
discos), ambos a sinalizar mudanças sonoras muito significativas em seu espectro
artístico, no entanto, após o advento do LP “Sgtº Pepper’s, essa tendência
intensificara-se de uma forma ainda mais efusiva e assim, a compensação de não
tocar mais ao vivo, o que os fãs obtiveram, foi algo em torno de álbuns
recheados por canções épicas e a conter arranjos espetaculares; muita substância
poética e sobretudo, a observar um campo para a experimentação sonora, sem
limites.
Ao observar
esse fato, quero crer que a atmosfera pesada que observa-se em “Let it Be”, o
filme, é muito atenuada pela matéria sonora que os Beatles apresentam. Brigas e
climas tensos a parte, mesmo quando cenas constrangedoras são exibidas e sem
nenhuma cerimônia, o que se ouve, é o material novo que os Beatles estavam a
trabalhar, e estão ali algumas canções que fariam parte de um outro álbum
histórico dessa banda, “Abbey Road” e a maioria delas, que faria parte do LP
homônimo ao filme, “Let it Be”.
Portanto, creio que a grande massa formada pelos fãs à época,
reparou sim que o clima estava tenso, mas a presença da banda a ensaiar tais
canções, mostrou-se encantadora ao ponto de relevar-se qualquer indício de mau
agouro, que é algo evidente ao longo do filme. Para agravar tal perspectiva, é
preciso salientar também que o filme foi lançado em maio de 1970, ou seja, um
mês após o anúncio oficial sobre o encerramento das atividades da banda, junto
ao disco homônimo.
Dessa maneira, quando estreou nas salas de cinema, os fãs já
tinham plena consciência de que a banda perecera e aquelas imagens pertenciam a
um outro momento, com quase um ano e meio de defasagem e com mais uma
atenuante, ou seja, nesse ínterim, o LP “Abbey Road” fora lançado em 1969, com
um sucesso retumbante de crítica e público, isso sem contar de haver colocado no
mercado, uma arte final de capa que tornar-se-ia uma das mais icônicas da
história, imitada até os dias atuais, com os quatro rapazes de Liverpool a
atravessar em fila indiana e na faixa de pedestres, a própria, “Abbey Road” em questão.
Bem, Let it
Be, o filme, foi filmado em janeiro de 1969, em dois locais: no Twickenham
Film Studios, e no próprio edifício sede da Apple, em Saville Row, bem perto do
Piccadilly Circus. No famoso e velho estúdio, Twickenham, os Beatles já haviam
gravado cenas dos seus filmes anteriores, “A Hard Day’s Night” e “Help”, além
da filmagem do vídeo (“promo”, como dizia-se à época), para a canção, “Hey
Jude”. E além de algumas cenas internas na sede da sua empresa, a Apple,
por exemplo, quando aconteceu a famosa cena final do filme, com a banda a tocar no telhado de tal edifício,
o icônico: “Rooftop Concert”.
Na maior
parte do filme, o que vemos é a banda a ensaiar e infelizmente, tirante a
interessante observação das músicas em estado bruto e a serem arranjadas, o clima
é tenso e geralmente esbarra até na grosseria em alguns momentos, quando por exemplo,
vemos George a responder muito irritado para Paul, que não importava-se com o
que ele pensava e que estava ali apenas a tocar o que ele quisesse, ou seja a
explicitar que estava farto das tentativas de estabelecer uma liderança
despótica, da parte de Paul.
Outro momento tenso, mostra-se quando George tenta
mostrar uma canção nova (“I me mine”), e Paul parece desprezar a ideia, a
configurar que já fazia tempo que ele costumava impor as suas canções em
maioria e deixava um espaço mínimo e protocolar para George contribuir com o
seu material e na contrapartida, este já devia estar cansado de ser desprezado.
Não foi à toa que George, assim que os Beatles encerraram a carreira da banda, lançou um
álbum triplo, recheado por boas canções, a demonstrar que a má vontade alheia
ao considerar as suas composições, fora notória. A excelente canção, “All
Things Must Pass”, a tratar-se de uma balada belíssima, que inclusive batizou o
seu álbum solo triplo, teria sido uma peça oferecida e rejeitada pelos demais
companheiros, por exemplo.
Ringo
mostra-se bastante entediado durante o filme, também cansado de não ser
devidamente ouvido e apenas utilizado como um mero instrumentista não opinante e
ainda a ter que suportar palpites nos seus próprios arranjos pessoais
estabelecidos no seu instrumento em particular, uma predisposição inconveniente
da parte alheia e que frustra qualquer músico, eu sei disso.
John está presente
e não está, ao mesmo tempo. Ele mostra-se tenso igualmente em alguns momentos.
Há instantes sob discussões mais ríspidas por conta de arranjos, no entanto, é
visível que ele estava em outra órbita, a pensar em sua carreira solo que já
ensaiava conduzir, e sobretudo, mergulhado em sua relação afetiva; artística &
intelectual com a sua então nova quase esposa, Yoko Ono. Aliás, cabe ressaltar
que se já havia uma enorme maledicência da parte dos fãs e de muitos críticos
em relação à personalidade de Yoko Ono, esse filme tratou por realçar a
antipatia em um nível intolerável, ao ponto de de fomentar uma campanha
difamatória em relação a tal artista plástica japonesa. Ela foi culpada pela
dissolução da banda, como se houvesse sido uma agente infiltrada para causar a
sua ruína, deliberadamente. Cabe portanto observar que tal formação de opinião
é muito equivocada a meu ver e injusta, na medida em que eu creio que Yoko foi
usada como um bode expiatório, indevidamente.
De fato, Lennon encantara-se com
ela e não contente por encerrar o seu casamento anterior e deixar o filho
pequeno sem a devida atenção que um pai separado dedica ao filho (admita-se
isso como uma mácula sua, que seja), ele mergulhou na loucura experimentalista
com a gravação de três álbuns absolutamente anti-musicais, na acepção do termo,
em caráter solo, no entanto, sem nenhuma possibilidade para atribuir-se nesse
fato, em algo desagregador, na medida em que George também havia lançado dois
discos, um em caráter de trilha sonora para um filme psicodélico (Wonderwall),
e outro para testar as possibilidades de um teclado recém lançado no mercado, o
Mini Moog (que seria amplamente utilizado pelos grupos de Rock Progressivo, a
partir do final dos anos sessenta), ou seja, a configurar-se em uma atividade
extra, sem prejuízo à banda.
Todavia,
inconformados pelo final das atividades do grupo, os fãs em massa e auxiliados
por muitos críticos que execravam, Yoko Ono, pela sua arte avantgarde pouco ou
nada próxima do Pop, em união, criaram o paradigma de que ela teria sido a
responsável pelo final das atividades da banda e basta ler o preâmbulo desta
resenha para verificar que o clima interno do conjunto, deteriorava-se desde
1966, acentuadamente e por várias razões. Portanto, a despeito do filme mostrar
Yoko bem perto de Lennon durante os ensaios, como se estivesse a interferir de
uma forma destrutiva, tal perspectiva parece muito exagerada, para não dizer
fantasiosa. Muito bem, precisavam eleger um Judas para malhar e Yoko veio a
calhar para exercer tal função infame, na concepção da maioria que não
se conformou com o fim da banda.
Outra
presença ilustre é a de Billy Preston. O super tecladista norte-americano foi
convidado a participar dos ensaios e a tocar em algumas canções e claro que a
sua contribuição é magnífica, ainda que inteiramente discreto no filme, ele nem
transparece o grande artista que foi, inclusive com uma carreira solo soberba,
construída com inúmeros álbuns sensacionais, a destilar o melhor do R’n’B/Soul Music, Rock’n’ Roll e Pop. Preston não foi apenas genial como músico,
compositor e cantor, mas foi o único músico deste mundo que pode arvorar-se de
ter tocado com os Beatles e os Rolling Stones, na condição de um convidado
super especial. Sempre a apresentar-se com um alto astral, ele não fala nada no
filme, apenas toca divinamente como sempre o fez e sorri, outra marca
registrada sua.
Há também
uma explicação para o mau humor generalizado, visto que as filmagens da parte
dos ensaios, ocorreram na parte da manhã e músico não acorda cedo, mesmo que
não tenha trabalhado na madrugada anterior. Isso é um fato.
Bem, um dos roadies
dos Beatles, Mal Evans, aparece e até faz uma percussão alternativa, em meio
aos ensaios, ao bater com o martelo em uma bigorna em determinados acentos
rítmicos da canção: “Maxwell silver’s hammer”, o que é divertido e
fundamental, visto que esse efeito faz parte da música, pois assim foi gravado
no disco, “Abbey Road”. O outro roadie oficial da banda, Neil Aspinall é
creditado como um dos produtores do filme. George Martin, o produtor de estúdio
e Geoff Emerick, o técnico de som, também aparecem, mas com bastante discrição.
Não é apenas
mediante brigas e semblantes fechados que o filme apresenta-se. Existem alguns
momentos mais descontraídos, com risadas e brincadeiras entre os quatro
componentes e descontração musical quando toca-se algumas canções apenas para
relaxar-se um pouco, caso do bolero, “Besame Mucho”, uma canção romântica que o
quarteto costumava tocar em noitadas vividas em Liverpool e principalmente no
cais do porto da cidade de Hamburgo, na Alemanha, bem antes da fama chegar, nos
idos de 1960, 1961... e também quando Ringo Starr, mediante os seus parcos recursos
ao piano, mostra uma canção que estava a criar e George Harrison o ajuda com
algumas dicas para enriquecer a harmonia e a melodia de “Octopus’s garden”, e
ainda a contar com a presença de John Lennon a tocar rudimentarmente a bateria
para ajudar no processo criativo e dessa forma, a denotar uma ação
participativa rara entre os membros da banda, naqueles tempos marcados pela
desunião.
No entanto, o grande momento mesmo é quando sobem ao telhado do
edifício da Apple e improvisam um show. Com o equipamento todo armado, é bonito
ver os quatro a chegar ao telhado e tocar algumas canções, sob o frio londrino de janeiro
de 1969. Antológica cena, o chamado “Rooftop Concert”, entrou para a história
como um marco na carreira da banda, por vários motivos. O primeiro, por
caracterizar a improvável ação de uma banda a tocar ao vivo no telhado de um
prédio.
No entanto, é bom frisar que a despeito dos Beatles terem angariado esse
feito como algo inédito, na verdade, em dezembro de 1968, o grupo
norte-americano, Jefferson Airplane fizera o mesmo, ao gravar uma cena para um
filme do diretor francês, Jean-Luc Godard, no topo de um edifício em Nova York.
Entretanto, como o filme de Godard não foi lançado imediatamente (na verdade,
demorou anos para ser lançado), e pelo fato da fama dos Beatles ser
incomensuravelmente maior, o feito inédito foi creditado aos britânicos.
Heather Eastman, enteada de Paul e filha de Linda Eastman McCartney, e bem
pequena ainda, aparece no filme a brincar com todos e descontrai o ambiente com
a sua doçura infantil (a sua mãe, Linda, aparece bem de relance). Lennon e Yoko
a dançar em ritmo de valsa enquanto ouve-se a canção de Harrison, “I me mine”,
foi considerado como um ato de deboche do casal, por muitos críticos, mas
particularmente eu não enxergo dessa forma e creio já ter expresso o que penso
sobre a presença de Yoko Ono esse filme.
Ali no
telhado da Apple, os Beatles tocam: “Don’t let me down”, “I’ve got a feeling”,
One after 909”, “Dig a pony“ e “Get back”. É muito interessante o contraponto
da reação das pessoas comuns a caminhar pelas ruas e estranhar o som ao vivo. E
à medida que o tempo passa e os Beatles tocam, o volume de pessoas aumenta e o
caos é gerado no trânsito.
Opiniões colhidas em meio às pessoas comuns, soam
engraçadas e ao mesmo tempo, emblemáticas, bem naquela predisposição do
pensamento conservador ao se abominar o Rock e os jovens a identificar-se com a
perspectiva progressista ante o “novo” que vinha a reboque, portanto, uma síntese
boa do que foi a revolução contracultural a quebrar muitos paradigmas na
sociedade, em meio aos anos sessenta.
Uma senhora reclama a dizer que aquilo é
ultrajante e na contrapartida, jovens com o típico sotaque britânico, lançam
expressões como: “fabulous” e “marvelous” para expressar a sua excitação ante
o inusitado ocorrido. Muitos correram para buscar uma melhor visão, inclusive a
tentar tal posicionamento em edifícios vizinhos. Bem, sorte de quem esteve nas
imediações da Saville Row, no dia 30 de janeiro de 1969, pois viu, ou no mínimo
ouviu, em tese, o derradeiro show ao vivo dos Beatles.
A polícia
foi acionada e compareceu prontamente para cumprir a ocorrência, a atender o
pedido de cidadãos incomodados com o barulho. Isso fora previsto e Mal Evans, o
roadie dos Beatles, colocara uma câmera na porta para justamente registrar esse
momento da abordagem policial. Isso ficou registrado no filme e bem ao estilo
da abordagem de uma polícia educada como é a britânica, não houve truculência
ou prepotência da parte dos oficiais, mas apenas o pedido para se encerrar a
apresentação, que não detinha nenhuma autorização para ocorrer e convenhamos,
nessa época, isso não era uma prática comum e portanto regulamentada pelas
autoridades.
Fim de
filme, com John Lennon a tirar a sua guitarra da correia e ainda emitir uma das
suas famosas frases sarcásticas: -“agradeço a audiência e espero que tenhamos
passado no teste”. Naturalmente uma mera galhofa como muitas que costumava
proferir, no entanto, dada a constatação do que esse filme representou para a
carreira da banda, tornou-se involuntariamente emblemática, visto que o “teste”
pelo qual Lennon referiu-se, ganhou a notoriedade de algo muito mais grandioso
do que jamais ele imaginaria. Sim, a banda passou no teste como a maior da
história, passou ao tornar-se um emblema dos anos sessenta, passou por haver
tornado-se um ícone da contracultura e a representar muito mais signos dos
quais possamos arrolar.
Durante os
ensaios, ouve-se as canções: “Across the universe”, Dig a pony”, “Two of us”,
“Octopus's garden”, Let it be”, “Dig it”, “Oh darling”, “I’ve got a feeeling”,
“Don’t let me down”, “The long and winding road”, “Maxwell’s silver hammer”, “I me mine”, “Get
back”, “One after 909”, como material da banda a ser ensaiado (algumas delas em
estado bruto, ainda a serem compostas) e algumas brincadeiras, como: “Besame
mucho” (já citada anteriormente), “Shake rattle and roll”, “Kansas city”, “You really got a hold on Me” e “Hey hey hey hey”.
Climas
soturnos a parte, o filme ganhou dois prêmios importantes: Oscar de melhor
música original, “Let it Be” e o Grammy, por melhor trilha sonora em 1971. O
disco Let It Be, foi lançado em maio de 1970, logo após o lançamento do filme e
contém muitas dessas canções que eles estavam a compor em 1969, e exibidas no
filme, além de mais alguns enxertos (a canção folk, “Maggie mae”, como uma
vinheta com poucos segundos), e uma música a mais de Harrison, “For you blue”.
Phil Spector foi o produtor do disco e imprimiu a contragosto da banda,
arranjos adicionais com orquestração em três canções: “Let it be”, “Across the universe” e “The long and winding road”. Não são feias tais intervenções, longe
disso e todo mundo acostumou-se com tal camada adicional a sonorizar tais
canções, no entanto, em 2003, uma versão do álbum sem a orquestração, foi
lançada e batizada como: “Let It Be Naked”, a conter apenas a banda a tocar e
Billy Preston aos teclados, como convidado. É esplêndido ouvir as versões mais
simples, somente com a banda a tocar,
sem arranjos orquestrais mais ortodoxos como Phil Spector gostava tanto de providenciar para as suas produções.
Dirigido por
Michael Lindsay-Hogg (que houvera dirigido promos anteriormente para a banda,
como das canções: “Paperback writer”, “Rain”, “Hey Jude” e “Revolution”), ele também
já houvera trabalhado com os Rolling Stones, ao dirigir os promos das músicas:
“She’s a Rainbow”, “Jumping Jack Flash” e “2000 Light Years From Home”, e
também do especial de TV, “Rock’n’ Roll Circus com os próprios Rolling Stones
como protagonistas e a conter outras atrações da pesada, como o “The Who”, “Jethro
Tull” e uma participação sensacional de John Lennon e Yoko Ono a tocar com Eric
Clapton e também com o baterista de Jimi Hendrix Experience, Mitch Mitchell e
Keith Richards dos Rolling Stones, entre outras atrações, em 1968.
Filho da
atriz, Geraldine Fitzgerald e do grande astro, o ator e diretor, Orson Welles,
Michael posteriormente filmou algumas dramaturgias sem muito destaque e voltou
a focar na música, ao lançar documentários com shows de Paul Simon e Pete
Townshend, além de ter assinado uma infinidade de clips para os Rolling Stones,
nas décadas de setenta e oitenta, assim como igualmente para o Wings de Paul
McCartney e até para Whitney Houston, em 1985.
Let it Be
foi um estrondoso sucesso nos cinemas, naturalmente, ao levar-se em conta a
fama dos Beatles e em face da comoção gerada pelo anúncio a dar conta do final
das atividades da banda, poucos dias antes. Passou na TV em inúmeras reprises, foi
lançado em VHS nos anos oitenta e posteriormente em DVD/Blue-Ray.
Há uma
perspectiva de ser relançado sob uma nova tecnologia em 2020, como parte de um
documentário que vai se propor a usar muitas horas não aproveitadas do filme
original, que seriam restauradas e inseridas nesse novo trabalho a denominar-se: “They Shall, Not Grow Old”, sob direção de Peter Jackson, o responsável pelo
sucesso “The Lord of The Rings”. Segundo Jackson, o material restaurado a
conter cenas inéditas e muitas horas com áudios disponíveis desses ensaios, vai
possibilitar uma produção caprichada, e amparada pela moderna tecnologia que o cinema
do século XXI, possui. Aguardemos*.
Por
enquanto, por conta dos problemas autorais inevitáveis, é difícil achar “Let it
Be” para assistir na Internet, em versão integral e gratuita. Contudo, a minha dica ao leitor é que procure assistir, caso não tenha visto, pois apesar dos climas soturnos e do mau humor movido a mágoas pessoais da parte dos componentes dos Beatles, uns em relação aos outros, é claro que vale a pena ser assistido.
*Sim, o documentário que veio a se chamar na verdade, "Get Back" baseado em Let it Be, com horas e horas de material recuperado e não utilizado na versão original foi lançado posteriormente ao preparo desta resenha, com uma qualidade visual e sonora inacreditável e mais do que isso, mudou completamente a visão de quem se acostumara com a versão a conter uma impressão lúgubre em 1970. Cabe uma resenha em separado, que será escrita oportunamente.
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll" em seu volume III e está disponível para a leitura a partir da página 171.