Na primeira metade da década de 1970, O Rock Progressivo viveu o seu apogeu na Europa, principalmente, e também no Brasil, mesmo a se considerar as dificuldades inerentes de um país a conviver com a defasagem estrutural em relação aos países do dito primeiro mundo, pois o reflexo cultural repercutia e motivava a inspiração dos artistas locais a buscarem as tendências em voga.
São muitos os bons exemplos de bandas brasileiras que buscaram a onda progressiva como fonte de sua criação e certamente a imprimirem o seu toque pessoal, enriquecido por boas influências locais e este foi o caso de uma banda surgida em Santos, no litoral de São Paulo, que recebeu o nome de: “Recordando o Vale das Maçãs”, ou seja, um título deveras poético e certamente a sugerir uma ligação direta com as tradições da música campestre, no sentido da sua aproximação explícita com a Folk-Music de uma maneira ampla.
De fato, o som da banda se mostrou poderoso nessa junção do Rock Progressivo então em alta voga na época, com as tradições silvestres do melhor da música Folk e entenda-se tal denominação de uma maneira muito ampla e assim a estabelecer a conexão também com o Folk europeu, que é na verdade, um dos pilares mais tradicionais da escola do Rock Progressivo, por exatamente estar na base da música erudita tradicional europeia.
No entanto, apesar do belo trabalho que a banda desenvolveu, houve uma série de contratempos para atrapalhar a sua carreira, como por exemplo a falta de um melhor apoio da gravadora na época em que o seu prestigiado LP “As Crianças da Nova Floresta” foi lançado (em 1977, pela gravadora GTA, um selo gerido pelo mesmo grupo que administrava a Rede Tupi de Televisão), pois sem esforço correto de divulgação, o LP chegara às lojas sem que os lojistas soubessem se tratar de um álbum de uma ótima banda de Rock, mas pelo nome da banda e do disco em si, pensavam se tratar de um disco de histórias infantis e o colocavam nas prateleiras erradas, a sabotar a sua vendagem para o público ao qual deveria se dirigir corretamente.
Mesmo assim, mediante a qualidade da banda que era muito grande, tal obra lhe forjou uma aura benquista no meio e apesar de um erro de estratégia dessa monta e principalmente por outros problemas internos que a banda enfrentou, o seu nome marcou na história.
O tecladista, cantor e compositor, Lee Eliseu Oliveira, foi um dos membros dessa grande banda e finalmente em 2015, ele lançou um trabalho que não pode ser considerado exatamente como um disco solo, pois ao batizá-lo como “Lee Recorda”, praticamente decretou se tratar do trabalho de uma banda nova, embora a manter o elo com o antigo trabalho.
Nesse esforço, Lee mostrou algumas canções do seu antigo grupo, o “Recordando o Vale das Maçãs”, em regravações com um padrão mais moderno de áudio e também algumas peças inéditas. A base da sua sonoridade é o velho e ótimo Rock Progressivo clássico, com aquela desenvoltura instrumental requintada que os fãs do gênero tanto apreciam e a dedicar um especial cuidado com a parte melódica e igualmente no tocante às letras, a garantir a verve poética, muito valorizada, certamente.
Nesses termos, se ouve ao longo do disco, um material de alta qualidade musical a honrar as tradições dessa escola que tem na prática da sua excelência, uma praxe.
Em sua arte gráfica, a foto que retrata o tecladista Lee Recorda a ostentar em suas mãos uma significativa maçã, diz tudo sobre a sua origem e ligação com a antiga banda pela qual atuou na década de setenta e mais que isso, denota estar fiel aos seus princípios.
Há toda uma ambientação colorida a envolver tal foto, a denotar um bonito efeito dégradé do verde ao azul e além do mais, a capa se apresenta como extensão que a liga à contracapa, ou seja, um tipo de perspectiva visual que era bem usada na composição gráfica dos antigos LP’s de vinil, mediante o uso da clássica “capa dupla”, o que também traz uma referência típica dos anos setenta.
Nas folhas internas do encarte, as letras das canções estão todas disponíveis para o ouvinte acompanha-las, além da ficha técnica, a usar paisagens bucólicas do campo e também com motivação marinha, com paisagem do mar, como fundo em suas ilustrações e estas foram criações do saudoso baterista do “Recordando o Vale das Maçãs”, Milton Bernardes.
Sobre as canções em si, vale a pena acrescentar mais algumas observações.
Eis o link para escutar no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=JQn9HacQmgc
A faixa que abre o álbum, “Ferreiro do Céu”, mostra grandiloquência em seu início, com intervenções de teclados a se buscar o sentido sinfônico e com os demais instrumentistas a seguir a cartilha, com brilhantismo.
Uma parte mais densa mostra intensa dramaticidade, quando logo a seguir, a parte “A” retorna com a parte cantada e o final é muito bonito, ao conter um convite irrecusável para quem busca transcender, quando é afirmado de forma enfática:
“Vamos todos juntos a caminho do Sol”
Eis o link para escutar no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=qxNtMcLF3XU
“Besteira” é a segunda faixa, e logo de início mostra uma forte identificação com a música Folk, em sua beleza harmônica e melódica. Advém uma parte mais pesada, intensa, dramática e bastante emocionante, com uma base de órgão Hammond e bela melodia na intervenção da guitarra.
O solo executado no sintetizador é bem típico setentista e a se mostrar muito bonito. E logo a seguir, surge um belo contraponto com muitas vozes sobrepostas e impressiona muito pelo sentido erudito do arranjo.
A quebrar tudo, vem uma deliciosa levada de vaudeville ao estilo trintista e com direito a um belo solo de flauta para encerrar a canção, ou seja, são muitas ideias boas concentradas em uma música com uma metragem relativamente curta a demarcar apenas 4’:41”, o que no universo do Rock Progressivo é um tempo considerado como modesto.
https://www.youtube.com/watch?v=Gd3-LEUFP4g
“Água”, é a terceira faixa e se revela como um tema instrumental. Tal peça mostra uma melodia inicial feita pela guitarra, que se mostra muito emocionante, com notas longas em predominância.
Vem a seguir um belo solo de piano elétrico e eu gostei muito da ideia da guitarra a pontuar a sua base com o efeito de pedal wah-wah, a imitar o efeito do som sobre a água, como algo borbulhante, digamos.
Vem a seguir mais uma parte pesada e depois, a brusca mudança na dinâmica leva tudo para a calmaria, com o piano a pontuar a harmonia e assim a alternar a marcação rítmica até se encerrar mediante o uso do ”staccato”.
Eis o link para ouvir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=NjsNS-f7d6I
“A Luz da Natureza”, é a quarta faixa e começa com uma base delicada pontuada de arpejos do piano e do violão, com intervenções doces da flauta, além da boa linha de baixo, que se mostra simples, todavia muito funcional. É belo o solo de flauta, sem dúvida.
Entra a voz feminina (através da cantora convidada, Cristina Lobão), a entoar a melodia com grande graça e a estabelecer o duo com a voz masculina, a criar uma atmosfera muito agradável.
É então que a junção é feita com uma outra música, “As Crianças da Nova Floresta”, antiga peça do repertório do grupo “Recordando o Vale das Maçãs”, com a participação da cantora Cristina Lobão, mais uma vez.
A banda desliza em um tema complexo, com grande leveza, a pontuar muitas convenções, com intensa quebra na divisão rítmica mediante excelente precisão e a abrir caminho para um belo solo de sintetizador com alternância de timbres.
Novas partes cantadas são mostradas com uma base de piano muito bonita, intervenções de sintetizadores muito bem colocadas e a “cozinha” que se mostra firmíssima.
É belo o final com a melodia entoada sob sentido onomatopaico através de um um ritmo bastante balançado e sob a doçura da flauta a pontuar, enquanto o piano atua com desenvoltura ao fundo.
https://www.youtube.com/watch?v=x5LHfno74sE
A quinta faixa, “O Mundo de Davi” tem uma estrutura de balada a trazer um delicioso sabor Country-Rock em sua base primordial. A melodia é bem rica e ainda por ser cantada em duo, nos remete à melhor tradição do “Rock Rural” setentista.
Eis o link para ouvir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=pthEsXbEJAM
“Rancho, Filhos e Mulher” é mais uma canção do repertório do “Recordando o Vale das Maçãs” que Lee regravou assim como “Besteira" e “Crianças da Nova Floresta” (esta já citada), que foram as outras.
Trata-se de uma balada muito agradável, também composta sob a aura do “Rock Rural” dos anos setenta e com uma harmonia mais centrada no estilo da MPB do que no Rock, desta feita. É muito boa a base com piano elétrico e a flauta pontua mais uma vez de uma forma bastante feliz.
Em sua letra, a ideia de Lee foi realmente enaltecer as benesses da vida mais frugal que o campo oferece ao Ser Humano. Veja um exemplo:
“Eu quero ter uma charrete como condução/eu quero respirar o ar puro sem poluição”.
Ou seja, se essa simplicidade saudável já era valorizada nos anos setenta, imagine no mundo moderno do momento pós-anos 2000?
Em suma, trata-se de um álbum que traz em seu bojo, uma musicalidade muito forte, com o Rock Progressivo clássico como mote central, mas a abrir caminho para outras vertentes e tudo feito com poesia, brilhantismo instrumental & vocal. Portanto, eu recomendo a audição, com toda a certeza!
Fica o registro de que a produção musical desse álbum ficou a cargo do grande baixista, cantor e compositor, Pedro Baldanza, icônico líder do “Som Nosso de Cada Dia”, uma das maiores bandas da história do Rock Progressivo Brasileiro, portanto, um reforço e tanto para que o Lee pudesse ter um em mãos um produto tão bem-acabado. Infelizmente, o Pedro nos deixou em outubro de 2019 e certamente que faz uma grande falta.
E outra baixa muito sentida é a do baterista, compositor e cantor, Milton Bernardes, ex-membro do “Recordando o Vale das Maçãs”, companheiro de Lee Oliveira, autor de algumas canções deste álbum além das ilustrações que acompanharam a composição gráfica desse disco. Nos faz falta desde 2012, igualmente e jamais será esquecido.
Gravado no estúdio Art Brasil
Técnicos de som: Izaias Amorim e Omar Campos
Mixagem: Izaias Amorim, Omar Campos. Pedro Baldanza e Lee Oliveira
Capa, encarte e contracapa: Leonardo Motta (Cisne Design)
Ilustrações: Milton Bernardes (in Memoriam)
Direção e produção musical: Pedro Baldanza (in Memoriam)
Produção fonográfica: Roberto Oca
Apoio: Moshimoshi Produtora
A formação do Lee Recorda neste álbum:
Lee Oliveira: Teclados, voz principal, backing vocals e arranjos
Fabio Ferreira: Baixo
Rogerio Pelosi: Guitarra e violão
Xima: Bateria
Músicos convidados:
Cristina Lobão: Voz
Domingos Mariotti: Flauta
Fernando Motta: Violão
Leo Oliveira: Backing vocals
Pedro Baldanza: Backing vocals (In Memoriam)
Para conhecer melhor o trabalho de Lee Recorda, acesse:
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https://www.youtube.com/channel/UCocfYclmVlBM1boDcCs_gqQ
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