sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Filme: All This and World War II (Tudo Isso e a Segunda Guerra Mundial) - Por Luiz Domingues

Sobre esta obra é necessário esclarecer que não obstante não se tratar de um filme com dramaturgia e portanto, muito mais próximo de um documentário, eu creio que faz por merecer a sua inclusão neste rol dos Rock Movies dos quais eu tenho aqui (neste blog e a referir-me ao livro impresso), arrolado, pois a sua proposta é bem interessante, em termos de mote e além disso, ele traz muitos méritos na sua produção, principalmente nos quesitos da pesquisa, decupagem e edição. Além desses fatores técnicos, a óbvia questão da sua trilha sonora, totalmente baseada no repertório dos Beatles, sob versões fidedignas aos arranjos originais e defendida por uma constelação formada por Rock Stars, britânicos em predomínio, faz valer a sua audiência, sem dúvida.
Bem, tal produção foi idealizada por Tony Palmer, um diretor que houvera lançado um interessante documentário em 1968, denominado: “All My Loving”, quando traçara um ótimo panorama do Rock inglês a contar com aparições sensacionais de artistas de alto calibre, como o Cream, The Animals, Moody Blues, Donovan, Lulu, Frank Zappa, The Who, The Jimi Hendrix Experience, The Beatles e The Rolling Stones além de depoimentos pontuais e cenas do cotidiano londrino sob a plena ação contracultural da Swingin’ London. Posteriormente, Palmer produziu uma série documental com o título: “All You Need is Love”, dividida em dezessete capítulos, a exibir um apanhado sobre a história da música popular, sobretudo pela ótica britânica e norte-americana. 
 
Sobre “All This and World War II”, Tony Palmer deveria ser o diretor único desta obra, no entanto, o papel da montadora, Susan Winslow, foi tão marcante que ela foi creditada como a diretora, oficialmente na ficha técnica da obra. E como eu havia mencionado anteriormente, de fato, o papel da montagem nesse filme/documentário, foi enorme, portanto, tornou-se cabível que a Susan fosse agraciada com esse crédito honroso.
E por que a montagem foi tão proeminente? Bem, o mote deste filme foi estabelecer uma colagem de imagens originais oriundas de diversos documentários sobre a Segunda Guerra Mundial, editadas em conjunto com cenas extraídas de diversos filmes norte-americanos e britânicos, notadamente dos anos trinta, quarenta e cinquenta, que basearam-se no evento dessa guerra. A montagem privilegiou portanto, uma linha mestra a dar vazão às muitas canções do Beatles, no tocante não apenas à emoção proposta pelas músicas em si, mas sobretudo pelo teor das suas letras e dessa forma, a passar uma mensagem subliminar em torno do repúdio ao horror gerado por tal conflito, no entanto muito além disso, a respeito de todos os conflitos bélicos, portanto a estabelecer uma ode ao pacifismo e à liberdade.
 
Sobre o desenvolvimento dessa colagem, a revelar um bom trabalho de pesquisa & decupagem, mas sobretudo na boa edição realizada, valoriza-se a trilha sonora e vice-versa, sendo assim, a gerar um trunfo para a produção desta obra, que soube estabelecer uma coerência em sua proposta. A inserção de cenas reais da guerra, não apenas sobre combates no front, mas também a revelar os bastidores políticos e militares, em meio aos acontecimentos ocorridos em seus gabinetes e sobretudo pelas imagens a mostrar o cotidiano das pessoas comuns, certamente são impressionantes. Mostra-se os civis e o seu sofrimento em meio à escassez de recursos, apreensão pelos acontecimentos a envolver o possível perigo de invasões da parte de exércitos inimigos e mesmo sob ataques frontais, caso de localidades que foram duramente bombardeadas.
Nesses termos há um bom acompanhamento do avançar do conflito, com a presença de manchetes de jornais e noticiários radiofônicos e também dos próprios documentários que eram exibidos normalmente em salas de cinema e na incipiente TV, que ainda engatinhava nos anos quarenta.
 
Sobre as cenas a envolver cenas extraídas de filmes, o trabalho de pesquisa foi muito bom, pois alguns diálogos proferidos na dramaturgia, foram cuidadosamente escolhidos para amalgamar-se perfeitamente à parte musical e com ênfase nas letras das canções dos Beatles. Nesse sentido, diversos sentimentos são expressos, a envolver o medo, angústia e depressão, em contraste com a esperança, o espírito igualitário e fraternal e sobretudo, o amor. 
 
Cenas sensacionais a envolver a atuação de atores como: Milton Berle, George Raft, Dana Andrews, Richard Burton, James Cagney, George Sanders, Farley Granger, Richard Conte e James Mason, entre muitos outros, são significativas. 
Só para citar duas cenas marcantes: o ator, James Mason a interpretar o Marechal de Campo, Erwin Rommel (filme: “The Desert Fox”/“The Story of Rommel”, de 1951 e dirigido por Henry Hathaway), a enfrentar a fúria de Adolf Hitler, é uma cena para tirar o fôlego. 
Outra bem forte, embora bastante carregada pelo ufanismo norte-americano, mostra o ator, Dana Andrews a enfrentar a arbitrariedade de um interrogatório mediado por um tribunal de exceção nipônico (e tirânico), com extrema força, ao caracterizar um desabafo, após o personagem defendido por Dana Andrews e os seus homens, prisioneiros de guerra, ser torturados cruelmente e a seguir, condenados à execução sumária (filme: “The Purple Heart”-“Coração Púrpura”, de 1944, dirigido por Lewis Milestone). 
 
Há também a inserção de cenas mais amenas de filmes, a mostrar soldados a passar alguns momentos românticos com as suas respectivas namoradas ou esposas, antes de partir para o front  e caracterizações das pessoas comuns a receber as notícias da guerra, sob apreensão. E também a inclusão de cenas a mostrar o esforço das mulheres no conflito, a trabalhar em fábricas de munição ou a atuar como enfermeiras em postos médicos no front. 
 
Isso sem deixar de mencionar o lado mais discutível em torno da mulher como objeto sexual, visto que as feministas tem razão em reclamar, no entanto, a indústria da sensualidade gráfica trabalhou a todo vapor, com a produção de fotos para ilustrar todo o tipo de material enviado aos soldados, com as imagens sensuais das ditas, “Pìn Ups girls” a fornecer um alento aos soldados, que viveram dias difíceis no inferno do front.
Outro acréscimo muito interessante, foi mediante cenas a apresentar atores famosos que alistaram-se nas forças armadas na vida real, casos de James Stewart, Tyrone Power, Dana Andrews, entre outros, e muito interessante, ufanismo e patriotada à parte, algumas cenas deixaram uma imagem mais humanista, embora implícita, sobre os adversários que formavam o Eixo: alemães, italianos e japoneses.
 
Cenas com batalhas reais, extraídas de documentários, mostram momentos épicos do conflito, tais como a duríssima batalha de Al Alamein, onde os ingleses e os germânicos lutaram entre si e principalmente contra a adversidade desumana observada no deserto do norte da África, a impressionante batalha naval de Midway, no Oceano Pacífico e a mais famosa de todas, em torno do “Dia D”, quando os aliados invadiram a região da Normandia e começaram a expulsar os nazistas da França. 
 
Cenas extraídas de documentários a mostrar os maiores mandatários na ocasião, como Roosevelt (Harry S. Truman, assumiu a presidência norte-americana quando Roosevelt faleceu pouco antes do final da guerra); Churchill, De Gaulle, Mussolini, Adolf Hitler e o imperador japonês, Hirohito, além de militares como o general Patton (norte-americano), o marechal de campo Montgomery (britânico) e o também marechal de campo, Erwin Rommel (alemão), além de outras personalidades que direta ou indiretamente estiveram ligadas ao conflito, aparecem.
Sobre a parte mais musical, Rock e contracultural dessa obra, a música sem dúvida é o elemento que faz o elo a estabelecer o contraste entre o horror da guerra e a proposta pacifista em torno da construção de um mundo fraternal movido pela paz. A música dos Beatles dá voz a construir tal ode à meta em torno de um mundo regido pelos signos de paz & amor. 
 
A ideia inicial de Tony Palmer, foi usar as gravações originais dos Beatles, no entanto, com a cifra exorbitante cobrada por parte da editora, foi óbvio que esse desejo inicial foi descartado. Acionou-se então o “plano B”, com a motivação de se convidar diversos músicos e cantores para regravar o material e aí, certamente as taxas cobradas pela editora, caíram significativamente, mas por outro lado, certamente que a produção arcou com um custo alto para bancar a gravação e mixagem desse material e também em relação ao cachet dos artistas escalados para cumprir tal tarefa. Deduzo o óbvio, ou seja, a redução do gasto, propiciou a solução adotada pela produção.
 
O que observo sobre a trilha foi que o arranjo das diversas canções selecionadas não foi modificado de uma forma radical em relação ao original gravado pelos Beatles. De uma forma geral, respeitou-se a sonoridade gravada pela banda, com pequenas modificações sutis, a destacar alguma mudança de interpretação ou em alguma passagem,  inclusive ligeiras mudanças de palavras nas letras, para realçar alguma cena do filme, mas é preciso prestar muita atenção, pois realmente é muito obscuro.
Sobre as canções selecionadas, ao se considerar que a obra dos Beatles é recheada por sucessos, mas sobretudo por grandes músicas no aspecto artístico, é sempre muito confortável montar qualquer lista de canções dos Beatles, para qualquer finalidade a envolver uma trilha sonora para compor um audiovisual; espetáculo teatral, ballet, ou qualquer outro tipo de expressão artística, com a certeza de que vai enriquecer o trabalho. Não significa dizer que a música por si só garanta tudo, no entanto, vide a aventura equivocada do filme: “Sgtº Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado no ano de 1978, e que redundou em fracasso, porém, mesmo assim, certamente que a música composta pelo Fab Four, amenizou o fiasco, nesse caso citado.
 
Em relação a este filme/documentário, é claro que o cancioneiro beatle caiu como uma luva para reforçar a intenção de Tony Palmer. As canções que foram utilizadas são as seguintes: “Magical Mystery Tour”, “Lucy in The Sky With Diamonds”, “Golden Slumbers”/“Carry That Weight”, “I Am The Walrus”, “She’s Leaving Home”, “Lovely Rita”, “When I’m Sixty-Four”, “Get Back”, “Let it Be”, “Help”, “With a Little Help From My Friends”, “Nowhere Man”, “Michelle”, “We Can Work It Out”, “The Fool on The Hill”, “Maxwell’s Silver Hammer”, “Hey Jude”, “Polythene Pan”, “Sun King”, “Getting Better”, “The Long and Winding Road”, “Yestarday”, “Because”, “Strawberry Fields Forever”, “A Day in The Life”, “Come Togheter”, “You Never Give me Your Money” e “The End”, ou seja, já que o filme mostra imagens de guerra, reais e dramatúrgicas, os Beatles forneceram um arsenal pesado para derrotar qualquer oponente.
  
E sobre os artistas convidados para tocar e cantar, também configurou-se em um batalhão fortíssimo de apoio. Veja a lista de quem cantou: Elton John, Keith Moon, Ambrosia, Bee Gees, Leo Sayer, Brian Ferry, Roy Wood, Rod Stewart, David Essex, Jeff Lyney, Lynsey De Paul, Richard Cocciante, Helen Reddy, The Four Seasons, Frankie Laine, The Brothers Johnson, Status Quo, Henry Gross, Peter Gabriel, Frankie Valli, Tina Turner, Wil Malone, Lou Reizner. E quem tocou: Nicky Hopkins, Les Hurdle, Ronnie Verrell. 
Além do apoio orquestral da Orquestra Sinfônica de Londres, sob as batutas de Harry Rabinowitz e David Meashaw. Wil Malone escreveu arranjos. Lógico que outros músicos participaram, porém não receberam crédito. A começar por algumas bandas acima citadas, cujos músicos não foram descritos individualmente.
É bom destacar que a versão de Lucy in The Sky With Diamonds, com Elton John, teve uma figura disfarçada a tocar guitarra. Sob o pseudônimo: “Doutor Winston O’Boggie”, ninguém menos que John Lennon foi quem atuou ao gravar.
 
A reação da crítica ao filme, foi um massacre, infelizmente. Compreensível, a moda comportamental na Inglaterra, ao final de 1976, e durante o ano de 1977 em diante, estabeleceu o vilipêndio sumário aos ideais pacifistas propostos pelo movimento hippie, portanto, configurou-se um momento péssimo para falar-se em “Peace & Love” e por conseguinte, faltou essa percepção da parte dos produtores do filme, sobre o que a opinião pública estava a pensar na época em que o filme foi lançado. O público não respondeu a contento e rapidamente o filme saiu de cartaz no circuito comercial e perambulou por salas menores de cine clubes, além de participar de festivais com pequeno porte, visto que em Cannes, ele não competiu entre os grandes, ao ser exibido em mostra paralela, apenas. Posteriormente, foi exibido pela TV, muito modestamente. 
A sua trilha sonora no entanto, despertou a atenção. Algumas canções tornaram-se sucesso para os artistas que as gravaram, caso de Elton John que lançou, “Lucy in The Sky With Diamonds”, como single seu e fez muito sucesso. Rod Stewart também explorou bem a sua interpretação para “Get Back”, assim como o grupo, Ambrosia, que fez sucesso com a sua interpretação para “Magical Mystery Tour” e Frankie Laine com “Maxwell’s Silver Hammer”.
 
Demorou, no entanto, para a trilha do filme sair em LP, o que somente veio a ocorrer em 1979. No entanto, quando a transição para o formato do Compact Disc surgiu nos anos oitenta, o álbum não foi lançado imediatamente e na verdade, isso demorou anos para acontecer, visto que apenas em 1996, veio a se concretizar. 
Em termos de vendas para o consumidor caseiro, este filme não foi lançado em cópia oficial nos formatos VHS, tampouco DVD/Blue-Ray, e dessa forma, somente existe disponível no mercado, sob cópias piratas para a comercialização. E nos portais da Internet, encontra-se com facilidade no YouTube, em versão na íntegra, ainda bem.
 
Foi produzido por Sanford Lieberson e Martin J. Machat. Edição a cargo de Colin Berwick e Susan Winslow e direção de Tony Palmer, embora creditada a Susan Winslow, conforme já comentei anteriormente. Foi lançado em dezembro de 1976.
Em suma, esta obra talvez não agrade muitas pessoas, no entanto, em meu caso, que sou um apaixonado pela obra dos Beatles, entusiasta da contracultura sessentista, cinéfilo, fã confesso da produção cinematográfica trintista/quarentista/cinquentista, muito interessado em história e também por conta do conflito a envolver a Segunda Guerra Mundial, tal obra agrada-me como peça cinematográfica a misturar tais elementos de meu apreço. 
 
Se o leitor considerar não se identificar com nenhum item desses que eu citei acima, no mínimo, eu creio que valha a pena assistir pela curiosidade em torno de uma peça que hoje em dia é considerada como um documento, talvez ingênuo, mas certamente bem intencionado em mais uma vez usar o Rock como ferramenta, a provocar questionamentos de ordem sociocultural e sobretudo, comportamental.
 
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", em seu volume III e está disponível para a leitura a partir da página 149.

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