Pode haver
poesia em torno da questão da fome ? Por mais
absurdo que isso possa parecer, a resposta é sim, e Carolina de Jesus, provou
isso. Nos últimos
anos, a estética forjada em torno das favelas & mazelas dominou a produção cinematografia
brasileira, e de certa forma respingou também sobre o mundo televisivo. Isso sem
contar a questão da música popularesca que arrebatou a difusão midiática, com
respingos em outras áreas, sob a égide do Hip Hop.
Porém, o foco
cultural sob a ótica das camadas mais carentes da população, não começou nos
anos 2000, como algumas pessoas possam imaginar. De volta ao
tempo, a literatura já havia dado recados contundentes sobre tal realidade
social brasileira, desde o século XIX. Nesses termos, “O Cortiço”, de Aluísio
de Azevedo, é só um exemplo.
No campo do
cinema, um filme como, “Cinco Vezes Favela”, já havia abordado a questão, muitas
décadas antes de “Cidade de Deus” e “Pixote, a Lei do Mais Fraco”, tornarem-se populares,
pela ação dos formadores de opinião. Todavia, um
caso extraordinário ocorreu ao final dos anos cinquenta; início dos sessenta, e
que causou muita estupefação na opinião pública nacional. Tratou-se da
revelação de que uma mulher negra; semianalfabeta, favelada; e naquela
atualidade, a prover o seu sustento familiar mediante a ação em catar objetos no lixo, pudesse ser uma escritora com enorme qualidade
e fibra.
Essa mulher foi Carolina
de Jesus...
Uma pessoa dotada de uma origem muito simples, Carolina nasceu em Sacramento / MG, no ano de 1914. Na segunda metade dos anos trinta, migrou para a capital de São Paulo, em busca de melhores condições de sobrevivência. Ao chegar em São Paulo, ela não teve outra escolha, a não ser sobreviver como catadora de lixo.
Uma pessoa dotada de uma origem muito simples, Carolina nasceu em Sacramento / MG, no ano de 1914. Na segunda metade dos anos trinta, migrou para a capital de São Paulo, em busca de melhores condições de sobrevivência. Ao chegar em São Paulo, ela não teve outra escolha, a não ser sobreviver como catadora de lixo.
Com
personalidade forte, e uma certa agressividade adquirida pelos traumas advindos da
infância, por conta dessa dificuldade sempre teve iniciativa própria, ao recusar esperar a benevolência
alheia e assim, com as próprias mãos, construiu o seu barraco em uma favela paulistana. Por viver em
meio à um ambiente extremamente hostil, colocou em mente que não valeria a pena casar-se, pois cansara de ver as suas vizinhas maltratadas por maridos ebrios e
invariavelmente cafajestes; machistas e agressivos. Ela teve três
filhos, cada um com um pai diferente, e apesar da época em questão, e
notadamente com padrões morais bem mais intransigentes em relação aos tempos
atuais, isso aparentemente nunca a incomodou.
E não foi
para menos... o que pode incomodar mais a vida de uma mãe de família humilde, do
que a miséria absoluta em que vivia, e que a impelia a lutar como uma leoa,
diariamente, para trazer para casa alguma migalha que fosse, para alimentar
os seus filhos ? Apesar de
ter estudado apenas os dois anos iniciais do antigo curso primário, e portanto
saber tão somente os rudimentos da língua portuguesa, Carolina de Jesus gostava de ler e
escrever.
Simultaneamente
às bugigangas que catava no lixo para poder sobreviver, ela também acostumou-se
a resgatar fragmentos de jornais; revistas e livros, não só como única
oportunidade para poder ler algo nas horas de folga, como para reutilizar o papel para
poder escrever. Por anos,
escreveu um diário, com muitos erros gramaticais e ortográficos, mas mal sabia
ela, com uma fluidez e lucidez, extraordinárias.
Seu diário
mostrava de uma maneira hiper realista, o cotidiano duríssimo de sua vida; de
seus filhos, e de sua vizinhança tão sofrida quanto. Porém, eis que em um dia
qualquer de 1958, um golpe fortuito mudou a sua vida, completamente.
Um
jornalista famoso fora designado para cobrir uma matéria sobre cotidiano, cuja
pauta era a inauguração de um parque infantil público, localizado no bairro do
Canindé, às margens do Rio Tietê. Chamou-lhe a
atenção o fato de que uma mulher simples estava aos berros a expulsar
adolescentes mal intencionados, que já mostravam-se dispostos a vandalizar e
impor terror à criançada que queria usar os brinquedos disponibilizados pelo poder público. O jornalista
em questão foi Audálio Dantas, e uma frase que a mulher proferiu, o instigou :
-“saiam, ou eu vou colocar vocês no meu livro”...
Quando Audálio Abordou-a,
quis saber exatamente o quis dizer com “livro”. Daí, ele acompanhou-a à sua casa, e ficou estarrecido
diante daqueles maços de papéis manuscritos...
Encantado
com o teor do texto, Audálio imediatamente tornou-se o editor daquele diário
impressionante, que foi lançado em agosto de 1960, como livro, ao receber o nome
de : “Quarto de Despejo”.
Ao antecipar
em anos a história de vida de muitos jovens que saem das favelas para a fama,
via arte ou futebol, Carolina de Jesus tornou-se uma celebridade, ao culminar em aparecer em
reportagens publicadas em jornais & revistas e também a receber convites para entrevistas em programas de Rádio &
TV. A sua
desconcertante sinceridade e coragem, encantou o público, mas também trouxe-lhe
problemas. Segundo dados oficiais, a tiragem
inicial de “Quarto de Despejo”, vendeu dez mil exemplares em uma semana (há
controvérsia sobre essa informação, e há os que afirmam que teria vendido a quantidade de trinta
mil unidades, em três dias).
Mesmo ao considerar
o menor número, devemos deduzir que tal feito foi extraordinário para um
país pouco afeito à produção literária, ainda mais para os padrões de 1960 ! Ela ganhou
dinheiro como nunca sonhara na vida, e também angariou a malévola atenção da parte de inimigos invejosos.
Em
entrevistas, Carolina queixava-se de que muitas pessoas chamavam-na como : “pernóstica”,
além de sofrer assédio com pedidos de empréstimos financeiros pessoais, e até
pedidos de casamento. Não era a sua
função, claro, mas Audálio compadeceu-se da situação de Carolina, e além de
editor da obra, eis que tornou-se uma espécie de “agente” pessoal dela, ao tentar
protegê-la de tal fama repentina, mas a própria, Carolina não entendeu tal
propósito e assim, ambos chegaram a romper relações algum tempo depois.
Ao ir muito
além, uma versão em inglês do seu livro foi lançada, e na América, o livro entrou para a
lista dos Best Sellers.
Audálio
optou por manter a grafia original da autora, e ao conter os erros gramaticais e
ortográficos, outorgou-lhe uma aura de autenticidade em torno da obra, que só fez aumentar a
força da sua narrativa. Estava ali a
realidade nua e crua de uma mulher sofrida, que levantava cedo todo dia,
disposta a sacrificar-se em trabalhar, sem nenhum constrangimento pela atividade
insalubre, mas obcecada em alimentar a sua família.
O livro
impressiona por esse e muitos outros aspectos. O ambiente tenso da favela; a
violência doméstica na vizinhança (onde Carolina convenceu-se que manter um marido
“oficial”, não valia a pena); o choque do preconceito sócio-racial, uma
realidade que era comum à todas as pessoas que viviam naquela condição. A sua amargura
diante de uma vida rude, reflete-se na obra, de uma forma fortíssima.
Eis dois
exemplos pinçados, entre tantos :
-“Hoje não
temos nada para comer. Convidei meus filhos para suicidar-se, mas fiquei com
dó... estão cheios de vida, e quem vive, precisa comer”...
-“Não há
coisa pior na vida do que a própria vida”.
Sobre o
título de seu livro, “Quarto de Despejo”, a sua explicação sobre tal escolha, foi
que considerava a existência da favela, como um quarto de despejo da cidade, ou
seja, como a sociedade mais abastada fazia para livrar-se do que lhe era
indesejado.
Quando o seu
primeiro livro estourou, e ela tornou-se uma celebridade, claro que ganhou
dinheiro e deixou a favela, para melhorar a sua condição pessoal. Todavia, não sem
antes sofrer muito, pois teve que suportar a incompreensão de sua vizinhança na
favela. Muitos vizinhos xingavam-na; a sua casa passou a ser apedrejada, e seus filhos perseguidos. Queriam
que ela repartisse o dinheiro advindo dos royalties do livro, sob a alegação
que ela ganhara dinheiro à custa em revelar a vida deles mesmos. A cada
entrevista que saía publicada em jornal e revista, repercutia no sentido em que os seus vizinhos enfureciam-se ainda
mais, para aumentar as hostilidades.
Posteriormente
em entrevistas, ela revelou com muita sinceridade, que estava desapontada com a
ascensão social, pois verificara que aspectos humanos negativos, tais como a
inveja e a maledicência, repetiam-se na classe média, ou até mesmo amplificavam-se, em relação aos conflitos que ela teve no ambiente carente de uma
favela. Carolina citava
sempre um caso particular que ocorrera-lhe, quando em certa ocasião conseguira
adquirir um porco para reforçar a refeição da família, e para abatê-lo (e
logicamente a provocar um grande barulho por parte do pobre animal, na
iminência de seu martírio), atraiu a atenção da vizinhança faminta que a
pressionou a dividir a carne, em um ato de solidariedade forjada sob coação. A sua
comparação com a vida na classe média, seria portanto que sob tal nova condição, as pessoas rondavam-na como
urubus, a pedir-lhe dinheiro e propor negócios descabidos. Carolina
ainda lançaria outros livros, posteriormente : “Casa de Alvenaria”; “Pedaços de
Fome”, e “Provérbios”.
Outro,
póstumo, ainda seria lançado : “Diário de Bitita”. Existe
textos ainda não lançados, que a qualquer momento poderão vir à tona. Estima-se
que ela deixou cerca de cinquenta cadernos manuscritos, com sete romances; sessenta
crônicas; cem poemas; quatro peças de teatro e doze letras, supostamente
compostas para musicar marchas carnavalescas. Um documentário produzido pela alemã, Christa Gottmann, retratou a ambientação da favela, com a participação de Carolina em pessoa.
A extraordinária atriz, Ruth de Souza, interpretou-a no teatro, através de uma produção baseada no livro, "Quarto de Despejo", em 1961, com diversas remontagens a posteriori. E também participou de uma dramaturgia para a TV, em um "Caso Especial", da TV Globo, em 1983. Dois curta-metragens foram produzidos mais tarde : "Carolina", de Jessica Queiroz, e "Vidas de Carolina", de Jefferson De.
Carolina
Maria de Jesus faleceu em 13 de fevereiro de 1977, na cidade de São Paulo. O seu legado
para a literatura nacional é imenso; a sua coragem e sinceridade, admiráveis e
sobretudo, o seu talento para retratar a realidade duríssima de uma sociedade que
mostra-se implacável e insensível, foi notável. Deixo abaixo, uma
última frase dela, e que espelha bem o espírito que norteou a sua obra :
-“Escrevo a
miséria e a vida infausta dos favelados”...