Esta resenha parte do pressuposto de que um novo livro escrito pelo jornalista e escritor, Joel Macedo, já pode ser considerado bom, mesmo antes que tenhamos o prazer de lê-lo. Trata-se de um exagero de minha parte porque sou fã do autor e da sua trajetória? De maneira alguma, ao se levar em conta que após ler a última palavra escrita e fechar a capa, do livro: "1961 - uma novela na era Kennedy", a excitação mental proporcionada pela leitura se mostrou tremenda no meu caso em particular, ao ponto de eu ficar absolutamente convencido de que o autor revelou mais uma faceta da sua arte literária, ao se provar também como um roteirista hábil, por usar as técnicas da construção de uma novela bem alinhavada (no qual até o folhetim clássico se fez presente de certa forma), para construir uma história boa sob o ponto de vista humano e acrescida com alto embasamento didático nas inúmeras entrelinhas planejadas por ele. E ao mesmo tempo a trabalhar com o aspecto da nobreza, no sentido do forte apelo a marcar firme posição em torno dos seus mais altos ideais pessoais de vida e dos quais eu compartilho, aliás.
Sob o ponto de vista da análise histórica e sociológica (com forte aprofundamento no aspecto cultural e filosófico, também), a tese formulada pelo autor defende a ideia de que o ano de 1961 foi emblemático para a consolidação de um estopim, no sentido de que teve o poder natural de se revelar como um catalisador de diversas vertentes de ideias represadas individualmente e portanto, prontas a provocar a grande explosão libertária sessentista.
A construção das personagens e como elas transitam pelo arco narrativo se mostra muito interessante, no sentido de que o autor contemplou com muita assertividade as técnicas de redação ao ter criado uma história humana plausível a grosso modo e dramática ao ponto de garantir emoção o tempo todo em torno das personagens principais, em meio aos seus conflitos sócio-familiares e ao mesmo tempo, cada personagem representa através de suas respectivas personalidades, as diversas facetas pelas quais o autor quis colocar em discussão as suas convicções e dessa forma poder usá-las mediante uma força magnífica de expressão, para expor os seus sonhos e também os seus temores mais terríveis em relação às mazelas surgidas ao longo da história da humanidade como contraponto.
Indo além, nesta obra, Joel Macedo fez uma exposição riquíssima através da multiplicidade de informações que disponibilizou através de suas personagens, para apresentar aos leitores as diversas nuances do melhor do ideal fraternal através dos campos da filosofia, história, sociologia, espiritualidade, psicologia, psicanálise, ciências sociais, política, ideais libertários, arte engajada, cultura & contracultura e tudo isso a convergir para um único ideal superior, fruto dessa amálgama de tendências de pensamento e sensações que culminou com a formação do movimento hippie da década de sessenta.
Há um romantização heroica, é bem verdade, da personagem central, o filósofo Shimmon, que na história se apresenta como um professor universitário judeu alemão e de orientação progressista, perseguido pelo fascismo italiano dos anos vinte e inevitavelmente pelo nazismo alemão nos anos trinta, ao ponto dele haver amargado um longo período de cárcere e maus-tratos em um campo de concentração (Buchenwald). E a história deixa claro que nem pesou exatamente o fato dele ser judeu, mas sim por ser um intelectual progressista, para potencializar o seu martírio pessoal, o que é ressaltado na narrativa para dar vazão maior às ideias das quais ele professava com firme convicção.
No entanto, essa romantização da personagem é vital para a construção da história, no sentido de que tudo o que ele cita, faz todo o sentido e mais um ponto, este a se tratar de uma mera dedução minha como leitor e resenhista, deixo claro, quando ficou aguçado na minha percepção de que neste caso se trata do próprio alter ego do autor em ação, ao colocar para fora toda a sua cultura pessoal avassaladora em favor do seu grito libertário por um mundo melhor.
Essa tendência passou igualmente às demais personagens mais próximas que gravitaram em torno de Shimmon, pois todas também carregam uma forte carga de informações muito pertinentes ao raciocínio geral da obra e nessa medida, as afirmações que expressam em suas conexões pessoais, ao convergirem para um único ponto, são úteis para dar vazão à avalanche de referências propostas pelo autor.
Há um quê de influência de texto dramatúrgico nesse sentido, quando uma amarração de personagens feitas dessa forma, tem o poder da síntese, que parece ocasional mas que não é, simplesmente assim. Isto é, na vida real, é muito difícil você agrupar cinco ou seis amigos que conhecem por pura coincidência a nata da classe artística e intelectual em seus respectivos círculos sociais e todos se colocarem dispostos a compartilhar tais contatos com a absoluta normalidade, ao apresentar ou citar tais relações uns aos outros na mesa de um bar ou em meio a um jantar residencial, porém, esse recurso caiu como uma luva para o autor costurar todas as referências que desejou citar e dessa forma, foi muito feliz o recurso que usou, pois tornou lúdico fazer tantas citações incríveis a usar as personagens em diálogos e situações totalmente casuais, como se fosse algo muito natural. Portanto, a verossimilhança é irrelevante neste aspecto.
E certamente, assim evitou usar o recurso tradicional da bibliografia, mediante notas de rodapé (e acredite, são tantas informações preciosas disponibilizadas que o leitor fatalmente vai ler o romance e depois fazer buscas para conhecer a vida e obra de tantos artistas, intelectuais, e militantes citados).
Mais um dado que é muito valoroso nesta obra de Joel Macedo e como já mencionei antes: nada do que é citado, foi a esmo. Toda essa gama de informações nesse sentido, converge para nos fazer crer que para que a contracultura explodisse, muitas obras e linhas de pensamento tiveram que ocorrer separadamente para depois poder precipitar uma canalização explosiva. É um fato, um rio possui muitos afluentes na sua somatória, até ficar enfim encorpado. E metáfora a parte, segundo Joel, o ponto que iniciou essa ebulição contracultural total, foi o ano de 1961.
Não vou cometer o pecado de contar a história, mesmo porque, o objetivo da resenha é realçar a qualidade da obra e deixar implícito o convite para que o leitor leia a obra na íntegra e descubra a sua complexidade por si só, todavia, cabe um resumo bem superficial para se entender a síntese dessa construção do romance.
Nesses termos, revelo que Shimmon é um professor de filosofia, alemão de nascimento e judeu. Conviveu e trabalhou com grandes filósofos contemporâneos citados (Antonio Gramsci e Herbert Marcuse entre outros), que conheceu na vida acadêmica e se apaixonou por uma jovem de origem romena ligada ao psicanalista, Wilhelm Reich, quando ambos se envolveram no ousado projeto "Sex-Pol" perpetrado por esse estudioso.
Nem é preciso acrescentar que com a chegada do chanceler Adolf Hitler ao poder na Alemanha em 1933, projetos como esse e outros tantos gerados por agentes intelectuais libertários (a escola de Bauhaus, por exemplo), foram duramente reprimidos e todos os intelectuais vislumbraram tempos muito sombrios em princípio, mas como sabemos, a escalada de horror do nazismo só piorou e assim, um casal de intelectuais avant-garde, ele, judeu e ela, uma romena de origem cigana, não teria esperança de sobreviver nesse ambiente altamente tóxico.
A moça engravida e em seguida resolve seguir Wilhelm Reich em seu exílio forçado e assim ela deixa a filha recém-nascida com Shimmon. Este por sua vez abriga uma moça letoniana a cuidar sozinha de seu filho pequeno e quando o nazismo se tornara um inferno insuportável, ele resolve salvar a filha e o menino estoniano que criara por pouco tempo, ao designar a um casal de armênios tal tarefa, por vislumbrar que eles reuniam meios para fugir em segurança, imediatamente para os Estados Unidos. Ele mesmo sobrevive por milagre ao horror do campo de concentração e chega na América em 1961 para reencontrar os filhos, então já adultos formados e bem "americanizados" pelos bons e maus aspectos dessa aculturação yankee.
É em torno dessa chegada à Nova York de 1961, que ele enfrenta esse dilema triplo, ou seja: construir se possível, uma relação boa com esses filhos que não via desde 1938, sobreviver em um país novo e sobretudo, dar sentido motivacional à sua vida, agora no avançar da sua realidade sexagenária.
É nesse ponto que o autor construiu uma deliciosa licença poética que se torna frenética, aliás, no sentido de que Shimmon se adapta de uma maneira instantânea ao país e também à cidade de Nova York e absorto nessa atmosfera cosmopolita e recheada por ideias estimulantes e gente interessante demais (e aos montes por sinal), que ele encontra a motivação para se sentir produtivo, mesmo porque, por natural reciprocidade, as pessoas se encantam com a sua sabedoria mediante uma carga intelectual formatada solidamente como "schollar" europeu de enorme bagagem intelectual, ativista político e sobrevivente do horror nazista, e dessa maneira, um mundo novo de possibilidades se abre para ele.
Esse é o âmago do romance, mas o leitor vai descobrir muito mais nas citações que são feitas ao borbotões, com uma carga de sapiência e ao mesmo tempo, sob a ação da deliciosa intenção libertária, que precipita uma certeira empolgação com a leitura, e a tendência é de se relevar algumas inverossimilhanças cometidas, pois haverá de entender que estas foram usadas de forma romântica, na verdade.
Nesse campo, por exemplo, Shimmon conhece Bob Dylan poucos momentos antes dele iniciar a sua trajetória de fama e eles se tornam tão amigos que chega-se ao ponto de descrever uma cena na qual Dylan teve a inspiração para compor o seu clássico: "Blowin' in the Wind" mediante uma conversa informal que teve com ele, Shimmon.
Por outro lado, o filósofo alemão encanta a então namorada de Dylan, Suze Rotolo, por ele ter sido amigo de Antonio Gramsci e ela, italiana de origem e ferrenha simpatizante dos partigianos, ter adquirido um sentimento de asco natural à figura de Benito Mussolini.
Por ênfase nessa amizade com Dylan, o autor focou esforços para descrever a incipiente, porém emocionante cena "Folk" de Nova York dessa época, com detalhes apaixonantes. Muitos outros artistas contemporâneos de Dylan e veteranos ultra valorosos do peso de um Woody Guthrie, são citados. Shimmon vai assistir diversas apresentações de artistas dessa vertente, com farta citação de casas noturnas, bares e restaurantes de Nova York, onde essa cena floresceu na cidade. Mas há também uma generosa citação das movimentações em torno das cenas do Jazz, da música caribenha, do Blues e do Rock'n' Roll em seus primórdios.
O mundo das artes plásticas, do cinema e até do "stand-up comedy", quando o comediante Lenny Bruce é citado (explosivo como ele só em seu humor de forte tendência sócio-política), são referências anotadas. E livros, sim, muitos autores e obras, das mais famosas a outras mais obscuras, porém muito valorosas como: "Stranger in a Strange Land", romance com teor "Sci-Fi" escrito por Robert A. Heinlein.
Shimmon arruma uma namorada bem mais jovem do que ele e nesse ponto da novela o elemento do racismo entra com tudo na narrativa, pois se trata de uma bela moça negra e artista, envolvida com a dança. Ela é ex-esposa de um militante que andou junto com Malcolm X, e nesse ponto o autor deixa claro que respeita, mas não se entusiasma com as ideias dos "Panteras Negras" e o islamismo adotado como força de expressão de seu ativismo político mais agressivo.
Mas por outro lado, usa tal personagem da namorada negra (chamada como: Crisca), para falar do ballet e do teatro libertário do grupo, "Living Theatre" e ao dar brecha para introduzir na narrativa um notável ativista pelos direitos civis e extraordinário agente contra o racismo estrutural na formação sociopolítica e cultural dos Estados Unidos, ou seja, o pastor Martin Luther King.
Ora, no desenrolar da história, Shimon foi amigo de Herbert Marcuse, conheceu Bob Dylan antes da fama e agora se tornou amigo de Martin Luther King, inclusive a receber convite para participar da famosa caravana "Freedom Riders", promovida por M.L. King com o intuito de pressionar o governo norte-americano a mudar algumas leis cruéis que só postergavam o segregacionismo vergonhoso naquela sociedade.
M.L. King também se impressiona pelo fato de que Shimmon fora companheiro de infortúnio no campo de concentração nazista do pastor protestante, Dietrich Bonhoeffer, este, martirizado apenas por ter se recusado a colocar o famigerado livro "Mein Kampf" no púlpito de sua igreja, no lugar da Bíblia, por ordem de um oficial nazista.
Há igualmente a contradição entre os seus filhos, algo insinuado bem no início da obra ("como assim o papai vai se hospedar em um bairro de artistas boêmios e vagabundos como o Greenwich Village e também circular em um bairro de negros como Harlem?"), e tal conflito é mais esmiuçado no decorrer dos capítulos posteriores, pois a filha (que de fato era sua, biologicamente a falar), se mostra muito avançada para o seu tempo e não só entende o espírito libertário, como se apresenta fascinada pela história de vida do seu pai. Infelizmente, o filho postiço, no contraponto, se coloca como um orgulhoso cidadão norte-americano conservador e convicto de sua condição de se arvorar como um ser "superior", ante a sua crença como supremacista branco. Um duro golpe para uma alma progressista da parte de Shimmon.
A sua filha morava no famoso edifício Dakota, onde por anos moraram estrelas de cinema do porte de Boris Karloff, Lauren Baccall, Lilian Gish e Judy Garland (entre muitos outros), além do polêmico escritor e perseguido pelo fanático senador McCarthy, Truman Capote (anos depois ali nesse mesmo prédio foi filmado o clássico do cinema de terror: "O Bebê de Rosemary", do diretor Roman Polanski e posteriormente, John Lennon morou nesse mesmo endereço em boa parte dos anos setenta e morreu assassinado na sua porta em 1980).
Em um animado jantar oferecido pela filha e sua namorada (nesse ponto, lembrei-me do filme: "The Children's Hour", "Infâmia" em português, com Shirley MacLaine e Audrey Hepburn, sob a direção do grande William Wyler, que retratou o tabu que era o lesbianismo na sociedade norte-americana de então e curiosamente lançado no ano de 1961), esta companheira de sua filha (Christine), uma psicanalista foi quem levou uma amiga para jantar, a feminista Betty Friedan, uma celebridade no campo do ativismo feminista.
É citado que Athina, companheira do amigo de Shimmon desde a Alemanha (Schumann), é amiga em comum de Crisca, a namorada de Shimmon e de uma artista plástica nipônica ligada à John Cage, uma tal de Yoko Ono e nesse ponto me ocorreu: esta menina grega, seria filha de um certo milionário (Onassis)?
Jack Kerouac, o genial escritor da beat generation, um autêntico "pé na estrada" e sem usar a pontuação para lhe amarrar em nada, só não foi jantar com essa turma em torno de Shimmon por ter tido outro compromisso previamente acertado para tal noite. Já no caso de Bob Dylan, além de prosear animadamente com todos, o então futuro astro tocou violão para entreter os partícipes dessa reunião formada por tanta gente talentosa e inteligente, sentada ali na mesma mesa.
Shimmon, um filósofo alemão, judeu convertido ao cristianismo de viés protestante, agora ganhou um grande propósito para a sua vida sexagenária. Mais do que um agente utilíssimo pela sua erudição, haveria de ser um farol de sabedoria a ajudar os seus pares idealistas na construção de um sonho de paz & amor que se insinuara naquele ano de 1961.
Mesmo com a guerra fria em curso, Vietnã atravessado na garganta, hostilidade aberta contra Cuba e que tais, o pior parecia ter passado, com o abominável nazi-fascismo derrotado, e ventos de esperança após os anos de chumbo do macartismo a dar sinal de arrefecimento. Kennedy, um político moderado na presidência norte-americana pareceu sinalizar tempos melhores e sobretudo, a movimentação artística efervescera com uma força avassaladora.
Isso fica claro no discurso proferido por Shimmon na mesa de jantar, quando ele evocou o ideal de Jesus Cristo em termos igualitários para todos e reforçado pelo libelo de esperança pela igualdade racial na voz de sua namorada, Crisca.
Ou seja, Joel Macedo deu o seu recado com propriedade.
Por fim, eu recomendo muito a leitura de "1961" - uma novela na era Kennedy, que agrada na sua trama como romance, sobretudo pelo cabedal imenso de citações das mais nobres e por atingir o seu objetivo maior com galhardia, isto é, ao propor uma reflexão profunda sobre a possibilidade de chegarmos enfim a algum dia no qual viveremos em um mundo verdadeiramente fraterno.
Sobre Joel Macedo:
Jornalista consagrado, foi um dos pioneiros da abordagem contracultural no Brasil, ao participar da publicação "Rolling Stone" em sua versão original brasileira do início dos anos setenta. Escritor de muitos livros de sucesso, é também um requisitado tradutor de obras de escritores internacionais e ativista cultural incansável.
Para adquirir o livro, eis os contatos diretos com o autor:
Instagram:
@joelmacbird
email:
joelmacbird47@gmail.com
Capa (arte e lay-out): Gabriel Fonseca (inspirado na capa do LP Freewheelin' de Bob Dylan)
Diagramação e arte: Vitor Coelho
Revisão: Ana Clara Teixeira
Lançado em 2023, pela editora JMF
Leia também neste Blog, a resenha de uma outra obra do escritor Joel Macedo: "Tatuagem", que eu igualmente recomendo:
http://luiz-domingues.blogspot.com/2019/04/livro-tatuagem-historias-de-uma-geracao.html