O cinema, de uma maneira geral, costuma privilegiar a II Guerra Mundial, quando produz filmes sobre guerras do Século XX. Portanto, bem mais modesta, tanto entre os norteamericanos, quanto europeus, é a produção a enfocar a Primeira Guerra Mundial, como se esse conflito bélico terrível, que consumiu vidas; sofrimento e penúria social sem precedentes, fosse um evento menor na história.
Para início de conversa, essa guerra foi conhecida como "a guerra para acabar com todas as guerras", tamanha a amplitude de suas implicações geopolíticas. Um exemplo raro nesse sentido cinematográfico, deu-se através de uma produção norteamericana, relativamente modesta, dirigida pelo diretor britânico, Stanley Kubrick, e lançada em 1957.
Trata-se de "Paths of Glory" (em português, "Glória Feita de Sangue"), uma história baseada em fatos reais e que representa uma mácula na história do exército francês, e para ir além, uma vergonha que ultrapassa fronteiras e constrange qualquer corporação militar, seja de qual nacionalidade for. Baseado no livro homônimo, de Humphrey Cobb, lançado em 1935 (que aliás, não alcançou grande sucesso à época), os seus direitos foram adquiridos nos anos cinquenta, por uma módica quantia, e houve uma explicação para essa desvalorização : além do pouco sucesso do livro, uma tentativa para adaptá-lo ao teatro, também fracassara.
Entretanto, Kubrick tomou essa determinação para si, e mesmo ao saber que a história ali narrada mostrava-se polêmica, foi até o fim, para lançá-lo em 1957. A história passa-se em 1916, bem no meio do período onde a I Guerra Mundial ocorreu. Enquanto um batalhão francês enfrenta um duro embate contra os alemães no front, dois oficiais de alta patente travam um diálogo de gabinete, cujo teor, colocaria tais homens sob uma situação de alto risco.
O General-Chefe do Estado Maior, George Broulard (interpretado por Adolphe Menjou), um homem maquiavélico e arrogante, dá ordens para que o seu subordinado direto, o general de campo, Paulo Mireau (interpretado por George McReady), no sentido de que tal batalhão avance imediatamente contra as forças alemãs. Tal oficial subalterno, Mireau, contra-argumenta que seria uma estratégia muito arriscada pelas circunstâncias, e tenta demover o comandante dessa ordem, mas este o suborna, ao oferecer-lhe uma promoção.
Contaminado por essa oferta infame, Mireau vai ao front e dá a ordem do ataque, mesmo ao saber que dificilmente essa ação lograria êxito e pelo contrário, muitas vidas seriam sacrificadas inutilmente. Porém, inebriado pelos seus interesses pessoais, ele insiste na ordem, e enfurece o coronel Dax (interpretado por Kirk Douglas), que percebe ser uma ordem descabida e sem objetivo militar, mais a denotar ser uma loucura suicida.
Chega o período noturno e tudo fica ainda mais perigoso e absurdo. Mireau altera-se e chega a arrancar um soldado da trincheira e o jogar na mira dos alemães, para que alvejado, inevitavelmente, mexa com os brios dos soldados. É quando um batedor é enviado para análise e um outro arremessa uma granada, para matá-lo.
Ao promover esse evento para justificar o ataque, Mireau enfurece-se e ordena o avanço, mas Dax, usa do expediente do regimento interno, e recusa-se a dar ordem aos homens, e exige de seu superior, a ordem do Comando Maior, por escrito. Mireau ameaça abrir fogo contra todo o batalhão, mas Dax o impede, corajosamente.
Contudo, o episódio chega ao conhecimento da cúpula, com o General Broulard frustrado por ter o seu plano pessoal arruinado e dessa forma, não perde tempo e abre uma Corte Marcial, para visar julgar e condenar à morte, todo o batalhão, por covardia e deserção. O coronel Dax enlouquece, ao sentir que toda essa ação não passara de uma situação orquestrada, para visar usar a vida daqueles pobres soldados, apenas como um joguete de interesse pessoal a envolver dinheiro de suborno e política baixa. Como Dax também tinha formação como advogado em sua vida civil, ele em pessoa oferece-se para defender os seus homens, na Corte Marcial.
Com muito custo, ele consegue reduzir a sanha de Broulard e Mireau, e sob um acordo, isenta o batalhão inteiro de culpa, contudo, três homens são escolhidos para absorver essa infâmia, em forma de sacríficio. Dessa maneira, o tenente Roget (Wayne Morris), por ser comandante de um destacamento; Maurice Ferol (Timothy Carey); por ser considerado um "pária", e o recruta Arnaud (Joe Turkel), este último simplesmente escolhido mediante um sorteio aleatório, são os homens levados ao tribunal.
O julgamento dessa Corte Marcial é obviamente uma farsa e Dax, mesmo ao fazer uso de todos os seus recursos como advogado e muito indignado por ver a injustiça militar conspurcar a honra da corporação, não consegue evitar o veredicto em torno de cartas marcadas.
Os três homens são condenados e fuzilados, a despeito de sua total inocência. Na manhã seguinte, Broulard convida Dax para um café da manhã, bem indigesto.
Quando Dax chega ao gabinete do general, encontra-o com Mireau, ambos a regozijar-se pelo fuzilamento dos pobres inocentes.
Todavia, Mireau surpreende ao dizer para Dax que vai indiciar Broulard, ao responsabilizá-lo pela ordem do ataque suicida.
Broulard fica abalado com tal revelação, que obviamente é uma traição, e um ato de descarte. A seguir, Mireau tenta subornar Dax, quando oferece-lhe uma promoção que o catapultaria a uma posição de destaque na cúpula do poder, do exército francês.
Dax explode, rasga o código de decoro e solta o verbo, ao acusar Broulard de ser um homem mesquinho, preocupado apenas em obter o poder para usufruir dele em questão pessoal, portanto, ser uma vergonha para a corporação e a pátria. Enquanto isso, os homens daquele batalhão estão em uma taverna, a relaxar um pouco, depois de passar semanas no inferno das trincheiras do front, e abalados com a Corte Marcial injusta que queria condená-los a morte e ceifou três colegas, indevidamente. E o sentimento por estarem vivos fora meramente aleatório...
Na Taverna, surge uma oportunidade para relaxar, quando uma garota alemã é forçada a subir no palco e cantar, para entretê-los. Teoricamente, ela não corria o risco de ser abusada e ferida, mas o pavor estava em seus olhos, diante daqueles homens rudes; inimigos de seu povo e sedentos por uma válvula de escape, ainda mais com o elemento sexual em voga.
Acuada e muito assustada, ela não vê alternativa a não ser começar a cantar uma canção folclórica de sua terra. Começa então, timidamente, a cantarolar : "Der Treue Husar", sob os risos de escárnio e deboche, ao ouvir provocações humilhantes. Mas algo surpreendente acontece... os homens começam a silenciar os seus insultos e pilhérias, ao sentirem-se vencidos por uma estranha emoção, que paulatinamente começa a arrebatá-los. Alguns mudaram o semblante, outros começaram a cantarolar a canção e subitamente, a emoção generalizou-se.
Cortes rápidos mostram rostos cansados e rudes, a verter lágrimas, e a demonstrar dificuldade para engolir a saliva. O motivo dessa comoção, foi o fato dessa canção ter calado fundo na honra desses homens injustiçados. A canção fala sobre honra; amizade e lealdade, e naquele instante, fora a ferida comum à todos.
Nesse instante, o Coronel Dax observa os seus homens aos prantos dentro da taverna, e orgulha-se desse sentimento espontâneo da parte deles. Um mensageiro aborda-o na porta da taverna e comunica-lhe que o batalhão recebeu ordens imediatas para voltar ao front, mas o coronel Dax compadece-se, e ordena que os homens tenham mais alguns minutos de relaxamento na taverna, antes de voltarem ao inferno das trincheiras. O filme chega ao fim, sem um final feliz e a deixar para o espectador, o amargo da injustiça na boca, elemento difícil para ser digerido.
Kubrick foi hábil nesse final, ao usar tal emoção para exprimir toda a indignação proposta na história, por conta do ato de injustiça perpetrada pelos poderosos, por questões meramente mesquinhas. O filme não foi um super sucesso à época, mas gerou algum desconforto de ordem política. Na Espanha, por exemplo, foi vetado pelo ditador, Franco, porque foi considerado como uma espécie de propaganda antimilitar. Na Alemanha, foi evitado, por poder fomentar sentimento anti-francês, e na França, gerou protestos por macular a imagem de seu exército.
Outra curiosidade, foi que Kubrick teve problemas com o ator, Timothy Carey, que culminou em ter sido demitido antes de concluir as filmagens. Como o seu personagem foi importante, por interpretar um dos três condenados ao fuzilamento, a solução foi concluir as filmagens com um dublê; evitar tomadas reveladoras e certamente a cortar diálogos. Mais uma curiosidade interessante, deu-se com o ator, Adolphe Menjou. Kubrick queria que ele atingisse o auge da agressividade para uma cena de grande relevância dramática. Menjou era um ótimo ator, e interpretava profissionalmente as suas cenas no set, mas Kubrick queria algo a mais.
Dessa forma, o diretor usou uma estratégia perigosa, mas que revelou-se eficaz. Na manhã onde deveria filmar tal cena, Kubrick o obrigou a fazer mais de vinte tomadas da mesma cena, ao cobrar-lhe mais convicção na interpretação. Profundamente irritado, Menjou enlouqueceu no set, quando Kubrick anunciou que não haveria pausa para o almoço, até que terminasse a filmagem dessa cena.
Aos berros, Menjou propiciou um chilique no set e calmamente Kubrick ouviu os xingamentos para em seguida, convidá-lo a filmar uma última tentativa. Com essa raiva natural à tona, Menjou interpretou exatamente como Kubrick esperava, e todos foram almoçar felizes, pela missão cumprida...
Outro fato interessante, a garota alemã que interpretou a assustada cantora na taverna, chamava-se Christiane Harlan. Nos créditos do filme, ela apareceu com um nome artístico, Susanne Christian. Essa atriz, casou-se na vida real com Kubrick, e foi sua esposa até o seu falecimento, em 1999. Hoje em dia, 2013, cuida do acervo do seu falecido marido, e tornou-se a curadora da exposição sensacional, que viajou pelo mundo, onde exibiu-se grande parte de sua memorabilia.
Eis um raro filme ambientado na I Guerra Mundial, que vai além do conflito em si, e versa sobre a injustiça; honra; companheirismo; lealdade etc.
Não é o melhor filme da carreira de Stanley Kubrick, certamente, mas eu o considero um grande trabalho. E a cena final, é primorosa. É difícil não emocionar-se com o efeito psicológico proporcionado pela canção, sobre os soldados.
Que beleza de artigo, Luiz!Estava pensando nesses dias (quando estava escrevendo sobre Hugo Cabret) como o cinema realizou muito mais filmes sobre a segunda guerra do que sobre a primeira. O historiador Eric Hobsbawm dizia que até para os europeus, quando se quer falar de guerra mundial eles falam "a grande guerra", a respeito da primeira, porque foi quando eles se desencantaram com o mundo. Nunca, até então, se imaginaria tamanha crueldade. Eu ainda não vi esse filme de Kubrik, mas vc me despertou MUITA vontade de ver... Obrigada, beijos
ResponderExcluirOi, Claudinha !
ResponderExcluirQue legal saber que você gostou da resenha e isso a estimulou a assistir o filme. Eu o recomendo, sem dúvida alguma.
Quanto às suas observações sobre a Primeira Guerra Mundial, concordo inteiramente. Foi uma guerra terrível, que devastou a Europa, e só ficou diminuída na história por conta dos horrores do nazi-fascismo que atrelaram-se à Segunda Guerra, imprimindo-lhe a impressão de ter sido pior.
Obrigado por ler, comentar e elogiar !
Fala Luiz!
ResponderExcluirMais uma vez comentou um excelente filme é um dos Kubriks que eu mais gosto.
Parabéns,
Zé Reis.
Fala, Zé Reis !
ExcluirDe fato, um filmão, também acho.
Obrigado por ler e comentar !
Como em toda história de guerra e em filmes, não deixa de ser triste. Além de tantas pessoas perderem a vida, o suborno a maldade e o poder, acabam de certa forma piorando ainda mais aos envolvidos.
ResponderExcluirMuito bem explicada essa matéria. Gostei muito e pretendo assistir o filme. Ótima história e ótimo atores.
Obrigada Luiz, por compartilhar.
Parabéns!
Toda guerra, seja lá qual for a causa envolvida, é estúpida, parto desse princípio.
ExcluirGostei de saber que apreciou a matéria e motivou-se a ver o filme. Recomendo-o, sem dúvida.
Obrigado por ler e comentar !