Muitas
considerações são cabíveis quando se analisa o filme: Magical Mystery Tour, dos
Beatles. O primeiro ponto é destacar o conteúdo musical do filme, em torno das
canções especialmente criadas para compor a sua trilha. O segundo ponto, foi a
opção de seguir a tendência psicodélica em voga, iniciada desde o lançamento do
LP “Revolver”, reforçada em muito pelo disco posterior, o LP “Sgtº Pepper’s
Lonely Hearts Club Band”, tanto em termos musicais, quanto na proposta
cinematográfica.
Ainda a ver com este segundo tópico, acrescenta-se um fator
inusitado, pois o LP Sgtº Pepper’s mal havia sido lançado e a estabelecer um
sucesso estrondoso, portanto, o mais óbvio teria sido lançar uma peça cinematográfica
a incrementar ainda mais esse lançamento, mas a banda optou por um material
inédito, desassociado desse citado LP, ao demonstrar arrojo em arriscar algo
novo em seguida, como se fosse uma estratégia ousada de um pugilista que desfere
um segundo golpe em seu oponente, que mal curvou-se ante o golpe anterior que
fora fortíssimo.
O terceiro aspecto diz respeito à peça cinematográfica em si.
Ao tratar-se de um telemovie completamente baseado no conceito da arte nonsense,
a banda arriscou muito, mas ao mesmo tempo, foi arrojada em mergulhar sem medo
em uma peça psicodélica total, capaz de suscitar as mais variadas reações (inclusive
antagônicas, certamente), no sentido do amor e ódio absoluto ser despertado da
parte das pessoas em torno do filme.
O quarto aspecto trata das relações
internas da banda, quando é público e notório que o clima entre os componentes
estava a deteriorar-se já fazia um tempo e nesse aspecto, a ideia sobre a banda
produzir o filme, foi da parte de Paul McCartney, com John e George bastante
reticentes e apenas Ringo a demonstrar uma comedida animação pelo projeto.
Portanto, é inegável que por não ter sido unânime a decisão de empreender tal ideia,
o entusiasmo em torno do projeto foi prejudicado, mesmo que veladamente e isso
provocou reações posteriores entre os companheiros.
Sob o ponto
de vista externo, é preciso ressaltar que a crítica foi impiedosa. A rigor,
tirante o momento inicial da carreira quando nenhum jornalista especializado teve
noção de onde a banda poderia chegar e render artisticamente, e daí algumas
críticas apresentaram-se de uma forma um tanto quanto desdenhosas, contudo
observado sob uma pequena monta. Pois nessa empreitada cinematográfica de 1967,
ocorreu que a banda crescera a atingir um patamar inimaginável, quando
rapidamente alcançou o Olimpo do mundo artístico, habitado por poucos, como
Elvis Presley e Frank Sinatra entre outros e nesses termos, não apenas pela
popularidade alcançada, sob um patamar absurdo, mas principalmente pela sua excelência
artística, acostumou-se a ser efusivamente elogiada.
Principalmente após 1966,
quando a banda entrou em outro nível de criação e ao abandonar o Rock básico
com pitadas de Blues, R’n’B e Folk Music, partiu para a experimentação total,
via Rock psicodélico e dessa forma, tornou-se absoluta sob o ponto de vista da criação
artística. Portanto, mesmo que os seus filmes anteriores (“A Hard Day’s Night”
e “Help”), tenham recebido críticas, na verdade, estas objeções não foram
inteiramente dirigidas à banda, mas aos responsáveis pelo roteiro, produção
& direção, portanto, há a boa ressalva de que nem a banda em si, e nem
mesmo os seus componentes, individualmente, poderiam ter sido responsabilizados
por eventuais deslizes e na verdade, críticas à parte, os dois filmes citados, contém
muitos méritos.
No entanto, neste caso de “Magical Mystery Tour”, por ter sido
uma produção concebida pelos Beatles e mais particularmente da parte de Paul
McCartney, foi na prática um resultado admitido como um fracasso, algo inédito
na carreira vitoriosa dos Beatles até aquele ponto da sua carreira.
Então o
filme é uma porcaria e as músicas, idem? É claro que não! E nesse caso, cabe
mais uma análise: em primeiro lugar, a questão musical é impecável. As músicas
compostas para compor essa trilha sonora, são ótimas, mesmo o tema
instrumental, “Flying”, que é considerada uma peça exótica dentro da obra dos Beatles. Não há o que dizer sobre uma peça incrivelmente psicodélica, como “I’m The Walrus”,
canções doces como: “The Fool on the Hill” e “Your Mother Should Know”, a
mística “Blue Jay Way” e a euforia Rocker contida em torno da canção título, “Magical
Mystery Tour”.
Além dessas, existe a
inclusão de “Hello Goodbye” para fazer o “BG” (“background” ou música de fundo,
no entendimento em português), dos créditos finais e também, “She Loves You” e “All
My Loving”, em versões alternativas. Isso para falar exclusivamente do material
dos Beatles, pois há também a presença da música: “Death Cab For Cutie”,
interpretada pela banda britânica, “Bonzo Dog Doo-Daa Band”, que participa do
filme justamente na parte final quando toca para que a stripper, Jan Carson
realize o seu número. Cabe dizer que tal banda fez uma relativa fama no Reino
Unido por sua proposta satírica. E também o tema incidental, “Jessie’s Dream”,
que acompanha literalmente o sonho da personagem, Jessie, em determinada cena
do filme.
Sobre o
filme, propriamente dito, cabe também ressaltar que não existe uma história
tradicional, mas apenas um amontoado de situações a caracterizar um conjunto de
sketches, dispostas juntas, sem obedecer um roteiro oficial. Portanto, aos
olhos do grande público, notadamente os conservadores, um filme assim,
tranquilamente é considerado como: “sem pé, nem cabeça”, uma expressão típica,
usada para definir algo que não compreende-se e assim, tal termo é usado como
uma espécie de escape para não deixar transparecer a ignorância exposta para se interpretar
algo abstrato, ao depreciar-se a peça artística em sua totalidade.
Na contrapartida, nem todo
filme avant-garde significa ser genial por extensão natural. De fato, se há
alguma coisa a observar-se no sentido negativo, não é possível deixar de
mencionar que há um excesso de piadas internas entre os quatro componentes dos
Beatles, o que para eles quatro, pode ter sido hilário no frescor do momento da filmagem,
mas ao acrescentar tal tipo de gracejos ao filme, foi algo inconveniente. E
outro ponto negativo, é certamente sobre a atuação dos quatro Beatles, como
atores. Pois com a exceção de Ringo Starr, que realmente tinha uma certo traquejo
para a interpretação (e de fato, fora o protagonista no filme anterior, “Help”
e no futuro, pós-Beatles, participaria de diversos filmes), os demais deixaram
bastante a desejar. John Lennon em algumas cenas, deixou o seu habitual
sarcasmo falar mais alto e até passa pela missão de interpretar, mais ou menos
incólume, mas Paul McCartney decididamente não nasceu para ser ator e George Harrison
então, parece engessado, a parecer o menino mais tímido da sala de aula que
precisa cumprir o martírio de atuar na peça teatral de fim de ano da escola,
sob a ameaça de ser suspenso ou repetir de ano.
Sendo assim,
existe algum mérito nessa obra enquanto peça cinematográfica, exclusivamente?
Bem, a resposta é multifacetada. Se depender dos fãs dos Beatles à época, e até
hoje em dia, a considerar que temos duas ou até três gerações de fãs que não
eram nascidos na década de sessenta, obviamente, que a resposta será
afirmativa. Sob o ponto de vista da imprensa da ocasião, foi um fiasco,
todavia, ao considerar que muitos torciam para falar mal dos Beatles por puro
preconceito e só aguardavam uma motivação para poder destilar o seu veneno, portanto,
releva-se a opinião comprometida pelo despeito, com a devida isenção aos que
teceram críticas justas.
E ao pensar que o filme já contempla mais de cinquenta
anos de seu lançamento (cinquenta e dois, ao considerar a data em que escrevi
esta resenha, 1967-2019), já faz tempo que críticos mais modernos pensam
diferente e neste caso, atribuem ao filme uma melhor compreensão do seu caráter
anárquico, no bom sentido do termo e a conter certas características em torno
do teatro do absurdo; realismo fantástico, do aspecto onírico, da psicodelia
sessentista pura, no sentido mais lisérgico possível, no conceito do nonsense a
esbarrar no surrealismo e dadaísmo.
Ora, tudo isso? Então trata-se de uma obra
genial, algo digno do gênio de um diretor de cinema do quilate de Luis Buñuel? Não, muito longe desse patamar, no entanto, é
sim uma interessante peça inspirada no surrealismo e largamente amparada por
música da melhor qualidade.
Já afirmei
que não existe uma história tradicional com a narrativa a conter início, meio &
fim, mas existe um mote mínimo a justificar um esqueleto primordial.
Então, tudo inicia-se quando Ringo
Starr e a sua fictícia tia, Jessie (interpretada por Jessie Robins), compram
passagens para participar de uma excursão de ônibus. Tal aventura não terá um
destino definido, a constituir-se de uma surpresa para todos os seus
participantes, o que por si só, já mostra-se como algo inusitado. No entanto,
Ringo e a sua tia, além de diversos outros passageiros, a incluir os outros
componentes dos Beatles (inclusive com a presença de um dos roadies oficiais dos
Beatles, Mal Evans), e mais alguns personagens pitorescos, partem nessa viagem maluca, literalmente.
Nesse ínterim, um
grupo de “magos”, interpretados pelos quatro componentes dos Beatles (e Mal
Evans, também), manipulam a viagem através da sua “feitiçaria” e dessa forma, a
aventura torna-se surreal. É apenas isso, não tem mais história a ser comentada,
a não ser destacar algumas cenas, isoladamente.
Os demais
personagens, passageiros do ônibus, formam um grupo heterogêneo, com pessoas de
variadas idades e se não exatamente caricatas, a denotar veladamente um
exotismo digno de uma trupe circense, são no mínimo, estranhas. Na canção, “The
Fool on The Hill”, Paul fez o que pode para atuar como ator e é óbvio que a
direção para essa cena, foi forjada a pensar no conceito, “promo”, muito em
voga nos anos sessenta e que constituiu-se na encarnação anterior do que veio a
ser o “vídeoclipe”, um conceito mais moderno que iniciou-se na metade da década
posterior, anos setenta e que ficaria consagrado enfim na década de oitenta.
Neste caso, Paul McCartney a caminhar sobre uma colina, e em dado momento a
deslocar-se sob saltos tresloucados, a evocar o sentido da loucura e
veladamente dar a entender ser ele de fato, "o tolo da colina", citado pela canção, parece
algo realmente tolo se visto isoladamente, isso é compreensível.
A figura dos
guias da excursão, um casal, é bastante estereotipada, todavia, justifica-se enquanto
ironia ao costume considerado como uma prática de mau gosto da parte dos britânicos
menos abastados, a dita classe operária, a organizar excursões de final de
semana para visitar as praias inglesas. Preconceito e desdém à parte, devemos
levar em consideração que para o humor britânico, tradicionalmente sarcástico,
foi um escárnio típico a desdenhar da sua própria cultura.
Em determinada cena, onde os passageiros da excursão passam por um posto militar e estabelece-se uma
espécie de gincana a conter esportes ridículos, seria o tipo de piada que o
grupo humorístico, Monty Python exploraria à exaustão, em um futuro bem
próximo, quando iniciou a sua trajetória na TV britânica, através do programa, “Monty
Python’s Flying Circus”.
Paul faz um terceiro papel, ao interpretar um militar
a exercer uma função burocrática e o seu superior faz o gênero do militar linha
dura que expressa-se somente com gritos e palavras de ordem para todos,
inclusive os civis. Essa passagem é bastante destacada por alguns críticos, por
conter veladamente uma mensagem pacifista anti-guerra, um assunto muito em voga
em 1967, naturalmente.
Em outra
cena, uma autêntica corrida maluca é estabelecida com o ônibus a ser perseguido
por diversos carros em uma pista oval e com Ringo a dirigir o ônibus da
excursão. A seguir, as imagens tornam-se psicodélicas da paisagem pelo caminho e
o tema instrumental, “Flying”, embala essa flutuação lisérgica. Outras cenas
loucas vem a seguir e uma versão com harpa e outros instrumentos sinfônicos,
executa um sucesso antigo da banda, “All My Loving”, com essa roupagem não
usual.
Chega-se
então ao grande momento do filme, com a banda toda paramentada com um figurino
Hippie Chic, inspirado em motivações orientais e a executar a estupenda canção,
“I’m The Walrus”, uma das mais belas peças da psicodelia sessentista. Loucura
total com o corpo de figurantes a montar um pano de fundo a evocar a loucura,
com direito a pessoas a dançar em volta de um muro, inclusive policiais
britânicos típicos, com o seu chapéu característico e pessoas fantasiadas como
animais (entre eles, a figura do “Walrus”, que significa: "leão marinho" em português).
A cena do
jantar em que John Lennon (a interpretar um terceiro papel no filme, como um
garçom), serve a tia de Ringo, mediante uma pá agrícola cheia de macarrão (e ele não para de despejar sobre o seu prato), foi uma das mais criticadas pelos jornalistas
da época. Muitos anos antes do conceito sobre o “politicamente correto” ser
ventilado, tal cena foi considerada de mau gosto, por insinuar que uma mulher
obesa de meia idade seria uma relapsa, por comer daquela forma desenfreada. De
fato, loucura nonsense a parte, a cena tem mesmo essa menção desagradável.
Em outra
cena diurna, o ônibus para em um campo silvestre e os passageiros são convidados
a ingressar dentro de uma barraca de camping minúscula, que abrigaria no
máximo, duas pessoas, mas bem naquele tipo de piada muito usada em comédias dos
anos 1910 e 1920, nos primórdios do cinema mudo, eis que todos entram e vão parar
em um salão amplo, onde em uma tela é exibida uma série de imagens psicodélicas e em
tal ocasião, mostra-se a figura de George Harrison, sentado em posição de
lótus, típica para a meditação transcendental, a cantar a canção de sua autoria: “Blue Jay Way”. Música bonita demais, apesar de ser circunspecta, bem ao
estilo do temperamento de Harrison, é um momento bastante inspirador do filme.
Todos saem
novamente pela minúscula barraca e já a bordo do ônibus, é visto que esse
artefato é atropelado sem cerimônia pelo carro. Ora, se a intenção foi
estabelecer uma alegoria, como poderia ser interpretada tal cena? A destruição
do portal de onde entraram e saíram como o encerramento de um ciclo, ou, simplesmente
não quis significar nada?
Os magos
aparecem novamente e desta vez a sua intervenção envia o ônibus para um clube
com aspecto decadente. Uma canção com forte teor Folk, do cancioneiro dos anos
1920-1930 está a ser executada por uma banda (“Bonzo Dog Doo-Daa Band”, já
mencionada) e uma stripper (Jan Carson), faz o seu show sensual para a plateia.
John e George parecem os mais entusiasmados, em meio a outros homens. A cena é
picante para os padrões sessentistas e também foi alvo de reclamações na ocasião,
certamente.
Enfim, o
grande finale dá-se com os quatro Beatles a descer uma escadaria, a simular um
show na Broadway, paramentados com figurino de gala, a cantar: “Your Mother
Should Know”, uma bela balada com teor trintista. E tudo encerra-se em uma
farra final em clima de vídeoclipe.
Enfim,
observados méritos e deméritos, e tirante o fato de que sou um admirador
confesso dos Beatles; um apaixonado contumaz pela década de sessenta e
entusiasta da contracultura, no cômputo geral, digo que aprecio o filme de forma moderada, visto que eu reconheço que não se trata de nenhuma obra prima, pelo aspecto cinematográfico
(aliás, nenhum filme em que o grupo The Beatles participou, poderia ser assim
considerado, muito longe disso, aliás), no entanto, penso em tratar-se de um documento interessante
dentro da carreira da banda e para o Rock em geral.
Alguns
atores de apoio nessa produção: Ivo Cutler (como Buster Bloodvessel), Derek
Royle (como Jolly Jimmy Johnson, o guia da excursão), Mandy Weet (como Mandy
Winters, a guia feminina), Victor Spinetti (o sargento e este ator em questão, a cravar uma terceira participação em um filme com os Beatles), Nichola (como ele
mesmo, o menino), Maggie Wright (a estrela), e outros.
Sobre o
álbum com a trilha sonora, dois EP’s (compactos) a conter exclusivamente as
canções compostas pelos Beatles para o filme, foram lançados simultaneamente,
ainda em 1967. A seguir, houve o lançamento de um LP, a conter um bonito livreto
mediante a presença de fotos, extraídas de “frames & stills” do filme, e no
disco, com todas as canções da trilha, no lado A, e para preencher o lado B,
outras canções que somente foram lançadas anteriormente em singles (compactos),
casos de “Strawberry Fields Forever”, “Penny Lane”, “Baby, You’re a Rich Man”, ‘All
You Need is Love” e “Hello Goodbye” (esta última, foi executada no filme,
conforme eu já mencionei).
Esse formato de um LP cheio, só foi lançado no
Brasil por volta de 1976, de onde vem a minha cópia, inclusive. E no decorrer
dos anos posteriores, foi relançado muitas vezes com bônus e masterizações mais
modernas, à medida que a tecnologia do áudio avançou, isso sem contar com boxes
luxuosos a conter um Kit com CD, vinil, Fita VHS ou DVD e um Book portentoso a
conter fotos inéditas, camisetas, Bottoms e a réplica em miniatura do ônibus
etc.
O roteiro é
creditado à Paul McCartney e Mal Evans, ou seja, com todo o respeito à ambos e
no caso de Evans, ele não encontra-se mais entre nós, desde 1976, eles não
escreveram um roteiro, mas na realidade, um conjunto de sketches. E a direção
foi creditada aos quatro componentes dos Beatles e Bernard Knowles.
Foi lançado
em dezembro de 1967, na Inglaterra, por ocasião do natal.
Por conta
dos direitos autorais e no caso dos Beatles, tudo o que refere-se à sua obra é
muito blindado, é portanto muito difícil achar o filme em portais gratuitos de
visualização na Internet. Há uma possibilidade, mas não sei afirmar se será duradoura,
de assisti-lo na íntegra através do portal polonês, CDA.PL.
Esta resenha foi escrita para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", através do seu volume III e está disponibilizado para a leitura a partir da página 127.
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