sexta-feira, 22 de junho de 2018

CD Último Adeus / Ricardo Dezotti - Por Luiz Domingues


O Blues-Rock clássico, lado a lado com baladas melódicas, bem ao estilo “Power Ballads”; R’n’B & Soul Music com a pegada de outrora, uma boa dose de Rock’n Roll e tudo amalgamado por letras com teor romântico, mas a apostar na sensibilidade rara e não na pieguice da música brega que toca no mainstream, enfim, essa mistura tão normal para vários artistas que militaram nos anos de ouro do Rock, mas completamente fora do imaginário da juventude atual, ainda seria possível nos dias presentes? 

Se vivemos em uma época onde não temos mais um Peter Frampton a produzir Pop Music com qualidade, sob pegada Rocker e nem contamos mais com artistas do quilate de Derek and the Dominos, Bread, Creedence Clearwater Revival e igualmente com os primeiros discos solo do Eric Clapton e George Harrison, entre tantos outros exemplos (centenas de outros, essa é a verdade), é um alento ter contato com o trabalho de um jovem guitarrista paulista, oriundo da pequena cidade interiorana de Porto Ferreira, chamado: Ricardo Dezotti, que traz essa proposta bem delineada em seu recente álbum, denominado: “Último Adeus”.  

Bem versado como guitarrista, mediante experiência adquirida em boas bandas na seara do Hard-Rock, como por exemplo o “Freak”, ao lado do baterista, Junior Muelas (atual “A Estação da Luz”), aliás, foi quando o conheci, em 2003, e também quiando ele fez parte da quase formação de uma outra banda com esse mesmo time e a acrescentar, Dudu Chermont, (ex-guitarrista da Patrulha do Espaço e Made in Brazil), Ricardo Dezotti teve inclusive uma participação curta no line-up da Patrulha do Espaço, ao lado do baixista, Vagner Siqueira (Ex-“Freak” e atual, “A Estação da Luz”), logo após a dissolução da formação da qual eu fiz parte, com Rodrigo Hid & Marcello Schevano). 

Depois disso, Ricardo Dezotti trabalhos anos pela noite em diversas cidades interioranas e daí começou enfim a articular o seu trabalho próprio.

Neste ótimo novo trabalho que nos apresenta, “Último Adeus”, Ricardo Dezotti mostra-nos o seu potencial como compositor; letrista, arranjador e cantor, ao lado de sua ótima performance como guitarrista e o seu esforço atingiu um resultado muito além do que esperar-se-ia. 

Sob um apanhado de boas canções, Dezotti dá o seu recado muito bem dado e empolga, certamente. Trata-se de um trabalho que busca uma raiz perdida no Rock e dadas as circunstâncias, pode-se afirmar até que a atual geração, e talvez as duas anteriores, igualmente, nem possui contato com tal conceito remoto. A raiz primordial do Rock, inserida no âmago do Blues, foi deixada de lado, há anos e assim, muitos equívocos são cometidos com o seu nome pronunciado em vão, essa é que é verdade. E amarguemos o indefectível, "mallocchio", que fique aqui esta mensagem subliminar que os bons entendedores haverá por compreender...
Escute : "Blues das Estrelas", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti  

https://www.youtube.com/watch?v=vC-GKsQtKoQ   

Determinado em sua proposta e sem relutar, portanto, Ricardo Dezotti inicia o seu disco com: “Blues das Estrelas”, um "slow blues" vigoroso, mediante requintes. Sob uma harmonia bela, a apoiar-se em acordes menores e modulações com diminutas, há uma linha de baixo e bateria muito bonita, igualmente, incluso um belo "rulo" inicial na caixa e algumas intervenções muito criativas no pedal do bumbo, ao melhor estilo do saudoso, John Bonham. 

Gostei muito das bases de guitarra, com uso de drive, inclusive, e contrasolos a colorir a canção, sob a boa distribuição no pan do estéreo. Eis então que uma convenção bem concatenada muda o panorama da canção, com a aceleração do seu andamento e aí a interpretação fica ainda mais intensa e abre caminho para um solo de Rock, clássico, em sua influência clara em prol do Blues-Rock mais dramático. Sobre a letra, a canção fala sobre solidão e melancolia, a amargura pela partida da pessoa amada e o vazio, mas tudo com classe, sem nem chegar perto da pieguice como infelizmente artistas popularescos simplesmente não conseguem fugir, ao abordar a mesma temática.    

“Onde é que isso para?/onde é que seguro?/Me sinto no meio de um palco escuro...  

Aqui não trata-se da “sofrência” proposta por artistas popularescos, mas a melancolia que a dor transforma na beleza do Blues e induz o Bluesman a buscar a sua inspiração nas estrelas, para fazer de seu lamento, uma arte pura, mesmo que seja em cima de um palco escuro.
Escute "Alone", do CD Último Adeus, do guitarrista, Ricardo Dezotti.   

https://www.youtube.com/watch?v=wzFXTHY3EvU

“Alone”, a segunda faixa, é uma Power Ballad, aquelas bem clássicas, com fortes raízes no Folk, e na Country Rock, através de  uma condução sensacional de baixo e bateria, mais um passeio excelente de violões pontuais a produzir belos dedilhados e uma base pesada de guitarra, na medida certa. O refrão é tão bom, que desperta-nos aquele velho questionamento que beira a revolta, no sentido de que é um disparate um tipo de canção desse nível, não ter espaço algum no mainstream. Se fosse um artista norte-americano, Dezotti certamente teria notoriedade em emissoras de rádio e um belo circuito para trilhar, a viajar e apresentar-se de costa a costa, só pelo advento dessa canção e o seu refrão que é ótimo, mas no Brasil...

E como se não bastasse tais atributos elencados, a canção tem mais atrativos, como um riff pesado perpetrado pelo baixo e guitarra em duo, nos momentos finais, com batida seca e desdobrada da bateria, que remete ao som do "Aerosmith" em seus melhores dias e com a rápida dobrada do andamento, que vem a seguir, Dezotti solta o Joe Perry que tem dentro de si, com bastante contundência. Em suma, a canção poderia constar em qualquer álbum do "Black Crowes", outra banda que tem similaridade com essa sonoridade, com certeza, tamanha a sua qualidade e comprometimento com o conceito do que é ser “vintage”, na acepção da palavra e por estar fora de seu tempo. 

Escute : "Chicote Blues", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti 

https://www.youtube.com/watch?v=EW2V4-7Sp90

A terceira faixa, “Chicote Blues” investe no Blues rural tradicional, com aquela sonoridade de violão, inclusive a simular o “dobro”, mas apresenta também o recurso das guitarras com "drive" na sua base, através de seu desenrolar, além de um solo, bem na pegada de guitarristas como, Rory Gallagher, com certeza.
Escute : "Coração Aberto", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti 

https://www.youtube.com/watch?v=GT-aowKHwpY 

“Coração Abertoé um R’n’B com atmosfera bluesy. Lembra muito o trabalho do Eric Clapton em seus primeiros (e melhores) discos, solo. Apresenta a sua estrutura harmônica bem concatenada, para dar vazão a uma construção melódica, excelente. Mais um caso onde dispara as minhas reminiscências mais queridas, de onde o conceito do que foi o Rock, realmente, vinha envolto sob um manto de euforia que é até difícil descrever para quem não viveu essa outra realidade, mas enfim, Dezotti, consegue resgatar esse elo perdido, ainda bem. Gostei muito das bases de guitarra e com o apoio de uma cozinha tão firme, a consistência do trabalho ficou assegurada.


Mais uma vez a letra versa sobre a relação homem/mulher, mas apesar do tema ser tão usual na música Pop em geral, existem as suas resoluções interessantes, como por exemplo, quando ele canta: 

"Parecia que o dia estava ao contrário/Dormia quando era para estar acordado/Mesmo fazendo o certo, saía tudo errado”... 

Dessa maneira, a exprimir estar inconformado com o rumo da relação amorosa, não bem resolvida.
Escute: "Corda Bamba" do CD "Último Adeus" do guitarrista, Ricardo Dezotti.  

https://www.youtube.com/watch?v=EQ3bdKovZgQ

“Corda Bamba” tem riff versado pelo Blues-Rock com aquela pegada funkeada, a lembrar o estilo de Joe Walsh, à frente da sua maravilhosa, "James Gang". Gostei muito da linha de baixo, com um balanço muito grande, a gerar aquele molho mais do que necessário para o que a canção pede. Idem para a bateria, que "swinga" forte e quebra bastante, tanto nos tambores, quanto no chimbau, a lembrar o som do grande, Carmine Appice, nos seus bons dias com o "Vanilla Fudge" e o "Cactus". Apreciei bastante a voz dobrada na parte "B", a criar uma atmosfera preparatória muito criativa para o refrão, que é muito bom, também. E o solo pesado, embalado nesse balanço todo, é curto, mas belo, certamente.
Escute : "Fama de Mau", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti

https://www.youtube.com/watch?v=RhS6SvtNBC8 

A próxima canção, “Fama de Mau, tem sabor “zeppelineano”, a parecer algum out-take do LP Physical Graffiti. Contém aquela gostosa simbiose entre o Blues de raiz e o Hard-Rock, sob a ultra amplificação, uma marca do velho Zepelim de chumbo. O arranjo geral favorece a canção, a realçar acentos estratégicos a cada final de módulo da parte "A", por ser agradabilíssimo e aliado ao uso muito inspirado do cowbell, intermitente, garante a festa. Gostei muito do solo duplicado, slide de um lado e bendings do outro, no pan do estéro, e assim realçou-se mais uma vez o comprometimento de Dezotti, com as suas ótimas influências. 
Escute: "Novo Amanhecer", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti   

https://www.youtube.com/watch?v=JPMGHDKk8k4 

“Novo Amanhecer” é uma canção densa, com pegada bluesy, e que apresenta um caldeirão de boas tendências em seu bojo. A base de guitarra, com aquele “drive”, lembra muito o som de Paul Kossof, em seus melhores trabalhos no "Free". Há uma participação de teclados, muito boa. Não só pelo reforço da harmonia, mas a pontuar com desenhos muito ricos, principalmente no piano elétrico, e também no órgão, portanto, acrescenta muito. Surge uma parte mais pesada ao final da canção, onde a melodia desenha por cima de um riff peso-pesado que lembra a virulência dos primeiros álbuns do "Grand Funk", e por isso, soa magnífica. 
Aqui, Dezotti fala sobre a questão da esperança, força interior e vontade de vencer, sob quaisquer circunstância :  

“O Sol já vai nascer/Espere só pra ver/Um novo amanhecer/Pra começar de novo”...

Escute: "Revelation Blues", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti 

https://www.youtube.com/watch?v=Wx-JhCYxYz4 

“Revelation Blues” tem a sua estrutura harmônica e rítmica baseada no Blues-Rock tradicional e lembra bastante o som de bandas nacionais clássicas, com essa mesma pegada. Gostosa de ouvir, traz o pontual piano com os seus momentos de atuação em staccato e a intercalar com trinados agudos e certamente indispensáveis para esse tipo de condução. O solo de guitarra, com o uso de bicordes em bendings, também respeita a arte de Chuck Berry e congêneres. Na letra, há uma certa influência do Erasmo Carlos, naquela sua costumeira felicidade em expressar-se sob uma forma coloquial, leve e a dar o recado certeiro, sem deixar de ser Rocker, jamais (o Tremendão é demais, mesmo).
E o recado fica ainda mais contundente, quando é dado com o clássico "gran finale" desdobrado, ao estilo do blues malandro de New Orleans: 

“Mas se o papai não te ajudar, não vai adiantar chorar, encontre o seu próprio caminho, meu bem”.
Escute: "Te Gosto Tanto", do CD "Último Adeus", do guitarrista, Ricardo Dezotti 

https://www.youtube.com/watch?v=Rhjb4FMWQkA 

“Te Gosto Tanto” é uma balada super Folk-Country, que remete-me aos discos de Crosby; Stills, Nash & Young e também aos bons discos dessa turma, em duplas separadas ou solo de cada um. A entrada mais Folk, com violões muito bem desenhados e com o baixo a manter condução clássica, a marcar tônica e quinta acima e tônica/quarta abaixo, é obviamente uma delícia e a bateria vai na mesma construção da batida tradicional, inclusive em alguns momentos pontuais a inserir uma nota semibreve com "sustain", executada no surdo, em contratempo, ou seja, uma ideia criativa de arranjo. 

Outro detalhe bem colocado, foi o processamento da voz com trêmulo na parte inicial, o que conferiu um charme retrô, sensacional à canção, onde até a sobra provocada pela respiração do cantor, acaba por tornar-se um resíduo aleatório a enriquecer o acabamento. Já na parte "B", que tem um quê de Beatles e Rolling Stones no fim da década de sessenta, acrescentou-se mais peso, é bem verdade, com enorme consistência a fazer uma junção com o Blues-Rock e dessa forma, ao abrir caminho para um belo refrão, mais um aliás, para abrilhantar o trabalho do disco inteiro. 
Escute: "Último Adeus", do CD homônimo, do guitarrista, Ricardo Dezotti 

https://www.youtube.com/watch?v=UDJZIKIZgpU 

O disco finaliza-se com a canção homônima. “Último Adeus” é mais uma balada pesada, com uma base harmônica muito bonita que assim facilitou a criação de uma ótima melodia. Gostei muito do arranjo geral. Base pesada mais uma vez, a usar e abusar de acentos, com violões na sombra e devidamente respaldados por uma linha de baixo e bateria muito bem concatenada e bela. Apresenta uma sombra de uma segunda voz com reverber e delay, muito bem colocada na mixagem, a provar que tanto Dezotti quanto os técnicos de áudio (na captura, trabalhou André Prezotto e na mixagem, Rodrigo Francalacci), não sucumbiram à tentação em deixá-la mais alta, portanto, como fundo estratégico, funcionou perfeitamente. E o solo de guitarra principal, é de arrepiar, com uma carga de emoção extra, a consolidar o álbum inteiro.
Sobre a capa, ela é simples em sua concepção, mas bem funcional. Gostei do lay-out a privilegiar um fundo levemente escarlate sobre a despojada foto de Ricardo Dezotti, a empunhar a sua guitarra Gibson Les Paul, agachado sob um piso de madeira a denotar um quarto residencial, mas a apresentar alguns galhos secos de uma vegetação por trás e uma insinuação de eletricidade (ou algo gasoso), próxima do braço do seu instrumento. O quarto de sua reclusão meditativa, onde solitário, busca as suas respostas na inspiração para compor e certamente que o a luz gasosa ali insinuada é a fonte metafísica da inspiração que aproximou-se para ele criar as suas belas canções. Lay-out da capa por Beto Giocondo e foto de José Valdinei Cuel.

Gravado; mixado e masterizado no Villa Music Studio, de Porto Ferreira / SP
Captura de áudio: André Prezotto
Mixagem : Rodrigo Francalacci e Ricardo Dezotti
Produção geral: Ricardo Dezotti


Banda:
Ricardo Dezotti: Guitarra, Violão e Voz
Régis Berreta: Bateria e Percussão
Léo Vituri: Baixo

Músicos convidados:
Felipe “Piu” Lopes: Violão e Backing Vocals
João Paulo Godoy: Teclados

O álbum, “Último Adeus”, de Ricardo Dezotti, já foi lançado, em plataforma física tradicional. As suas faixas também podem ser escutadas no entanto, em várias plataformas virtuais, tais como “Spotify”; “Deezer”, “Amazon” e “You Tube”.

Para conhecer melhor o trabalho de Ricardo Dezotti, acesse:



Página do Facebook:



Instagram:



Canal do You Tube:

https://www.youtube.com/channel/UCF4d9IHaqvjqTgaXizDxPkQ 

Ouça também o trabalho do Freak !, lançado em 2004, cujas canções : “O Novo Amanhecer” e “Revelation Blues”, foram regravadas por Dezotti em seu disco solo. Link abaixo: 

https://www.youtube.com/watch?v=tKSuTSjB660 

Eis aqui um álbum, que resgata muitas tradições esquecidas no Rock, a começar pelas suas raízes mais genuínas dentro do Blues, e mais alguns elementos importantes e enriquecedores, tais como a Folk Music; Country-Rock, Blues-Rock, Pop, R’n'B” e Soul Music. Recomendo o “Último Adeus”, a torcer para que não seja de fato o último adeus, mas apenas o início de uma bela trajetória para o guitarrista; cantor & compositor, Ricardo Dezotti. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

O Superestimado Festival das Nações - Por Luiz Domingues


A ideia em si, logo em seu nascedouro, até que não foi ruim. Um campeonato mundial promovido entre seleções nacionais, realizado a cada quatro anos, não haveria por atrapalhar a vida de nenhum clube, dado o seu caráter bem espaçado. E a competição por sua vez, tratada como algo lúdico, mais a configurar-se em uma festa de congraçamento entre nações amigas, do que algo a ser disputado sob alta competitividade.

Sobre a sua concepção inicial, em promover todos os jogos da competição em um país sede, também pareceu sensata tal resolução ocorrida em 1930, a facilitar a logística complicada, em uma época na qual a aviação comercial já existia sob pleno funcionamento, porém à mercê de sérias limitações por conta da tecnologia mais modesta à disposição compatível para a época, e isso equivale também ao quesito das comunicações. O cinema e o rádio eram os grandes veículos de comunicação de massa, mas considere-se que o cinema recém havia conseguido inserir o áudio em sua produção regular e as imagens coloridas igualmente, com novos e ainda bem incipientes recursos tecnológicos, além do mais, o rádio também padecia com a questão do alcance ainda bem rudimentar, sem a presença de satélites e com antenas primitivas a espalhar as suas ondas, mediante pequeno alcance. 

Fora disso, já havia o telefone (o telex ainda era experimental e só entraria em operação comercial em 1933), bastante insípido, ainda, com jornais e revistas a reportar notícias sob extrema lentidão, sempre defasados em relação aos fatos mais recentes ocorridos etc.

Mas convenhamos, o interesse popular também não era muito significativo. O futebol já era um esporte popular em muitos países e clubes importantes já tinham forjado uma boa tradição, a amealhar torcedores e interesse o suficiente para manter campeonatos bem organizados, para os padrões da época e jogos entre seleções nacionais já existiam há muitos anos, inclusive, torneios continentais, taças regionalizadas com valor oficial etc. 

Todavia, em muitos países, esse esporte nem era praticado, portanto, estava longe ainda de ser uma modalidade com alcance mundial. Todas as condições elencadas acima, referem-se ao ano de 1930, ocasião em que inventou-se a Copa do Mundo, sem adesão de todos os países, com algumas nações inclusas apenas, e cujas participações foram feitas mediante convites, portanto, sem a existência de extensivas eliminatórias para classificar os melhores times etc. 

Entretanto, o negócio (no sentido comercial, mesmo), cresceu, e a cada nova edição, aquilo que deveria ser um torneio de verão, com clima de mero congraçamento social, foi alçado a um grau de importância no imaginário popular, acima dos clubes e de suas tradições, a suplantar campeonatos e ligas, para vir a torna-se, no imaginário popular, devo salientar, supostamente o supra-sumo do futebol. E por atrair tanta atenção do público em geral, naturalmente tornou-se uma oportunidade de ouro para empresas e publicitários. Sob uma intensa retroalimentação, movida por interesses comerciais bilionários, quiçá, trilionários, tal evento foi transformado em um dos maiores, senão o maior do planeta a superar o interesse por outros mega eventos esportivos, tais como as Olimpíadas e o Super Bowl (a final da liga norte-americana de seu "futebol", que na verdade é um esporte derivado do Rúgbi), mesmo com este último a representar um esporte cujo interesse não possui nem 1% do poder planetário que o futebol detém, mas ao tratar-se da maior celebração esportiva, da maior nação da Terra, os Estados Unidos da América, gera um estardalhaço tamanho em termos de volume de dinheiro, que justifica a sua presença nesse seleto rol dos mega eventos esportivos.

Eu nunca fui um admirador do jogador, Sócrates, por motivos óbvios, para quem conhece-me pessoalmente e sabe por qual clube eu torço, embora eu reconheça que ele tenha sido, de fato, um jogador de alto nível técnico. Não obstante reconhecer a sua capacidade muito acima da média, faço a ressalva de como atleta, ele foi um mau exemplo sob vários aspectos, ao acintosamente adotar a postura do antiprofissionalismo, por não cuidar de seu físico adequadamente como espera-se de um jogador profissional. 

Alguns argumentarão que mesmo ao não cuidar-se, ele jogava muito e nesse caso, eu contra-argumento que pelo contrário, se não bebesse, fumasse e treinasse com afinco, jogaria ainda mais do que jogou. Tudo bem, ele não está mais entre nós, portanto é desagradável entrar nesses (de)méritos de sua personalidade no tocante à sua conduta esportiva, mas eu preciso acrescentar mais um dado importante sobre ele. 

Trata-se de sua personalidade forte a emitir opiniões políticas. Fato raro no futebol dos anos setenta e oitenta, décadas onde ele construiu a sua carreira, ter existido um jogador dotado de um nível intelectual não usual entre a média dos seus pares, e ainda mais a proferir opiniões sobre questões sociopolíticas, culturais e comportamentais. Tirante o seu colega, Afonsinho, que atuou nos anos sessenta e setenta e um ou outro caso isolado e não tão proeminente, Sócrates destoou muito de seus colegas, formado por uma imensa maioria de jogadores com baixíssimo nível educacional, ao se revelarem como semianalfabetos e com baixo nível cultural. 

Sendo a grande maioria oriunda das camadas mais carentes da população, aliás, até hoje é assim na média, o normal é ter origem muito humilde, por ser egressos das favelas das grandes cidades ou dos rincões sertanejos remotos, de pequenas localidades interioranas e muito carentes. Fora o poderio intelectual, Sócrates usou de seu carisma para expressar as suas opiniões fortes, mas como eu já falei anteriormente, além de não gostar de sua atuação como jogador, nunca simpatizei com sua linha de pensamento, apesar de concordar com alguns pontos que ele defendia. E dentre tais questões em que concordei, eis que um dia ele proferiu algo muito forte e que causou uma celeuma tão grande, que ele foi praticamente obrigado a retratar-se sob ameaças de punições, no âmbito esportivo: -“Copa do Mundo não passa de um festival de nações”.

De fato, a afronta que ele proferiu não dizia respeito ao torneio em si, tampouco ofendia as seleções, e muito menos as nações que esses times montados por federações colocam em campo para supostamente representá-las, mas agrediu no entanto, o imenso esquema de marketing criado para fazer desse produto, algo hipnótico a extrair da população, o máximo em termos de exploração comercial. E assim, ao pensar igual nesse aspecto e também a enxergar o microcosmo dessa engrenagem, realmente desanima-me ainda mais a proximidade do evento, a cada quadriênio. Senão vejamos:


No imaginário popular, uma seleção nacional, a fim de representar o país, monta o seu time com o que tem de melhor, em termos de jogadores. Mas se no início desse tipo de competição, fora esse o raciocínio, já faz décadas que isso não ocorre na prática. Há uma intensa movimentação de bastidores a envolver dirigentes das federações em conluio com empresários de jogadores, e mega investidores a manipular tais escolhas nas convocações oficiais. Por outro lado, ao enxergar o ponto de vista dos clubes, há de levar-se em conta que não obstante gastar-se fortunas para contratar jogadores e manter em dia os seus salários astronômicos, a ideia em ter que submeter-se à interferência das federações a convocar seus funcionários, é algo muito invasivo. 

Sim, porque não trata-se apenas de um mês a envolver a tal da Copa, mas remonta à extensiva fase de eliminatórias, portanto, a Copa, que em tese é quadrienal, na verdade é bienal. Sendo assim, a todo instante, os clubes sofrem desfalques de seus melhores jogadores, e muitas vezes em fases decisivas de campeonatos importantes, por conta da necessidade em cedê-los para as seleções nacionais. E cabe acrescentar que além das eliminatórias, existem os torneios continentais e no caso de um continente como a Europa, por exemplo, existe a eliminatória da Eurocopa, ou seja, seleções europeias atuam o tempo todo, e assim, imagine o inferno que isso representa para os clubes, que pagam muito e usam pouco os seus melhores jogadores. Além do mais, para todo o torneio, faz-se mister a marcação de partidas amistosas a visar a devida preparação de um time e em todas as ocasiões, corre-se o risco enorme de um jogador sofrer contusão a serviço de suas seleções e assim desfalcar os seus clubes por mais tempo, ainda.

Pelo ponto de vista da mega comercialização do evento, os publicitários exageram ao cubo. É a hora de vender e atrelar o pseudo patriotismo sob chuteiras como mote barato para qualquer coisa. De chiclete a avião, tudo tem que remeter ao ufanismo barato, enjoativo, apelativo e quiçá, sob o efeito de uma lobotomia coletiva, além das últimas consequências. Fora a insistência deselegante em forjar a ideia do ódio aos argentinos, uma das maiores imbecilidades perpetradas pela publicidade brasileira, a cada quatro anos. Além de tudo, a manipulação sociopolítica, com o governo em todas as suas esferas, partidos, militantes e agora com essa rede de robots a trabalhar na internet, diuturnamente no afã em espalhar notícias falsas com o objetivo explícito de destruir pessoas em sua reputação; ódio em doses maciças; repúdio a instituições, distorcer ideologias e tudo mais, o futebol, via “Copa”, torna-se a arma da vez a promover todo o tipo de ações abomináveis.


A ideia de tal torneio tornar-se algo tão grandioso, ao ponto de decretar-se ponto facultativo e assim parar o país em pleno dia útil, é de uma insanidade sem tamanho. Em que ponto a massificação chegou, para que as pessoas não questionem uma paralisação geral de quase todas as atividades de um país inteiro, ou seja, chega a ser assustador. 

A pensar-se no caso exclusivo do Brasil, o fato da CBF centrar todas as suas forças na formação de sua seleção e negligenciar acintosamente os campeonatos que ela mesma organiza, enoja-nos. Sei que os clubes tem culpa nesse processo por não contribuir com uma mudança de mentalidade através do conselho arbitral do qual fazem parte e votam, mas que é uma indecência e também um ato de péssima escolha comercial, não resta dúvida. Sei que a CBF ganha muito com a manutenção de seu time de camisa amarela, mas ganharia muito mais ao investir pesado e transformar a liga brasileira na mais vendida no mundo. Se uma liga, onde em tese só existem dois times que disputam o título, todo o ano, caso da Espanha, é bilionária, aqui poderia gerar muito mais por ser um campeonato muito mais disputado, no entanto, é óbvio que a mesquinharia em dividir o bolo, fomenta a ideia para se investir somente em seu time da camisa amarela, como uma espécie de "Harlem Globetrotters" do futebol. 

Por fim, quando olhamos o mar de lama em que chafurdam as instituições que regem o futebol, notadamente as confederações nacionais; continentais e a mundial, realmente é difícil pensar nesse torneio, com a mínima simpatia. Então, algumas pessoas ficam atônitas por saber que eu detesto a Copa do Mundo e simplesmente ignoro a sua realização, há décadas, mesmo sendo um viciado em futebol, assumido. Parece uma contradição incompreensível, mas eis acima um arrolamento de alguns (não todos, existem outros aspectos que nem abordei) motivos a justificar a minha contrariedade com tal evento. 

Indo além, acho o torneio, um acontecimento menor, irrelevante mesmo e que não aufere nada sob o âmbito esportivo. 

Ainda bem que as séries C e D do brasileirão, não vão parar, assim a garantir que eu não pereça por tédio nesse mês em que o festival das nações monopolizará tudo, ad nauseam. Sócrates tinha razão nesse aspecto.