Quando o
futebol tornou-se profissional, no ano de 1933, acabou o romantismo, embora na
percepção generalizada, o romantismo no futebol tenha durado até meados dos
anos sessenta. O chamado,
“amor à camisa” tornou-se uma farsa, salvo honrosas exceções, com todo mundo
preocupado em correr não atrás da bola, mas do vil metal.
Com a
instituição da Lei do Passe, os clubes asseguravam os seus direitos com mão de
ferro e com o tempo, essa engrenagem revelou-se muito parecida com o antigo
sistema escravagista, mesmo que disfarçado em seus meandros jurídicos, a garantir-lhe
constitucionalidade. Ou seja, o
clube detinha o chamado : “passe”, de cada jogador, que fora um direito de
propriedade sobre o atleta.
Mesmo que o
contrato de trabalho entre atleta e clube estivesse vencido, ou em situações
limítrofes em torno do não pagamento de salários por parte dos clubes, ainda assim o
atleta não poderia simplesmente deixar o clube e procurar outro para jogar,
pois o seu vínculo só era rompido mediante a compra de seu “passe”, por outro
clube. Portanto, os
clubes negociavam entre si, ao seu bel prazer, para tratar os atletas como
verdadeiras mercadorias. Mesmo ao ter
em conta o fato de que mediante uma transação dessas, o atleta ganhava 15 % do valor da
negociação, ainda assim era uma relação aviltante, a caracterizar uma ação
escravocrata pré-Lei Áurea, apesar do disfarce, e da brecha jurídica que a
legitimava.
Portanto,
tal lei abriu campo para que os clubes usassem de expedientes de coação, nada
morais, como por exemplo, colocar um jogador no ostracismo, caso este criasse-lhe
problemas, praticamente para destruir a sua carreira. Demorou
décadas para os jogadores mobilizarem-se para mudar tal relação de trabalho.
Ao valer-se
da realidade e respeito de uma costumeira baixa taxa de instrução, observada entre a maioria dos jogadores, demorou para
que aparecessem indivíduos com maior grau de discernimento, e poder de
mobilização para exigir tais mudanças Afonsinho,
ao final dos anos sessenta, foi um dos primeiros a questionar publicamente tal
sistema feudal no futebol profissional, e sofreu muitas retaliações não apenas profissionalmente, mas também por ter a sua liderança questionada pelo regime autoritário de então,
que em tudo enxergava infiltração esquerdista. Algum tempo
depois, Sócrates; Vladimir e Casagrande, ao lado do diretor de futebol, Adilson
Monteiro Alves, criaram a famosa : “democracia corintiana”, ao instituir um
conselho informal para a modernização das relações do futebol, porém circunscrita
ao seu clube, e sem espalhar-se nos demais. Aliás, a
decantada democracia corintiana, pouco mudou a maneira arcaica como o
Corinthians era administrado, nas mãos de uma figura paleozoica como, Vicente
Matheus, e tais conquistas que obtiveram em âmbito interno, restringiu-se a pormenores protocolares do cotidiano do clube, como a questão da concentração
antes dos jogos, e participação dos jogadores em algumas decisões de
bastidores, tão somente.
Em uma questão
fundamental como a Lei do Passe, os democratas corintianos falaram a respeito, é bem
verdade, mas sem influenciar decisivamente em sua modificação. Então chegou
o momento em que tornou-se insuportável continuar a conviver com aquele regime trabalhista
escravizante, e com o Rei Pelé empossado como Ministro do Esporte, no Governo
FHC, uma equipe de juristas elaborou a Lei que acabaria com essa relação
medieval e aviltante, com os jogadores podendo enfim ser tratados com
dignidade profissional. Foi o fim da
Lei do Passe, e a instituição de uma nova ordem, com o jogador passando a obter
muito maior participação no seu destino. Tudo muito
bonito, é claro, mas ninguém mediu as consequências dessa nova regulamentação. Os clubes reclamaram, é óbvio. A sua argumentação teve até certos pontos onde houve uma
coerência sob o ponto de vista administrativo e comercial.
Por exemplo,
a questão da formação de jogadores, nas categorias de base. Se o jogador é
livre para jogar onde quiser, como qualquer trabalhador que sai de uma empresa,
e entra a seguir em sua concorrente que ofereceu-lhe mais, que incentivo teria doravante
os clubes em formar categorias de base ? Se eu
invisto em um garoto com doze anos de idade, e passo a gastar para manter o seu desenvolvimento à
medida que cresce, não apenas no aspecto fisiológico e cronológico, mas sobretudo em sua
ascensão técnica como jogador, como fico quando ele atinge dezessete anos e já a chamar a atenção da
mídia, passa a sofrer assédio de meus concorrentes ? Pois é, com
a promulgação da Lei Pelé, acabou-se com a senzala com a qual os clubes acostumaram-se
em manter ao longo de décadas, mas pelo lado dos clubes, esse detalhe citado
acima, teve procedimento enquanto reivindicação legítima. Portanto,
desestimulados, os clubes passaram a investir menos nas categorias de base, a causar
prejuízo técnico para o futebol brasileiro.
Pior que
isso, a Lei Pelé abriu brecha para que aproveitadores invadissem o futebol de
uma forma avassaladora. Intermediários;
atravessadores ou simplesmente agenciadores, tais elementos passaram a colocar-se
como representantes dos jogadores perante aos clubes. Se antes fora
normal que o pai do jogador tomasse a dianteira nas negociações financeiras
entre clube e atleta, agora estava aberto o portal para que “profissionais” da
negociação, contratassem jogadores, como “empresários”, a representar-lhes. De certa
forma, o jogador ganhou o mesmo status de um artista, e se tanta gente passou a ganhar dinheiro
com o empreendimento, e ele, jogador a ser o verdadeiro protagonista, sem o qual não há negócio,
foi até compreensível que fosse tratado nesses termos.
Mas claro
que fugiu do controle, e ao perceber-se as brechas jurídicas, tais “empresários”
passaram a manipular os jogadores de uma forma frenética, e assim a estabelecer
uma relação perniciosa tão aviltante quanto a qual foram tratados pelos clubes,
anteriormente. Se antes
eram praticamente escravizados pelos clubes, agora, na mão desses “agentes”,
passaram a ser tratados como “prostitutos da bola”, ao levar dinheiro para os
seus cafetões.
A forçar
barras inacreditáveis por pura ganância, usam e abusam da carreira de seus
“contratados”, ao obriga-los a indispor-se com clubes; torcedores; jornalistas etc. Se a cada
transação de transferência, os valores revelados são altíssimos, e as comissões muito robustas, que
interesse tem um agente em que seu contratado permaneça por muito tempo em um
clube apenas ? Portanto,
sob a sua estratégia, os jogadores estão sempre sujeitos a mudanças bruscas, nem
sempre saudáveis, aliás quase nunca, para o seu próprio bem, se pensar-se na performance
técnica, e muito menos para o interesse dos clubes que defendem.
Como é
sabido da maioria que acompanha o futebol, por tratar-se de um esporte
coletivo, mesmo que seja um excelente jogador, tecnicamente a falar, ele depende
de alguns fatores alheios à sua vontade, para obter uma performance sob alto nível. O
entrosamento com os seus companheiros, mesmo que sejam tecnicamente inferiores, é
imprescindível para o seu futebol fluir a contento. O condicionamento físico é
igualmente muito importante, e se ele muda de clube como troca de cueca, esse
desempenho físico decai muito. Por exemplo,
se joga em um clube do nordeste do Brasil e é contratado para jogar em uma equipe
da Ucrânia, vai demorar meses para adaptar-se à temperatura, quiçá também o mesmo prazo para a adaptação
social, com os seus diversos aspectos (alimentação; hábitos; língua, distância da
família etc). Isso tudo
que assinalei acima, fora a mudança de mentalidade específica da profissão, com
sistemas de jogo diferentes (refiro-me à tática & estratégia); metodologia
de treinamento, visão dos técnicos etc.
Aí nessa
demora, o seu futebol que era vistoso aqui, decai por um ou outro motivo, ou
mesmo pela somatória de tudo o que arrolei acima, e o valor de seus direitos
administrativos, desaba junto. Para
reconquistar o espaço e tempo perdidos, vai ter que submeter-se a jogar em
clubes menores provenientes de outras ligas inferiores, ou voltar ao Brasil em condições mais
modestas em relação ao tempo em que partiu, e isso se tiver tido a sorte em ser amigo de seu
agente, pois a tendência é ele romper o contrato, para rescindi-lo, e ir trabalhar
para outros jogadores que estão sob uma situação melhor que a sua, em termos de projeção. Ou seja, o
cafetão percebe que a prostituta já não é assediada pelos clientes, e vai à
cata de uma menina mais nova e atraente, e pronto.
Outro fator
típico desse novo tipo de relação, é a complicação que estes agentes causam na hora de
renovar contratos com os clubes, pois pleiteiam aumentos sob valores absurdos, e essa
estratégia de achaque é uma mera ferramenta para forçar a saída abrupta, em busca de uma
transferência milionária. Aliás,
empresário adora plantar notícias na mídia, e usa tal artifício para pressionar
os clubes a fornecer-lhes o máximo. Sempre existe
“vários” clubes grandes interessados em seus contratados, a seguir o protocolo
de suas normas não muito éticas.
Pior ainda é
quando forçam situações em pleno rigor de contrato, conforme a circunstância do
momento. Se o seu contratado faz um gol decisivo em uma competição, isso já é
motivo para convocar uma reunião, e pressionar dirigentes a “rever“ o contrato,
mesmo que ainda falte anos para ele expirar, pois contratos são passíveis de
rescisões, ora bolas, para que servem as brechas jurídicas, não é verdade ?
Portanto,
urge uma reforma na legislação trabalhista que rege as normas do futebol
profissional, pois não pode-se caminhar para trás ao desejar a volta da famigerada
Lei do Passe, e os jogadores a ser tratados como escravos no tronco. Contudo, a
Lei do Pelé abriu a caixa de Pandora da cafetinagem, e desse jeito, não há clube que consiga montar um time para
disputar nem campeonato estadual, pois se futebol depende de treinamento e
sobretudo entrosamento, está impossível manter um time intacto por mais de três
meses, e tecnicamente a falar, para um time atingir o seu apogeu técnico,
demanda muito mais tempo do que isso. O
neoliberalismo que assolou o futebol no Pós-Lei Pelé, está a matar o seu
negócio, e não é à toa que o Brasil tenha sido esmagado pela Alemanha na última
Copa do Mundo. Não foi um
“apagão” dos jogadores, ou da comissão técnica, simplesmente, como alguns
dirigentes tapuias vociferaram, mas reflexo da absoluta falta de estrutura e
nesse aspecto, a Lei Pelé tem uma imensa culpa nesse processo, justamente por
ter dado esse poder absurdo para usurpadores travestidos de “empresários”, e
assim a enfraquecer os clubes.
Matéria publicada inicialmente no Blog Planet Polêmica, em 2015