sábado, 27 de agosto de 2016

Programa Ensaio (MPB Especial) / TV Cultura - Por Luiz Domingues



Recentemente (abril de 2016), o produtor de TV, Fernando Faro faleceu e tal fato lamentável causou comoção no meio. Figura muito importante, foi o criador de uma série de programas em diversas emissoras da TV brasileira, desde os anos sessenta, e ele não foi talentoso apenas como produtor, mas também como um grande redator, graças a um talento ímpar para escrever.
Falo agora sobre uma de suas criações, e que a extrapolar as  fronteiras de uma simples atração televisiva, é considerada um marco e para muitos, tem o peso de uma verdadeira enciclopédia para a Música Popular Brasileira.
Refiro-me ao programa: “Ensaio”, que desde 1969, retratou a arte de centenas de compositores, cantores e instrumentistas da MPB, de todas as suas vertentes imagináveis. Digo isso, pelo volume impressionante de artistas que passaram por tal atração televisiva, mas sobretudo pela qualidade desse elenco.
Fernando Faro o concebeu para ser um misto de entrevista e apresentação do artista enfocado, mas com características muito peculiares. Para início de conversa, a utilizar um tipo de enquadramento de câmeras muito intimista, ao usar bastante close-up. Com isso, a sua intenção foi retratar o artista de uma forma muito íntima, a buscar o máximo de sua expressividade natural, suas nuances faciais e até o suor a lhe escorrer pelas têmporas durante a sua performance musical. Se fosse o caso de um instrumentista, além disso, os movimentos das mãos a tocar, também como elemento “verdade” nessa equação, eram muito valorizados.
O uso de pouca luz, a estourar propositadamente os elementos do contraste e a explorar sombreamentos, também fazia do programa, algo muito particular a explorar a imagem do artista nua e crua, sem artificialismos. Sobre as entrevistas, a ideia foi manter a mesma postura de enquadramento, ao fazer com que o foco nunca saísse do artista, mesmo quando este ficava em silêncio, a ouvir a pergunta do seu interlocutor.
Para realçar tal efeito, o entrevistador (geralmente o próprio Fernando Faro), ficava inteiramente fora de foco, e a sua voz não era ouvida com clareza pelo público, pois o seu microfone era diminuído na edição de áudio do programa, de forma proposital, e com isso, a impressão que se passava ao telespectador era que o artista falava de sua carreira; obra e assuntos paralelos, de uma forma muito espontânea, como se estivesse a falar sozinho, pensaro alto, enfim...


Tal característica deu ao programa um caráter quase didático, daí a importância que ganhou ao longo dos anos, ao ponto de se tornar uma referência para estudiosos de diversas áreas, ao buscar em suas edições, informações sobre os artistas retratados, com a força de um documento muito rico. Sobre o programa em si, ele foi criado em 1969, e colocado no ar inicialmente na TV Tupi de São Paulo, onde Fernando Faro estava na ocasião, e lá ficou até 1971.
Todavia, em 1972, Fernando transferiu-se para a TV Cultura e levou o seu programa para ser exibido ali, porém. ele enfrentou um problema. Como a TV Tupi havia registrado o nome “Ensaio”, ele foi obrigado a rebatizá-lo, com o título de “MPB Especial”. E assim foi sendo exibido e arregimentando muitos fãs, apesar da audiência modesta da TV Cultura em relação à concorrência das emissoras comerciais e detentoras de orçamentos muitíssimo maiores. Nessa fase na TV Cultura, o MPB Especial durou até 1975. Somente quando a TV Tupi decretou a sua falência, e saiu do ar, em 1980, Fernando pode recuperar o nome “Ensaio”, novamente mas apenas a partir de 1990, o colocou no ar novamente com seu nome original, na TV Cultura, para usá-lo doravante, por muitos anos.
Ali, desfilaram nomes de diversas vertentes da MPB. Muitos desses artistas já partiram para o “lado de lá”, inclusive. Em alguns casos, artistas que não alcançaram popularidade muito grande, tiveram em suas participações  no “Ensaio”, a oportunidade única de ter um material a registrar um pouco de sua obra em vídeo.
Veja acima a edição do programa Ensaio, com Elis Regina, em 1973

Muitas edições se tornaram icônicas, caso da participação de Elis Regina em 1973, por exemplo. Mas a lista é gigantesca e entre o Ensaio e o MPB Especial, que é a mesma atração com outro nome, muitas edições se tornaram históricas.
Muitas delas estão disponíveis no You Tube, e enumerá-las todas produziria um arrolamento enorme. Só para citar alguns: Adoniram Barbosa; Demônios da Garôa; Geraldo Filme; Paulinho da Viola; Clementina de Jesus; Cartola; Gonzaguinha; Raimundo Fagner; Caetano Veloso; Gilberto Gil etc.
Entre tantas criações geniais do Fernando Faro, e a maioria delas ligadas à música, creio que o “Ensaio” foi sem dúvida uma das principais.
O seu legado tem peso enciclopédico para a MPB. A intenção do título, “Ensaio”, foi retratar o artista de forma despojada, quase como se fosse um ensaio do artista enfocado, propriamente dito. Porém, eu ouso dizer que ganhou uma conotação extra, no outro sentido da própria palavra, ou seja, trata-se de um verdadeiro “ensaio”, no sentido que lhe é atribuído no dicionário como: “atribuição crítica sobre as propriedades, a qualidade ou a maneira de usar algo; teste, experimento.  Ensaio é um texto literário breve, situado entre o poético e o didático, expondo ideias, críticas e reflexões éticas e filosóficas a respeito de certo tema. É menos formal e mais flexível que o tratado”...


Pois é, Faro legou-nos um “ensaio” sobre a MPB, para não dizer que foi um “tratado”...
Matéria publicada inicialmente no Site/Blog Orra Meu, em 2016.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Filme: A Hard Day's Night (Os Reis do Iê-Iê-Iê) - Por Luiz Domingues



Em 1963, os Beatles estavam a todo vapor, a usufruir de sua fama que mal dera os seus primeiros passos, entretanto tal banda já demonstrava que alcançaria uma projeção muito além do comum. Por volta de outubro desse ano, uma proposta, em meio a tantas outras esfuziantes, chegou à mesa de seu empresário, o astuto, Brian Epstein, e veio a calhar para estimular ainda mais o sucesso da banda. Tal ideia partira da parte do famoso estúdio de cinema, United Artists, dos Estados Unidos, que propôs a produção de um filme com os rapazes.
                     O empresário dos Beatles, Brian Epstein

Isso aconteceu quatro meses antes da 1ª excursão que Epstein estava a programar para os rapazes na América do Norte, que já estava devidamente alinhavada com a aparição que estava a ser agendada no programa de variedades de Ed Sullivan, um comunicador de TV norte-americano e mega popular, por sinal, cuja audiência era mastodôntica, desde os anos cinquenta, por ser assistido por milhões de famílias naquele país, todos os domingos. 

Sendo assim, se o Reino Unido já vivia fortemente a histeria provocada pela Beatlemania e isso estava a espalhar-se muito rapidamente pelo restante da Europa, com tais ações a serem marcadas na América do Norte, faltava um triz para a banda estourar mundialmente, e de fato, foi o que ocorreu a seguir.
Claro que Epstein aceitou a proposta e rapidamente a produção pôs-se a ser amadurecida a toque de caixa. Há por considerar-se no entanto, que a banda vivia a loucura das turnês exaustivas, ao aproveitar ao máximo o sucesso retumbante em clima de avalanche e o tempo e por consequência, ao mostrar-se como uma típica estratégia das gravadoras na época, para lançar "singles", sistematicamente entre os LP's  oficiais, a visar alimentar o mercado sempre com novidades, além de manter a banda na briga pelos "chart's" (paradas de sucessos), em torno das músicas mais executadas nas emissoras de rádio e a contar com os seus discos na posição entre os mais vendidos nas lojas. No entanto, bem jovens que os seus componentes eram na ocasião, o fato de acumular filmagens em meio a esse frenesi, não foi nada de mais e assim, a nova missão foi aceita por todos. 
A respeito da produção do filme, a United Artists sabia que lidava com artistas britânicos e a dinâmica tinha que ser outra, diferente do espírito "yankee". Foram sábios portanto, ao reunir produtores associados e escolher um diretor acostumado a lidar com a fleuma britânica. Para início de conversa, havia um representante da United Artists para o Reino Unido, chamado: George Orstein, que rapidamente incumbiu o produtor, Walter Shenson, a liderar o trabalho. Shenson era bastante experiente em estabelecer essa ponte entre britânicos e norte-americanos, por ter vendido anteriormente, produções audiovisuais do Reino Unido à América do Norte.
O diretor norte-americano, mas muito atuante na Inglaterra nas décadas de 1950 e 1960, Richard Lester

Foi Shenson inclusive que abordou e negociou com o empresário dos Beatles, Epstein, e inteligentemente deu espaço para que este profissionalmente e os próprios componentes da banda pudessem opinar sobre a produção e até sugerir nomes para compor a equipe de trabalho. Foi aí que se chegou ao nome de Richard Lester, um diretor norte-americano, mas que já estava radicado na Inglaterra desde a metade dos anos cinquenta e havia feito vários trabalhos na terra da Rainha. Por que Lester ? 


Os quatro membros dos Beatles adoravam uma série de TV, cujo diretor era Lester e que se chamava: “The Goon Show”, que foi uma comédia tipicamente britânica, com humor sarcástico e que tinha entre os seus protagonistas, o genial, ator/comediante, Peter Sellers. Tal programa fora na verdade uma adaptação do que tais comediantes já faziam no rádio, portanto, era mega popular na Inglaterra, há muitos anos.

O elenco de comediantes do programa, "The Goon Show", que migrou da Rádio (BBC), para a TV. O ator, Peter Sellers é o rapaz que está na parte de cima da foto
 
John Lennon, principalmente, adorava os “Goonies” e muito do seu temperamento ácido, com humor sarcástico, tinha muito a ver com o tipo de humor que ali praticava-se, aliás, uma espécie de humor bem britânico. Para muitos críticos, os “Goonies” são pais honorários do grupo "Monty Phyton", a genial trupe de humor britânica e que explodiria por sua vez, ao final dos anos sessenta.
Enfim, Lennon e os seus companheiros apreciaram a ideia em contar com Richard Lester para a direção e assim, ele foi contratado. Outra figura chave nessa produção, foi Alun Owen, que se tornou o roteirista do filme. Epstein (com o aval dos rapazes, também) o sugeriu por conta da sua fama em conhecer bem o espírito britânico e especificamente a alma de Liverpool, a cidade natal deles. 

Filmes com astros do Rock ou com motivações Rockers, não foi nenhuma novidade em 1963/1964 (na própria Inglaterra, já haviam sido lançados vários filmes com o cantor, Cliff Richard, acompanhado da ótima banda, "The Shadows" e produções avulsas tais como "Some People" e "Live it Up", por exemplo e aliás, filmes estes que constam neste livro, devidamente resenhados), mas houve no entanto, a preocupação em não copiar o modelo, principalmente dos filmes de Elvis Presley, visto tratar-se de motivações completamente diferentes e um fato mostrou-se cabal: Elvis havia adquirido com a prática, traquejo como ator e os quatro componentes dos Beatles, nem cogitavam tentar aventurar-se nesse campo. 

Portanto, surgiu a ideia de se produzir um filme que fosse camuflado como documentário, ao misturar ficção, com atores de apoio e ao mesmo tempo a retratar a rotina dos artistas, em meio aos seus compromissos habituais com gravações; shows ao vivo e intervenções de divulgação, notadamente em programas de TV.
Outra questão importante, foi explorar ao máximo a histeria coletiva que forjara-se ao redor dos rapazes, não só a retratar a Beatlemania pelo seu aspecto positivo, em termos de sucesso artístico galopante da parte dos Beatles, mas também o lado ruim disso, com o aspecto humano a ser sacrificado, visto que nenhum dos rapazes podia mais andar pelas ruas, livremente, nessa altura dos acontecimentos sem que houvesse uma convulsão frenética por conta de fãs ensandecidas, portanto a caracterizar-se como uma espécie de preço caro que a fama cobrou-lhes. As filmagens ocorreram entre março e abril de 1964, ou seja, logo após a banda voltar consagrada da América do Norte e a aumentar a sua fama ainda mais, sob uma proporção inimaginável para os padrões da época. 

Foram seis semanas de filmagens e intercaladas com os shows que não paravam, inclusive com escala em Paris. Usou-se os estúdios Twickenwam de Londres (onde inúmeros filmes famosos do cinema britânico foram feitos), além de locações de rua, que imagino, devem ter sido dificílimas de executar-se pela questão da fama dos Beatles e não por acaso, eu já li declarações de Richard Lester a afirmar que adorava aquela balburdia para trabalhar com cenas em externas. 
Sobre o filme em si, o roteiro é bem simples. Mostra os Beatles a sair de Liverpool para Londres, e para tal missão a usar o trem, e na capital inglesa, o objetivo seria a participação da banda para tocar ao vivo em um programa de TV. Ou seja, nada muito diferente da rotina dos rapazes, quando enfrentavam o cotidiano massacrante de um artista em franca ascensão na carreira e sob parâmetros de um conforto logístico bem improvisado, visto que a produção musical para mega eventos era insípida naquela época. 

O toque de dubiedade a justificar o filme como metade ficção e não apenas um documentário realista, ficou baseado nas “gags” de humor perpetradas pelas situações criadas ao longo desse dia longo, que culminaria na noite dura de um dia difícil (A Hard Day’s Night)...
Portanto, a ideia dos rapazes de correr para fugir de multidões de fãs enlouquecidos, não revelou-se nada diferente da vida normal que estavam a ter e as inúmeras situações bizarras que enfrentavam para driblar a perseguição, foram hilárias é bem verdade, mas também tratou-se de artifícios que usavam para tal finalidade na vida real. Dessa forma, sair e entrar em carros, freneticamente, para despistar as meninas tresloucadas ou usar disfarces bizarros, fez parte da rotina na vida real deles, naquele instante, mas simultaneamente, tornou-se um conjunto com ótimas ideias para usar-se no filme, no melhor sentido do humor "pastelão". Há quem diga que lembra o estilo de humor dos primórdios do cinema mudo e há um certo sentido nessa informação.

John Lennon, Paul McCartney e o ator, Victor Spinetti, em cena do filme, A Hard Day's Night. Esse ator foi recorrente em outros filmes com os Beatles.

Logo que os quatro componentes  dos Beatles chegam ao trem, são muitas as cenas ambientadas nas cabines, carro restaurante etc. Ali, com menos ação e mais diálogos, o efeito “Goonies” fez-se presente, com várias piadas sarcásticas, para mostrar os rapazes como jovens irreverentes, mas com uma certa altivez, um deboche a la Oscar Wilde, digamos assim. Ele estão acompanhados de dois assessores, a saber: um “roadie”(para quem não sabe, “roadie” é a designação para funcionários que trabalham para artistas musicais e que cuidam de seus instrumentos e equipamentos, prioritariamente, mas culminam em fazer serviços gerais, muitas vezes), interpretado por Norman Rossington; e um produtor de TV, interpretado por Victor Spinneti. O ator, Kenneth Haigh, fez o produtor do programa onde os Beatles apresentam-se ao final da película.
Paul McCartney e o ator, Wilfred Bambell, que interpretou o seu avô trapaceiro, em tal filme

Todavia, o personagem mais hilário nesse elenco de apoio, foi o do ator, Wilfred Bambell, ao interpretar o suposto avô de Paul McCartney, que viajou junto à banda e tratou por criar confusões múltiplas ao longo da jornada, ao reforçar em muito o sentido de humor no filme.
Em meio à viagem de trem, eles tocam, como a simular um ensaio e assim otimizar o tempo perdido sobre os trilhos. Ali nessas cenas, para justificar o mote primordial do filme, os Beatles apresentam a canção: “I Shoud Have no Better”.
Nos vagões desse trem, algumas fãs estão presentes, e entre elas, Patricia Boyd, conhecida pelo apelido, "Patty", que dois anos depois, casar-se-ia com George Harrison na vida real. Em sua homenagem, Harrison comporia anos depois, uma das mais lindas canções dos Beatles, “Something”.
 
Outra curiosidade nas cenas do filme, um jovem adolescente ali a atuar como um figurante desconhecido, tornar-se-ia alguns anos depois, em um dos bateristas mais sensacionais do Rock britânico, um certo, Phil Collins, baterista do Genesis, uma das maiores bandas de Rock Progressivo dos anos setenta e que também ficaria famoso nos anos oitenta, por lançar-se como cantor Pop, em carreira solo mediante a obtenção de muito sucesso.

Em meio a confusões geradas em quartos de hotéis e com o avô de Paul McCartney a criar problemas em rodadas de carteados, eis que os Beatles tocam : “Don’t Bother Me”, significativa canção ali executada, ao dizer-se, “não aborreça-me”, quando milhões de pessoas corriam atrás deles para arrancar-lhes as vestes... e também, “All my Loving”. Daí em diante eles participam de um cocktail típico em tom de “press conference”, uma das obrigações mais massacrantes que músicos tem que enfrentar quando ficam famosos, ou seja, as famosas: “coletivas de imprensa”.


Nesse aspecto, Richard Lester foi esperto ao dar vazão aos sarcasmos nos diálogos propostos pelo roteirista, Alun Owen, e sob um ritmo ágil e inovador para a época, eis que se editou os quatro Beatles a responder perguntas maçantes dos jornalistas, de uma forma desconcertante, em tom de deboche. São famosas as frases que depois do filme, tornaram-se jargões entre os Beatlemaníacos. Por exemplo, quando perguntam à George Harrison sobre como qualificaria o seu corte de cabelo (e o comprimento dos cabelos era algo que chocava a sociedade da época, acostumada com o padrão militarizado dos cortes curtos para homens, desde meados do século XIX), e este responde-lhe cinicamente: “Arthur”. 

Outra boa colocação, foi quando perguntam para John Lennon como ele viu os Estados Unidos e ele respondeu com mais cinismo: "virei à direita depois de passar a "Groelândia"...
E talvez a mais famosa, embora quem não seja britânico e não conheça a cultura Rocker, não a entenda plenamente. Uma repórter pergunta para Ringo Starr se ele se considerava um "Mod" ou um "Rocker" e ele responde de forma bizarra: -“Sou um Mocker”, ao misturar os dois conceitos. Para explicar rapidamente como adendo, a Inglaterra vivia o auge do movimento, “Mod, naquele instante. Em linhas gerais, sem alongar-me, os Mods eram jovens ultra-nacionalistas e que odiavam os Rockers, a quem acusavam de ser “americanizados”. Portanto, estes só apoiavam bandas britânicas e mantinham em seu modo de vestir-se e portar-se, baseados nesse nacionalismo exacerbado. 

A seguir, a banda executa: “If I Fell” no estúdio de TV e mais confusões são geradas nos bastidores, principalmente pelo avô embusteiro de Paul.
Quando soa os primeiros acordes da canção : “Can’t Buy me Love”, uma sucessão de cenas com os quatro a fazer maluquices ao ar livre, tornou-se icônicas nos anos sessenta. Muitas bandas repetiram tal tipo de cena em promos feitos para a TV. Vistas com rigor, mostram bastante ingenuidade aos olhos atuais, porém, ao pensar-se que foram concebidas há mais de cinquenta anos atrás (1964/2026), dá-se o desconto devido de ter sido uma outra época bem diferente. 

 
George Harrison é confundido com um ator nos bastidores e todos brincam com barbas postiças e figurinos que acham nos camarins, a denotar uma criancice irreverente para os padrões da época. Enquanto isso, o ardiloso “avô” de Paul, encontra muito material fotográfico da banda e passa a falsificar os autógrafos dos componentes do grupo, com o intuito de vendê-los mais caros do que o normal aos fãs. O ator, Ronaldo Golias na pele do personagem, “Bronco Dinossauro”, teria feito o mesmo, certamente. 

The Beatles tocam a seguir: “And I Love Her”, uma balada belíssima e sim, com uma latinidade explícita, ao mostrar-se quase como um bolero latinoamericano.
Quando os rapazes chegam ao estúdio novamente, um grupo de dança ensaia uma coreografia ao som de: “I’m Happy Just to Dance With You”, sob uma versão jazzística e orquestrada, que surpreende pela sua beleza. Ao pensar detidamente nesse pormenor, a banda mal havia iniciado a sua escalada de sucesso e já havia tornado-se uma referência para rearranjos interessantes de suas canções, por parte de outros músicos, inclusive de vertentes estéticas distintas... e isso fora só o começo para eles.
Uma cena que eu adoro, é a escapada de Ringo Starr, ao disfarçar-se e assim caminhar incólume pelas ruas de Londres. Chega a ser poético e ouso dizer, parece cena de filmes do diretor, Tony Richardson, a retratar o cotidiano de personagens simples do povo, a dita classe operária, aqueles ingleses mais rudes, trabalhadores de fábricas, a expressar-se com sotaque cockney, e mediante uma vida dura, cuja única diversão além das bebedeiras em Pubs, é frequentar estádios de futebol aos domingos e cantar em plenos pulmões o hino: “You’ll Never Walk Alone”, mesmo se o seu time estiver a perder o jogo. 

Ringo brinca com garotos de rua; joga pedras no rio, deita e fica a olhar a paisagem... cáspite, um Beatle humano, igualzinho a qualquer um de nós, grande “Ringão”, nosso amigo...
Claro, a cena prolonga-se e para voltar o ritmo de humor e frenesi, Ringo mete-se em confusão para ser detido pela polícia. Revela-se hilária a cena com o policial a anotar em uma caderneta, as supostas esquisitices que observou no comportamento do narigudo cabeludo. Nesse ínterim, o avô de Paul é preso na mesma delegacia, acusado em vender material de propaganda da banda, com falsos autógrafos, o que foi verdade, afinal de contas, visto ser este senhor, um idoso larápio.
Se algumas pessoas achavam haver influência de filmes mudos das décadas de dez e vinte neste filme, agora tal fator escancara-se, com os demais membros dos Beatles a invadir a delegacia para libertar Ringo e o avô de Paul, com todos desesperados por outro motivo, pois estava em cima da hora para a apresentação derradeira da noite, no estúdio de uma emissora de TV, desta feita com público presente no auditório. Essa cena, sim, lembra muito o “Comedy Capers”.
Dali em diante, os Beatles tocam várias canções e Richard Lester soube captar as expressões das fãs, quase histéricas, e a significar em sua leitura labial ao pronunciar com volúpia assustadora os nomes dos quatro membros da banda. Chega a ser impressionante notar tal frenesi que inclusive foi muito comentado por críticos na época, em resenhas publicadas nos principais jornais britânicos. 

No “set list” desse momento do filme, executa-se as músicas: “Tell me Why”, If I Fell (desta vez mais a ver com o arranjo original, eletrizada com guitarras); “I Should Have Know Better (de novo, também); She Loves You e “A Hard Day’s Night”, fecha a sequência e o filme.


Gosto bastante da fotografia em PB (assinada por Gilbert Taylor), com bastante contraste. É muito anos sessenta; tem tudo a ver com o então “novo” cinema britânico que já citei anteriormente quando falei sobre Tony Richardson e tem a ver também com a Nouvelle Vague francesa, sem dúvida alguma.
Ao comentar sobre as músicas em si, o som dessa fase dos Beatles foi permeado pelo Rock’n' Roll em estado bruto e com total influência do Rock cinquentista norte-americano e daí, veio por tabela a raiz do Blues, naturalmente. Porém houve também muita influência do R’n’B, igualmente americanizado, além de ritmos britânicos como Jambalaya e Skiffle, bem populares nos anos cinquenta na Inglaterra e que certamente influenciou a banda.

Doses generosas de música Folk em geral e o cancioneiro britânico e europeu dos anos trinta a cinquenta do século passado, também fizeram parte dessa receita, além de uma surpreendente latinidade de viés sulamericano e hispânico, sobretudo, visto haver uma pitada de bolero nesse bolo. 

E para fechar, o Pop Rock típico dessa metade de década de sessenta e que era chamado pejorativamente como: “Bubblegum”, ou seja, música com refrães “pegajosos” que literalmente eram concebidas para grudar na memória das pessoas, a provocar-lhes propositalmente, a vontade para cantarolá-las, assoviá-las etc. E nesse quesito, os Beatles tiveram a felicidade de criar músicas muito eficazes nessa fase inicial da carreira, ao ajudar a alavancar a sua fama. Sem esse impulso inicial tão certeiro, e sem a fama que ganhou, não seria possível ter tido a oportunidade para obter a segunda fase na carreira, quando após 1966, tornaram-se também artistas muito mais profunda sob o ponto de vista da criação e assim, a legar-nos uma obra mais robusta, com consistência suficiente para eternizá-los na história do Rock e da música em geral.

Sobre essa última música e que tem título homônimo ao filme, foi através de uma inspiração de Ringo Starr que surgiu a ideia primordial para a canção e creio, definiu o mote para o filme. De fato, “a noite de um dia duro” caiu como uma luva para roteirizar um filme permeado por um dia inteiro na rotina dos Beatles, e com muita ação; música e humor.
E foi providencial também, pois até surgir a canção, a ideia inicial seria que o filme chamasse-se: “Beatlemania”. Não teria sido uma má ideia em princípio, mas acredito que, “A Hard Day’s Night", caiu bem melhor, ao conferir-lhe um sentido mais artístico e dessa forma extrair o aspecto meramente documental que o outro título poderia sugerir. 

Então, quando o filme foi lançado em Londres, em julho de 1964, foi um estouro tão grande, que só fez aumentar a avalanche que a banda já causava pela explosão radiofônica de suas músicas; o barulho da imprensa, a gritaria das fãs etc.
Seis canções foram compostas especialmente para o filme, mas para rechear o LP, outras foram inclusas, e assim, o LP “A Hard Day’s Night" extrapolou a ideia de ser uma trilha de filme apenas, para entrar para a discografia da banda, como um álbum oficial.
O lançamento do filme foi um estrondo em Londres, com a avant première a contar com a presença da princesa, Margaret, na plateia.

Em Liverpool, a cidade dos rapazes, cem mil pessoas fizeram um cortejo até o aeroporto para recebê-los, além da homenagem oficial prestada pelo prefeito da cidade. 1964 e boom ! 
The Beatles não era mais um objeto de idolatria fomentada pela Beatlemania, somente entre os jovens ingleses, mas havia tornado-se um fenômeno mundial consolidado e o filme em si, foi apenas mais uma bola de neve a descer montanha abaixo, por que a avalanche apresentara várias motivações para ter ocorrido e não uma apenas. 

Um ano depois, e a parceria entre Beatles e Richard Lester seria feliz mais uma vez, mas essa outra história eu conto em outra resenha. Logo mais, falo sobre uma situação de perigo em que eles se envolveram, quando soltaram o grito de... Socorro!

Cabe acrescentar que entre todos os títulos ridículos que os programadores de cinema no Brasil, inventaram para filmes em língua estrangeira, este foi um dos mais bizarros e infelizes da história. Ocorre que uma parte da mídia brasileira da época, seguramente a parte mais popularesca e ignorante, inventou o termo: "Iê-iê-iê, para designar o Rock'n' Roll, como uma forma simplória e completamente fora da realidade, baseada em sua percepção prosaica de que a expressão: "yeah", recorrente entre norte-americanos e britânicos, fosse uma espécie de manifestação a representar o estilo musical que professavam os seus artistas.

Segundo consta na história, e isso é verdade, John Lennon recebeu uma cópia do LP "A Hard Day's Night", prensado no Brasil, com a inscrição em português: "Os Reis do Iê-Iê-Iê" e ao perguntar o significado daquilo em inglês, Lennon ficou estupefato com a resposta e simplesmente respondeu com uma única palavra: "ridículo". De fato, concordo inteiramente com ele. 

Como já mencionei, en passant, o filme fez um sucesso retumbante nas salas de cinema do mundo inteiro.E a crítica pareceu ter entendido a proposta do filme, em linhas gerais, a realçar tratar-se de uma produção leve e a conter uma dose de humor a contrabalançar os números musicais, notadamente a intenção primordial do filme. Eis algumas opiniões publicadas na ocasião: -"Os Beatles são retratados como jovens simpáticos que são assolados pela sua fama brutal, e na verdade, querem apenas viver em paz, sem esse assédio todo". -"Trata-se de uma sátira à própria Beatlemania". Concordo, tais colocações contiveram fundamento.
Sobre o elenco de apoio, além dos que já foram citados, é preciso acrescentar: o roadie dos Beatles na vida real, Mal Evans, figura recorrente em todos os filmes que o grupo produziu, e que aparece certamente nesta obra, no entanto, de uma forma bem discreta, quase imperceptível, em uma cena onde está a carregar instrumentos, dentro do vagão do trem. E mais: Norman Rossington (como Norm, o agente dos Beatles e fica a pergunta, Brian Epstein foi convidado a interpretar a si mesmo ou simplesmente descartou a hipótese por timidez?), John Junkin (como "Shake", Road Manager da banda), Victor Spinetti (como o diretor do programa de TV, onde a banda apresenta-se e que também participaria com maior destaque, inclusive, do filme posterior dos Beatles, "Help"), Anna Quayle (como Millie), Deryck Guyler (como o sargento da polícia), Richard Vernon (como Johnson, um passageiro do trem), Edward Malin (como um garçom do hotel), Robin Ray (como um produtor de TV), Lionel Blair (como o coreógrafo da TV), Allison Seebohn (secretária) e outros.
Roteiro escrito por Alun Owen. Produção de Walter Shenson. Direção de Richard Lester. Foi lançado em julho de 1964. Naturalmente que o filme chegou com relativa rapidez ao circuito da TV aberta, na época, e a destacar-se que a TV a cabo ainda nem existia. Portanto, foi exibido com muitas reprises ainda nos anos sessenta e a postergar a sua presença até os anos setenta, com frequência, certamente. Em meu caso particular, lembro-me de ter assistido pela primeira vez em 1969, mas seguramente que já estava a ser reprisado desde bem antes. Posteriormente, foi exibido com certeza em canais da TV a cabo e relacionado em mostras a ver com o Rock, anos sessenta em geral, contracultura ou especificamente em mostras temáticas a envolver os Beatles. 

Bem, no campo dos produtos caseiros de alto consumo, é óbvio que o filme foi lançado em todas as plataformas possíveis. da fita VHS, a passar pelo Laser-Disc, DVD e Blu-Ray e em cada uma dessas plataformas, a conter relançamentos com extras e atrativos de merchandising, inseridos em Kits especialmente concebidos para colecionadores. Na Internet, por ser um produto totalmente cercado por normas restritivas sob o ponto de vista comercial e do direito autoral, é difícil achar uma cópia integral e gratuita no YouTube. Mas a driblar restrições, eis que em portais como Vimeo e Dailymotion, mantém-se o filme em cartaz nestes dias de 2016.


Esta resenha foi revista e ampliada para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n Roll". Está disponível para a leitura através do seu volume I, a partir da página 344.