Muitos anos
após o lançamento do filme/documentário, ”All This and World War II” (“Tudo
Isso e a Segunda Guerra Mundial”, de 1976), e também de “Sgtº Pepper’s Lonely
Hearts Club Band” (este de 1978), mais uma vez o cinema usou o cancioneiro dos
Beatles para dar mote; substância artística e trilha sonora para que uma
história fosse narrada. Desta feita e a priori, tratou-se de um filme romântico,
no entanto, que não se engane o leitor, pois nas entrelinhas (e são muitas
nesta obra), há citações interessantes sobre a contracultura sessentista e a
carreira dos Beatles. Portanto, para quem costuma adotar uma opinião definitiva
sobre um livro, a basear-se na ilustração da capa, tão somente, e simplesmente
não dar-se ao trabalho em lê-lo, vale a ressalva que por trás de uma suposta
história de amor banal, ainda que embalada por reconhecidas ótimas canções,
este filme tem um algo a mais.
Em primeiro
lugar é preciso destacar que a proposta estilística desta película foi pelo
musical em sua linha tradicional, ou seja, a conter uma dramaturgia normal,
intercalada com diálogos cantados, na plenitude da prerrogativa clássica em
torno das personagens a cantarolar em situações inusitadas, a esmo e a desafiar a
realidade da vida comum. Nesses termos, não há nada de errado nesse conceito,
se levarmos em consideração que essa vertente do cinema existe há décadas,
portanto, para muitos aficionados, trata-se de uma metodologia considerada até
charmosa, a produzir-se musicais dentro dessa característica, e assim dar vazão
à nostalgia das pessoas que sentem saudade dos musicais produzidos em maior
profusão, principalmente entre os anos trinta e sessenta do século passado.
Assim como também não poderia ser totalmente condenável a opção da produção em
trabalhar com o mote do romantismo tradicional, a evocar a relação homem/mulher. E dessa forma a construir-se de um roteiro conservador para observar os
típicos recursos narrativos em torno dos desencontros, mal-entendidos e
vilanias da parte de terceiros para atrapalhar a felicidade do casal
protagonista etc. e tal.
Questão de opção e livre arbítrio, quem quiser assistir
pela milionésima vez a mesma história, considere-se livre para pagar o valor do
ingresso cobrado por uma sala de cinema, sentar-se na sala escura e
regozijar-se. No entanto, mesmo que este filme contivesse apenas tal fator para
oferecer ao espectador como uma substância, a simples inserção de um repertório
recheado por canções dos Beatles, trata por conferir-lhe um requinte
inquestionável.
E antes mesmo de comentar sobre a história, é preciso destacar
que a obra tem uma produção visual requintada, por conter uma direção de arte
primorosa; ótimos figurinos e a presença de efeitos até surpreendentes. E
claro, ao tratar-se de um musical, a preparação dos atores e dançarinos
envolvidos, foi muito boa, inclusive a apresentar em certas cenas, coreografias
ousadas e uma excelente trilha sonora, pois a execução das canções dos Beatles,
foi realizada com muito respeito à sonoridade original de seus autores (mesmo a
conter algumas modificações em sua interpretação e arranjo), portanto bem
tocadas & cantadas, além de apresentar-se bem produzidas em estúdio, no quesito da resolução final de áudio de sua trilha sonora.
Sobre o
desenrolar da história, os signos em torno dos Beatles, aparecem desde o início
da obra. A primeira cena, em uma praia, mostra um rapaz a cantarolar a canção,
“Girl”, quase a balbuciá-la. Na sequência, uma bela moça aparece envolta às
turbulentas ondas de um mar revolto, embalada pela peça, “Helter Skelter”, uma
das, senão a mais pesada música gravada pelos Beatles em sua carreira, portanto
a estabelecer um contraste com a docilidade ingênua da canção anterior, “Girl”.
Nesses termos, configurou-se a antevisão de que a vida dessas duas personagens
protagonistas, a formar um casal propriamente dito, não seria facilitada ao
longo da trama, e provou-se óbvia pela imagem proposta e sobretudo pelo uso dessa
canção mais contundente dos Beatles em termos de intensidade agressiva.
Passado esse
preâmbulo, que é bonito pelo caráter onírico e poético, apresenta-se cenas a
mostrar duas realidades distintas. O rapaz em questão chama-se, “Jude”
(interpretado por Jim Sturgess). Ora, é clara a intenção em fazer referência à
canção, “Hey, Jude” e por extensão a lembrar que na vida real, tal canção teria
sido composta por Paul McCartney, para consolar o filho de John Lennon, o então
menino, Julian Lennon, que por volta de 1968, ficara muito triste por ver o seu
pai deixar o lar, ao assumir a relação com outra mulher que não a sua mãe,
Cynthia Lennon, no caso, a tratar-se da artista plástica japonesa, Yoko Ono.
E
no avançar das cenas, o espectador é conduzido a entender que Jude é um rapaz
britânico, oriundo da cidade portuária de Liverpool e trabalha como operário em
um estaleiro. Portanto, fica claro toda a ambientação a evocar mais signos a
representar os Beatles, pois ele é um rapaz simples, da dita “classe operária”,
o proletariado britânico, a caracterizar uma menção à canção: “Working Class
Hero”, que foi um sucesso de John Lennon, em sua carreira solo ao longo dos
anos setenta. E naturalmente a mencionar a cidade de Liverpool, o berço natal
dos quatro componentes dos Beatles.
Concomitantemente,
são exibidas cenas com a protagonista feminina, a bela “Lucy” (interpretada por
Evan Rachel Wood), que encontra-se em um típico um baile de formatura
norte-americano (o famoso “Prom”), a envolver a sua turma da “High School” e a
moça em questão, mostra-se completamente apaixonada pelo seu namorado, que fora
recém convocado a servir as Forças Armadas na Guerra do Vietnã. Ela canta,
“Hold me Tight”, o que significa uma alusão legítima ao sentimento que a
permeia, em torno de sentir-se abraçada, no sentido físico, a revelar o seu
amor ao namorado, mas também a usar da metáfora para sugerir a sua sensação de
segurança pessoal, algo permitido pela boa vida burguesa que ostenta em meio ao
sonho norte-americano.
No sentido oposto, Jude também canta a mesma canção, simultaneamente,
porém a revelar a sua realidade social que é muito diferente, como um
trabalhador humilde, sem perspectivas para ascender. Interessante, ele aparece
em um Pub, ao apresentar uma réplica do famoso, “Cavern Pub” de Liverpool, onde
os Beatles tocaram muitas vezes antes de alcançar o seu sucesso estratosférico.
E nessa cena, uma banda está a tocar no palco e o seu visual mostra-se muito
parecido com os Beatles no período pré-1962, portanto, a menção é explícita.
Para
reforçar a ideia de que os operários não detinham perspectivas, são mostradas
cenas de Jude a trabalhar entre idosos, a sugerir que o seu futuro seria manter
tal rotina exatamente como à de seus companheiros veteranos e para reforçar a
mensagem, ouve-se “When I’m Sixty-Four”, uma menção ao fato de qualquer pessoa que chegar aos
sessenta e quatro anos de idade, precisa resignar-se com as muitas mudanças físicas e mentais que tal idade impinge ao Ser Humano.
Jude conversa com a sua mãe, que o criara
sozinha e resolve aventurar-se nos Estados Unidos em busca de uma vida melhor e
a ter como ponto de partida, buscar conhecer o seu pai, que é norte-americano.
Uma referência interessante portanto, pois de fato, durante o conflito da II
Guerra Mundial, muitos soldados norte-americanos envolveram-se com moças
europeias, de várias nacionalidades, portanto é histórico o fato de que muitos
engravidaram as suas namoradas e por pura canalhice ou até por desconhecimento
e perda do contato, deixaram filhos espalhados pela Europa e também na Ásia.
Pois então, Jude deixa a sua namorada inglesa, com a promessa de escrever-lhe com constância
e que assim que ganhasse um bom dinheiro, para os seus modestos padrões,
voltaria imediatamente para a Inglaterra. A canção, “All My Loving” é o veículo
para que a personagem, Lucy, expresse o seu amor ao namorado que vai lutar na
guerra, em cenas intercaladas com a ação de Jude.
Uma cena
interessante mostra Lucy a participar do ensaio dos malabarismos coreográficos
das “cheerleaders” da universidade e uma garota com traços orientais a observa
em separado, a cantar: “I Wanna Hold Your Hand”, em explícita observação de
sua homossexualidade, portanto a lamentar que Lucy não perceba que essa moça,
Prudence (interpretada por T.V. Carpio), é apaixonada por ela. Bem, algo ousado
para o filme, pois a música em questão não tem essa mensagem gay, de forma
alguma. E mais um detalhe, o nome, Prudence é clara menção à canção: “Dear
Prudence”.
Jude chega à
América do Norte e sem dinheiro, faz uso de caronas para chegar ao campus da
Universidade de Princeton, onde ele pensa que o seu pai, que não conhece, na
verdade, fosse um professor. No entanto, o seu progenitor de fato trabalha ali,
mas como um simples funcionário da manutenção da Universidade. Tudo bem, Jude não é ambicioso e
operário como sempre o foi, isso não o incomoda ou desaponta, necessariamente,
pois de fato, ele só queria conhecer o seu próprio pai. Independente desse
momento familiar, Jude conhece e torna-se amigo de um líder estudantil que ali
estuda, chamado: Maxwell “Max” Carrigan (referente à canção “Maxwell’s Silver
Hammer?), interpretado por Joe Anderson, que vem a ser irmão de Lucy Carrigan, ou seja, a conexão para que Jude
& Lucy pudessem iniciar uma relação, inicialmente como amigos,
naturalmente, e assim estabeleceu-se.
Daí em diante, cenas a conter estripulias
juvenis perpetradas por Max, Jude e outros amigos, são mostradas em profusão,
sob os acordes de “With a Little Help From My Friends”. A seguir, Lucy canta,
“It Won’t Belong” em meio à dramática sequência que mostra emissários do
exército norte-americano a entregar a famigerada carta que nenhuma família merecia receber, a
comunicar a perda de um jovem ente querido, abatido em campo de batalha. A cena
avança ao funeral para aumentar a dramaticidade e apesar de ser algo fúnebre e
obviamente muito triste, tal cena é plasticamente muito bem-feita.
Claro que a
moça fica arrasada, com a perda do seu amor, no entanto, a ênfase não é
colocada no sentido desse sentimento pessoal de sua parte, pois o foco
rapidamente vai de encontro aos movimentos múltiplos que ocorriam em 1966, data
da ação proposta pelo filme e entre os protestos contra a guerra do Vietnã; todavia, também
pelos direitos civis dos negros, além da emergente explosão contracultural
motivada pelo movimento Hippie, realmente a questão pessoal da personagem,
Lucy, foi suplantada, o que talvez não ocorresse, certamente, se o filme fosse
um drama romântico tradicional, porém, não foi a opção desta obra.
Nesses
termos, um diálogo (não cantado), revela-se bastante interessante ao mostrar um
jantar da família Carrigan e com Jude devidamente inserido na condição de amigo
pessoal de Max, à mesa. O pai de Max e Lucy, naturalmente porta-se no padrão do
cidadão norte-americano conservador, e em meio à uma acalorada discussão com o
seu filho “rebelde”, pergunta-lhe: -“o que você pretende fazer da sua vida? O
seu plano é sair com um carro velho por aí, como Jack Kerouac?” Tratou-se
portanto, de uma explícita menção ao movimento literário “Beat” (onde o
escritor Kack Kerouac foi um dos seus maiores artífices), um precursor natural
das ideias contraculturais e que movimentou o posterior movimento Hippie.
Jude e Lucy
também tornam-se próximos e em meio a uma atividade lúdica, como o boliche do
sábado noturno, canta-se: “I’ve Just Seen a Face”. Prudence, desapontada pela
sua desilusão amorosa lésbica e não declarada, embarca em uma carona e vai
viver a vida “on the Road”, enaltecida por Jack Kerouac e defenestrada pela
opinião pública média, representada pelo pai de Max e Lucy.
Uma nova
personagem é apresentada, na figura da cantora e ativista contracultural, Sadie
(interpretada por Dana Fuchs). Ora, o seu nome trata-se de uma clara alusão à
canção “Sexy Sadie”. Em outra cena forte e a apresentar mais um novo personagem,
vê-se uma ação de protesto pelos direitos civis e muitos manifestantes a serem
agredidos pela polícia. Em meio à pancadaria generalizada, com direito a tiros
e explosões, um menino negro morre tragicamente, para o desespero de seu pai, e
tal cena ocorre ao som de “Let It Be”.
Eis que na sequência, o sensacional, Joe
Cocker, cravou uma participação muito especial, ao cantar: “Come Togheter”, em
uma bela cena onde a edição mostrou-o a interpretar três personagens distintos
enquanto cantava pelas ruas. Como um cafetão em meio à prostitutas, mendigo e
um Hippie, onde caracterizado como ele mesmo aparentava ser nos anos sessenta, tal
figurino; peruca e maquiagem, rejuvenesceu-o.
Prudence
aparece, e mostra-se bem diferente, sinal de que a maturidade adquirida à
fórceps, na estrada, dera-lhe um ganho, enfim. Ela vai morar na casa
comunitária onde a cantora Sadie aluga quartos. Perguntada de onde ela vem, a
moça responde laconicamente:
-“nowhere”... Ohio”. A palavra que ela usou inicialmente, “Nowhere” (lugar
algum), teria sido uma referência à canção: “Nowhere Man?” Jude e Max já
moram ali e o guitarrista negro, Jo-Jo (interpretado por Martin Luther McCouy),
que foi o pai do menino morto no conflito racial de rua, também vai hospedar-se no mesmo lugar.
Sadie é uma
cantora muito boa, que apresenta-se no circuito de casas noturnas de Nova York.
A cena onde ela canta a canção, “Why Don’t We DoIt It in The Road”, é forte ao
extremo. A sua performance lembra, ainda que vagamente, Janis Joplin, mas há
uma porção da Tina Turner sessentista em sua performance, também, ou seja,
aquele élan do tempo em que tal cantora acompanhava o seu marido/algoz, Ike
Turner, e que a despeito de seu drama pessoal e familiar, foi uma fase
espetacular de sua carreira.
Nesse ínterim, Jude e Lucy finalmente
apaixonam-se, ao culminar em algo, que fora esperado desde o início do filme.
Dessa forma, eis aí uma quebra de paradigma, pelo menos ao pensar-se em um
musical romântico tradicional, pois o enlace só a ocorrer quase na metade do
filme e sem que anteriormente houvesse ocorrido diversos desencontros, foi algo
não usual.
Bem, se não
houve conflito prévio para o casal de namorados, eis que Max é surpreendido ao
receber a malfadada carta de convocação militar. Ir ao Vietnã combater os
Vietcongs, não estava em seus planos. Ele em princípio adota a postura que
muitos hippies tiveram na vida real, ao simplesmente queimar a carta de
convocação e ignorar a intimação militar. No entanto, as sanções para os ditos
“desertores” não eram nada agradáveis e assim, a representação da convocação e
posterior ida de Max à junta militar, é uma das melhores cenas do filme, pois
foi muito elaborada a coreografia em sincronia com efeitos muito bem feitos. A
figura do “Tio Sam” a saltar de um cartaz, para apanhar Max e obrigá-lo a
passar pelos exames médicos preliminares, é sensacional. Ao som de “I Want You
(She’s so Heavy)”, o ápice é quando vê-se Max já a atuar como um soldado e a
carregar como um fardo, junto a muitos companheiros, a estátua da Liberdade em
meio a uma batalha em um campo vietnamita, ao estabelecer-se um simbolismo
muito intenso.
Sadie e Jo
Jo também formam um casal doravante e uma dupla musical, pois Jo-Jo entra para
a sua banda. A sua postura no palco e na composição de seu figurino, faz com que
ele lembre bastante a figura de Jimi Hendrix, portanto, creio que a menção à
Janis Joplin & Jimi Hendrix fica mais clara nesse instante.
Um ônibus
psicodélico passa e arregimenta uma porção de pessoas. O mentor dessa ação, trata-se
de uma espécie de guru psicodélico, chamado, “Dr Robert”, ou seja, mais uma
menção a uma canção dos Beatles. Esse guru é interpretado pelo cantor da banda
irlandesa U2, Bono Vox, que surpreende ao atuar como ator, devo dizer, apesar
de seu papel ter sido curto. Bem, os personagens principais embarcam no ônibus
e a lisergia ali é total, em clara referência às caravanas psicodélicas
organizadas por Ken Kesey, um ativista contracultural/hippie, que costumava
aplicar injeções em laranjas, a conter em seu conteúdo, doses de LSD e distribuí-las
entre os seus correligionários, de onde a expressão: “a laranjada de Ken
Kesey”, foi cunhada e tornou-se uma lenda sessentista.
“Blue Jay Way” é
executada em meio a uma festa psicodélica louquíssima (escolha perfeita de
música para a cena), e onde a ideia de que o tal Dr. Robert espalha o
conhecimento extradimensional, talvez tenha sido uma menção ao professor
Timothy Leary, um ativista contracultural muito famoso, que de fato influenciou
muito a juventude e foi incensado por muitos artistas, ao ter sido considerado
como o “Papa do LSD”, nos anos 1960. Veio muito a calhar, a canção: “I’m The
Walrus, uma das mais psicodélicas do repertório dos Beatles, que foi bem defendida
por Bono Vox/Dr. Robert.
Bem, a trupe chega em um outro acampamento repleto por
freaks e em meio a uma representação circense, a canção, “The Benefit of Mr.
Kite” é cantada e o Mr. Kite em questão, foi interpretado por Eddie Lizard. Rita,
uma clara citação à canção, “Lovely Rita”, é uma trapezista do circo, que passa
a namorar, Prudence, enfim a trazer-lhe a felicidade para viver um amor lésbico
que não era aceito abertamente na época, como ocorre nos dias atuais de 2019,
quando escrevi esta resenha.
Outra cena
belíssima é mostrada em torno de um ballet multicolorido, mediante a encenação
do amor entre o casal protagonista e outros secundários da trama, de uma forma
subaquática, ao som da canção: “Because”. Entretanto, esse momento de amor é
bruscamente cortado por cenas de guerra, onde Max está a sofrer nos arrozais
asiáticos e minados.
Em Nova
York, Jude desenvolvera o seu talento como um desenhista sensacional. No
entanto, ele parece alheio aos protestos contra a guerra; sobre os direitos
civis e a liberdade. Para o seu desespero, Lucy, ao contrário, assume o
ativismo que o seu irmão, Max, ostentava e talvez muito motivada pelo fato em
ter perdido o primeiro namorado e agora ter o seu irmão sob o perigo extremo da
guerra no front de batalha, tornou-se uma ativista muito proeminente. Ao som de
“Something”, Jude desenha a figura de Lucy, como uma prova de amor.
Enquanto
isso, na casa noturna de shows, Sadie canta, “Oh Darling”, em uma versão para
arrepiar, mas o namoro dela com Jo Jo não está bem e isso é demonstrado no
palco, quando Sadie não deixa Jo Jo desenvolver um solo de guitarra como ele
gostaria de ter realizado. Musicalmente a cena é muito bem feita e dá para
sentir os nervos à flor da pele, para ambos, na interpretação vocal e na
tentativa frustrada para elaborar um solo de guitarra portentoso. Sadie
abandona o palco e Jo Jo assume a linha de frente do palco, para enfim cantar e
tocar de uma forma contundente.
Cenas da
guerra a serem transmitidas na TV são significativas, visto que a guerra do Vietnã
foi de fato o primeiro conflito bélico da história, que teve uma transmissão ao
vivo, e isso foi duramente criticado, pois denotara ter sido uma campanha
governamental velada para influenciar a opinião pública e minar o resultado dos
protestos perpetrados pelos jovens.
Jude sente
ciúmes de Lucy ao notar que o líder de um grupo militante antiguerra, está a
dar em cima da sua namorada. Ela fica brava com a pressão, pois é apaixonada
por Jude, todavia ele não consegue controlar-se. “Strawberry Fields Forever”
marca essa cena de crise conjugal entre Jude e Lucy. Muito significativo, os
murais pintados por Jude, a conter morangos, sangram, a denotar a corrosão
causada pelos ciúmes e a consequente crise instaurada na relação do casal. Para
incrementar, a cena da guerra, com Max a cantar e no caso dele, os morangos
esmagados a denotar a ação das bombas a gerar sangue e ferimentos nos soldados,
é forte.
Jude reage
ao procurar Lucy e para tal, canta “Revolution”, mas tudo piora quando
enlouquecido pelos ciúmes, ele agride o militante que é o pivô de sua raiva,
por considerá-lo como um rival a nutrir esperança para tirar Lucy de si. Martin
Luther King é anunciado como assassinado no noticiário da TV. Jo Jo e Jude
unem-se na depressão e na bebedeira por ambos perderem as suas respectivas
namoradas. “Across the Universe” é cantada em uma cena ocorrida dentro de um
carro de metrô e com direito a adeptos do movimento Hare Krishna a cantar e
dançar pelos vagões: “Jai Guru Deva On... nothing’s gonna change my world”.
O clima
esquenta, pois os protestos não são feitos por pacifistas hippies bem
intencionados, mas a infiltração de grupos extremistas com ideologia política, que
não estão ali presentes para falar sobre “Peace & Love”, exatamente. O
conflito explode e Lucy vai presa em uma ação violenta da polícia. “Helter
Skelter” volta a ser executada e agora, em meio ao conflito deflagrado pelas vias
de fato, a insinuação do início do filme, faz mais sentido. Max vive um
pesadelo ainda maior, sob o ataque dos inimigos no Vietnã e Jude também é preso
e ameaçado em ser deportado.
Nem mesmo a intervenção direta de seu pai, que é
cidadão norte-americano, sensibiliza as autoridades da imigração e ele é
deportado para a Inglaterra. Jude volta a trabalhar no estaleiro, e conforma-se
com a vida pobre de um operário. Ao encontrar a sua ex-namorada casada e
grávida de outro homem, percebe que o seu lugar não é mais ali e isso
desperta-lhe a saudade por Lucy. “Happiness is a Warm Gun” foi uma boa escolha
para musicar tal cena.
Max é ferido
seriamente e a cena dele, debilitado em um hospital de guerra, é muito boa,
pela dramaticidade, mas sobretudo pela coreografia e presença de efeitos
especiais. “A Day in The Life” ganha força durante tal cena. A cena em que ele
toma uma injeção para conter a dor, mas que é insinuada como uma providência
lisérgica, lembra muito a cena de Tina Turner como a personagem, “Acid Queen”,
no filme “Tommy”, de 1975. De fato, tais cenas mais lisérgicas, carregadas por
alegorias louquíssimas, lembram muito o estilo do diretor britânico, Ken
Russell.
Nesse
ínterim, os militantes preparam bombas de fabricação caseira e a seguir, Jude
lê nos jornais britânicos que as bombas explodiram no comitê dos militantes e
ele desespera-se ao imaginar que Lucy tenha perecido em tal acidente. Max volta
para a América e passa a procurar pelos amigos, sobretudo, Lucy. “Hey Jude”
explode na tela e levanta a emoção para os momentos finais da história.
Sadie e
Jo Jo, com os demais músicos, organizam um show surpresa no telhado de um edifício
em Nova York a caracterizar a famosa ação dos Beatles, retratada no filme/documentário, “Let It Be”, no topo do edifício sede da sua própria empresa, a
“Apple”, em Londres. Sadie e Jo Jo cantam “Down Let Me Down”, a reforçar a
menção ao show do telhado feito pelos Beatles em 1969 (chamado como "rooftop concert", na biografia dos Beatles).
E tal qual ocorrera na
vida real com o quarteto britânico, a polícia é acionada, e chega a seguir com
truculência, para acabar com tudo (na vida real, fora uma abordagem profissional e polida).
Na rua, um automóvel da marca Porsche todo
pintado com motivações psicodélicas, é muito parecido com o carro que Janis
Joplin teve na vida real, cuja pintura houvera sido feita pelo artista
plástico, Dave Richards. Talvez seja apenas uma impressão de minha parte, no
entanto se o filme traz tantas sutis referências, permito-me o direito de ter
enxergado mais uma, bem sutil, por sinal.
Os músicos
são expulsos pela polícia, todavia Jude burla o bloqueio policial e uma vez no
telhado, canta, a capella, a canção, “All You Need is Love” e imediatamente as
pessoas inflamam-se a motivar com que a banda volte para o telhado para tocar e
cantar juntamente com ele. Lucy ouve a voz de Jude, ainda no solo e faz de tudo
para subir ao telhado, mas é impedida pelos policiais. Como solução, ela
adentra o edifício ao lado e uma vez no telhado do outro prédio, é avistada por
Jude. Ao som de “She Loves You”, o final feliz da história consolida-se e ao
som de “Lucy in the Sky With Diamonds”, um caleidoscópio psicodélico faz o
encerramento com a apresentação dos caracteres finais da ficha técnica da obra, the end.
Eficiente e
criativo em muitos aspectos, mas ao mesmo tempo tradicional em outros, eis aqui
um bom musical, sem dúvida alguma. Tal filme não é revolucionário e nem de
longe pode ser considerado como um marco cinematográfico sob qualquer quesito
técnico e muito menos como uma peça artística capaz em suscitar alguma
modificação no panorama cultural de sua época. Contudo, é muito bem concebido, contém
uma produção musical muito boa com o resultado sonoro a mostrar-se bem
agradável.
Além das
canções citadas, também compuseram a trilha sonora desse filme as músicas: “If
I Fell”, “Dear Prudence”, “Flying”, “And I Love Her” e “Blackbird”. Os atores
colocaram as suas respectivas gargantas para funcionar e em tempos moderno,
mediante o recurso do “auto-tune” em estúdios de gravação, mesmo quem não possui
nenhuma noção sobre canto, na verdade, consegue disfarçar a sua inabilidade com
a máquina a corrigir a desafinação.
Outros
atores que participaram e não foram citados anteriormente: Spencer Liff (como
Daniel), Robert Clohessy (como Wes Huber), Linda Emond (como Mrs. Carrigan),
Salma Hayek (ela mesma, a atriz/beldade mexicana, como a enfermeira), Logan
Marshall-Green (como Paco) e outros.
O filme teve uma reação apenas discreta da parte
da crítica, no entanto em termos de público, lotou as salas de cinema. E a
trilha sonora também vendeu bastante, mesmo com o formato do CD tradicional em
plena decadência por ocasião de seu lançamento.
Com roteiro escrito por Julie
Taymor, Dick Clement e Ian La Frenais, teve em sua direção, Julie Taymor, que
já detinha experiência com montagens teatrais grandiosas, a envolver musicais
(a mais elogiada e premiada versão do “Rei Leão” para o teatro, foi dela),; Óperas
e peças clássicas de William Shakespeare. No cinema, ficou famosa por dirigir o
épico ambientado na Roma antiga, “Titus”, além de Frida e Tempest. Naturalmente
que embasada pela experiência com Óperas e musicais no teatro, credenciou-se e
não desapontou neste: “Across The Universe”, que foi lançado em 2007.
Após o
sucesso nas salas de cinema, o filme foi muito bem cotado em canais de TV a
cabo; esteve alojado por um bom tempo na rede Netflix e encontra-se à venda em
cópias do formato DVD/Blue-Ray. Em portais gratuitos pela internet, está
disponível no Dailymotion, ao menos em 2019, quando escrevi a resenha.
Esta resenha foi elaborada para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", em seu volume III e está disponibilizado para a leitura a partir da página 157.